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reportagem

“Senti-me mais vivo do que nunca”. A alegria de cumprir o Caminho de Santiago

16 nov, 2022 - 18:30 • Henrique Cunha

"Chegam de todos os cantos e, por vezes, choram. Outras gritam e há sempre esta interação. Isto acontece todos os dias, isto é o Caminho de Santiago e nós não imaginamos o que cada pessoa passou."

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Dois meses e meio depois de deixar São Pedro de Rodes, na Catalunha, Gamero, 45 anos, chegava, ao final da manhã de uma quinta-feira, à Praça do Obradoiro. O catalão irrompeu pela praça soltando gritos de alegria, sem saber explicar por palavras o que estava a sentir: "Só sei que levo dois meses e meio caminhando."

Numa decisão radical, Gamero deixou tudo - emprego, casa e amigos - para caminhar, sozinho, como o objetivo de se conhecer melhor. À Renascença, o peregrino catalão confessa: "Estou a encontrar-me. Tento encontrar algo dentro de mim, e encontrei-o."

Gamero assinalou a sua chegada com três fortes brados para manifestar a “alegria que não se explica”. Depois do segundo grito de euforia, ouviu os aplausos dos outros peregrinos presentes àquela hora na Praça fronteira á catderal de Santiago.

Desafiado, novamente, a explicar o que sentia, Gamero definiu como "incrível" aquilo que estava a viver e confessou que só lhe apetecia chorar porque "não se explica a alegria".

"É impossível", desabafa... "Senti-me mais vivo do que nunca. Ter fome, frio, sede, não saber onde dormir, dormir na rua, dormir no bosque... E, quando chegas aqui, pensas: se pude tudo isto, posso com tudo na vida."

A alegria de Gamero mereceu as palmas dos peregrinos e obrigou a guia turística Maria Chamadoira a interromper a exposição que fazia a um grupo de visitantes, aos quais teve que explicar o que se passava: "Chegam de todos os cantos e, por vezes, choram. Outras gritam e há sempre esta interação. Isto acontece todos os dias, isto é o Caminho de Santiago e nós não imaginamos o que cada pessoa passou."

Bem mais discreta foi a chegada à Praça do Obradoiro da sul-coreana Dahye Jeong. A jovem de 26 anos também decidiu deixar para trás o seu emprego para seguir a sua mãe "na procura de amigos".

Sem muitas explicações, Dahye dá apenas conta do seu "interesse pelo caminho" e revela que depois do trilho francês pouco descansou para dedicar uns dias - não sabe quantos, ao certo - ao Caminho Português. "Sim, comecei em Valença, mas não me lembro bem há quantos dias estou a caminhar. Sete, oito... Desculpe não me lembro", diz.

Os números não coincidem e mudam consoante as fontes e entidades, mas, de acordo com a Oficina do Peregrino, foram acolhidos nas suas instalações, em 2017, mais de 300 mil peregrinos. E essa tem sido a média anual, se omitirmos o tempo da pandemia. São muitos os portugueses - a maioria - mas o caminho é cada vez mais percorrido por brasileiros, para além de originários do norte da Europa e, nos últimos anos, por muitos sul coreanos.

Muitos percorrem o caminho central/caminho primitivo que agora alguns municípios do Minho - Barcelos, Ponte de Lima, Paredes de Coura e Valença - querem ver certificado.

No Caminho há quem, para além do carimbo da credencial do peregrino, dê alento ao caminhante e alguma ajuda que seja necessária. Martins herdou do avô a loja de restauro que mantém mesmo à entrada de Ponte de Lima.

Na porta, regista o número de peregrinos que por ali passam e param e a cada um deixa palavras de alento, partilhando os seus conhecimentos e experiência para ajudar.

"O peregrino, por vezes, chega aqui muito cansado e precisa de descansar e ganhar alento. Eu tento dar-lhe força, deixo-lhes palavras e incentivo, e ajudo no que posso", conta à Renascença.

"Já tive um casal que me pediu para dormir aqui na minha loja de restauro”, revela.

Para além desta ajuda pontual, há cada vez mais pessoas especializadas no apoio ao peregrino de Santiago. As autoridades locais falam de toda uma economia que cresce à volta do Caminho.

Marlene Castro decidiu, em 2014, deixar de lecionar para se dedicar ao "Ninho", um albergue que vai crescendo a partir da casa que era de uma sua bisavó. "Estou aqui há oito anos e trabalho essencialmente de Março a Outubro", adianta.

Em oito anos de gestão do albergue, Marlene diz "ter histórias muito giras" e revela que passou muitos Natais com peregrinos na sua casa, em Rubiães, concelho de Paredes de Coura.

Um pouco mais abaixo, os peregrinos encontram no restaurante "Bom Retiro", um bom local para retemperar forças. Encontram, também, um amigo na pessoa de Rafael Cerqueira. Emocionado, Rafael conta a história que viveu com um jovem escocês. "Um casal de escoceses, no ano passado, veio-me trazer uma bola de râguebi porque eu tinha sido muito simpático com o filho deles que, mais tarde, faleceu", recorda.

De acordo com Rafael, o jovem escreveu "no livro do caminho de Santiago que o sítio de que mais gostou, onde mais de sentiu mais à vontade foi no nosso restaurante, porque eu estive com ele até à noite a ver um Escócia-Nova Zelândia. Ele escreveu essa memória no seu livro".

"Agora, os pais vieram cá trazer-me uma bola de râguebi e isso emocionou-me", acrescenta.

Por motivos religiosos, espirituais ou culturais, pelo desafio ou pela experiência, milhares de peregrinos percorrem anualmente os Caminhos de Santiago. Saem de todos os lados. Uns estão bem preparados para a jornada, outros nem por isso. As dores e o cansaço ficam, no entanto, esquecidas por entre as pessoas que vão conhecendo e as experiências que vivem. Partilham o objetivo de alcançar a Catedral de Santiago de Compostela e a barreira linguística desaparece ao som de um global “Buen Camino!”.

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