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​Entrevista

“Enquanto os diplomatas falam, as armas ficam em silêncio” na Ucrânia

16 fev, 2022 - 19:09 • Ângela Roque

Há 20 anos em Portugal, o padre ucraniano Natanael Harasym não sabe o que terá feito o Ocidente despertar tão tarde para a crise que se arrasta desde 2014 no seu país natal. Diz que todos os esforços diplomáticos são “válidos”, mesmo quando não se entende de imediato as motivações. Mas deixa o alerta: as promessas russas de retirada requerem vigilância.

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Entrevista ao padre padre Natanael Harasym

Ordenado sacerdote na igreja greco-católica, o padre Natanael Harasym acompanha a comunidade ucraniana que vive e trabalha no Patriarcado de Lisboa. Em entrevista à Renascença no Dia da Unidade Nacional da Ucrânia, fala da “apreensão” que todos sentem pelos familiares que deixaram no país natal, onde há oito anos se vive com medo do dia de amanhã. Diz que "todo o esforço em prol da paz é válido”, mas duvida que este conflito se resolva “de um dia para o outro.

O padre Natanael fala, ainda, do poder da oração e da importância que têm tido os sucessivos apelos à paz feitos pelo Papa Francisco. E agradece todo o apoio que tem recebido dos portugueses, em especial nas paróquias que serve, em Lisboa e Torres Vedras.

Como é que tem acompanhado a escalada de tensão na Ucrânia, e este ambiente de ameaça de invasão russa?

Com apreensão, como é lógico, com um certo medo - só uma pessoa doente é que não tem medo destas coisas -, mas também com confiança e com muita fé. Tanto eu, pessoalmente, como o meu povo tem - e não só, agora parece que o mundo inteiro despertou - para que a situação se resolva. A situação não é de ontem, nem de anteontem, por isso não vai ser resolvida amanhã ou depois de amanhã. Mas temos muita confiança, em Deus sobretudo.

A Rússia anunciou o fim dos exercícios militares e a retirada de tropas da Crimeia. Este recuo é um sinal de esperança, ou há que manter cautela?

Vigilância. Para não se desiludir é melhor não se deixar iludir. O meu povo é um povo sofredor, mas não nos vamos deixar vitimizar, somos resilientes, e a história do século XX é a prova disso. E não só do século XX, toda a história da minha terra…

Mesmo agora no século XXI. Na realidade, desde 2014 que a região de Donetsk e Luhansk estão ocupadas por rebeldes pró-russos…

E a Crimeia também.

O que é que isso tem significado para as populações, em termos de segurança e condições de vida?

É muito triste, porque as pessoas vivem o medo, não só do amanhã, mas do hoje. Não sabemos como é que o dia de hoje vai acabar. Agora, em coisas práticas: lá nas regiões ocupadas há exploração, corrupção. Para ter a pensão mínima, que não chega aos 100 euros... é a pensão da minha mãe, que está do lado de cá, ao pé de Lviv, que é a parte ocidental da Ucrânia. Sou oriundo de lá, nasci na Galiza ucraniana.

Mas, a nossa Ucrânia é única, é um país soberano, e ninguém, nem nenhuma força pode tirar isso. Como a Portugal a Espanha não pode tirar, e recordemos Aljubarrota... Não queremos Aljubarrota, mas sabemo-nos defender e vamo-nos defender, porque temos esse direito, se for o caso.

Referia há pouco que o Ocidente parece ter despertado agora, nesta fase, para a situação...

A expressão que uma vez ouvi é que é como uma ‘banheira quente’, é no ‘xanax’, no ‘calmex’, pensar 'ah, aquilo é um conflito interno, é um problema deles, é uma guerra civil'. Mentira, não é, é provocado…

E porque é que acha que neste momento tantos países manifestaram atenção ao que se está a passar? O que é que está por trás?

Pode haver muita jogada política, muito teatro político, mas o meu povo diz 'Deus está no alto e vê ao longe'. Estar no alto não quer dizer que está longe de nós, pelo contrário, acompanha e bem, e a prova disso é toda a história da salvação do povo hebreu no meio de tantas dificuldades e infidelidades, mas Deus, o nosso Deus misericórdia, sempre se manteve fiel ao seu povo, e o povo da Ucrânia não é exceção.

Nenhuma nação tem direito a tirar a liberdade e a soberania ao povo vizinho, porque somos todos irmãos. É como em família, podemos até discutir e há conflitos, mas como se diz em português "é a falar que a gente se entende". Mas, tem de se falar e não pôr panos quentes, engavetar o assunto. Não, o povo ucraniano não vai ser sacrificado ao dragão, e não será uma vítima…

O dragão é a Rússia?

O dragão em última instância nem é a Rússia, é o pai da mentira - essa é que está por trás disso tudo. E quem o ouve, o pai separador, que divide para reinar. Os dias deles estão contados.

Em sua opinião o problema da Rússia é só a possível adesão da Ucrânia à NATO, ou é uma ambição de conquista territorial?

Temos de olhar a história dos dois povos para compreender. Os muros da Babilónia caíram, séculos antes de Cristo. No dia 9 de novembro de 1989 o muro de Berlim caiu. Os muros do Kremlin hão-de cair, a questão é quando, o Senhor saberá. Não estou a falar dos muros físicos do Kremlin, mas de todo o ódio que há, o ódio como máscara dos pacificadores, daqueles que fazem paz na Síria, na Geórgia, no leste da Ucrânia. Há toneladas de fake news diariamente, com ataques cibernéticos. Ainda hoje, notícias frescas da Ucrânia indicam que muitos sites do governo ucraniano não estão a funcionar.


"O meu povo é resiliente e não se tornou resiliente só nos últimos oito anos, em que a guerra continuou todos os dias, silenciada tantas vezes, mas com mortes diárias lá, tanto entre militares como civis, crianças"

A guerra hoje também se faz por aí...

A guerra continua, é híbrida, este é o auge da guerra híbrida que começou em 2014, aproveitando a fragilidade da Ucrânia. Eu acredito que Deus nos preparou algo maior e muito belo, e não só para a Ucrânia ou para a Rússia. Parece que a mensagem de Fátima está a cumprir-se.

Como é que vê as movimentações diplomáticas que tem havido, por parte de alguns países? São positivas? E como é que olha a postura dos Estados Unidos, tem sido a correta?

Todo o esforço em prol da paz é válido. Podemos discutir o que está por trás, que interesses, se são geopolíticos, económicos. Mas, o que importa agora é que enquanto os diplomatas falam as armas ficam no silêncio.

O meu povo é resiliente e não se tornou resiliente só nos últimos oito anos, em que a guerra continuou todos os dias, silenciada tantas vezes, mas com mortes diárias lá, tanto entre militares como civis, crianças. Ao longo dos últimos oito anos, mais de 14 mil, 15 mil... é pouco? Na Síria há mais, isso não me alegra.

Hoje, 16 de fevereiro, é o Dia da Unidade, da Unificação na Ucrânia. Ontem o presidente dirigiu-se à nação pedindo que se manifeste isso de todas as maneiras, até expondo a bandeira - aliás, trago aqui uma bandeira ucraniana para oferecer e deixar aqui como sinal também ao povo português, que sabe o que é passar dificuldades... estou-me a referir a Aljubarrota, mas também aos emigrantes, porque o povo português foi emigrante, por isso é acolhedor e acolheu-nos. A mim, pessoalmente…

Está há 20 anos em Portugal...

E isso é só um sinal concreto, de tantos outros sinais pelo mundo fora. Posso falar do que vivo aqui pessoalmente e o meu povo, não estamos sozinhos, e se Deus está por nós, quem está contra nós?

Uma filha da minha terra, Lesya Ukrainka, uma grande poetisa do século XIX, disse 'somos o povo ao qual a força da verdade nunca foi conquistada por ninguém'. A Ucrânia geograficamente tem a sorte – a felicidade e a infelicidade - de estar no centro geográfico da Europa, somos uma encruzilhada de todos os caminhos, Leste e Oeste, Norte e Sul. Por isso, historicamente na minha cidade natal, Lviv, a comunidade mais antiga é arménia, eram os que faziam o comércio da Ásia para a Europa, e a igreja mais antiga é Arménia.

Somos um país multicultural, multinacional, mas também acolhedor. Por isso, não queremos guerra e não apontamos as armas a ninguém, mas temos de nos defender, é nosso direito, defender a soberania e a dignidade humana à imagem e semelhança de Deus. E o agressor pode esquecer que também é imagem, mas está a perder semelhança de Deus, e rezamos por eles.

A presença da Igreja tem sido importante para a população na Ucrânia, sobretudo nestas alturas mais difíceis?

Com certeza, tanto na Ucrânia como no mundo fora. Aqui em Portugal também, rezámos não só no dia 26 de janeiro, respondendo ao pedido do Papa Francisco.


Foi um dia de oração pela paz na Ucrânia.

Um dia que ele pediu que não seja um dia só. Agradeceu a todos o que se uniram, e pediu que essa oração continue, porque a oração faz diferença. Às vezes não acreditamos na força da oração. A minha avó, mãe da minha mãe, dizia que 'a oração parte o ferro', por isso não há arma que resista. Esta arma, o terço, e o nosso escudo, que é a Cruz de Jesus, são maiores. O nosso inimigo, em primeira instância, não é o Kremlin e o seu dono, é o pai da mentira, o Satanás, como a Sagrada Escritura o chama, que, como o leão, anda à procura a quem devorar.

Não tenhamos medo, o medo é também uma arma do inimigo para semear pânico, dominar, dividir, separar, é o separatista número um. O nosso escudo, a nossa defesa é Cristo, símbolo, Aquele que une o que está separado, que consegue reunir o que o mentiroso dividiu e separou, voltar à tal união.

Não é só hoje que o presidente (da Ucrânia) convidou a rezar, é a Igreja no mundo inteiro, desde domingo que tem havido oração intensiva, além da oração diária - oração, jejum e penitência pelo fim deste conflito.

O padre Natanael acompanha no Patriarcado de Lisboa a comunidade ucraniana, que são cerca de 15 mil pessoas. Há muito receio de quem cá está relativamente aos familiares que têm na Ucrânia? Têm procurado a sua ajuda e da Igreja, este apoio espiritual?

Todos os dias, por via telefónica, nas redes sociais. Eu também ligo à minha mãe e ao meu irmão mais velho que está lá, porque o mais novo está cá em Portugal, trabalha cá, está agora a recuperar de uma pequena cirurgia.

E preocupa-o ter lá a sua família?

Claro.

E os restantes ucranianos também estão nessa apreensão?

Sem dúvida nenhuma. Aqui em Benfica, onde também celebro para os irmãos portugueses, como em Torres Vedras, para os irmãos ucranianos, e somos todos Igreja, ucranianos e portugueses, russos e espanhóis, moldavos, alemães, italianos, chineses, todos somos povo de Deus, na Igreja não há estrangeiros. E todos se preocupam, porque repare: uma dor na ponta do dedo, ou de outra parte do nosso corpo, só de um milímetro, já é uma dor do corpo todo. Somos um só corpo, uma só família, um só Senhor, por isso esta dor também se partilha.

E sente essa preocupação dos portugueses que acompanha?

Sinto, e tenho muito apoio, até nas mensagens que recebo diariamente. E na oração, que em Benfica, na igreja de Nossa Senhora do Amparo, me garantem, e não só. Em Torres Vedras, em Santa Maria do Castelo - é a igreja mais antiga e mais próxima do céu, porque geograficamente das quatro igrejas paróquias de Torres Vedras é a mais elevada -, que foi cedida generosamente pelo Patriarcado e pelo prior que abriu as portas da igreja e do seu coração para que pudéssemos rezar lá na nossa língua, seguindo o rito próprio bizantino. Por isso, só posso dar graças a Deus por estes mais de 20 anos em terras lusas ao serviço não só do meu povo ucraniano, mas da Igreja, que é do Senhor.


O apoio do Papa, com sucessivos apelos à paz, tem sido importante?

É incansável, é um homem de paz. O Papa quando há uns anos recebeu o presidente da Rússia, no Vaticano, ofereceu-lhe uma imagem significativa, um anjo - o anjo da paz, Fátima… faz pensar. A atualidade, mais uma vez, na mensagem de Fátima, que - desculpem a expressão - não é fado. Apesar do fado ser uma canção séria, que eu gosto, porque vem do coração, da dor que a pessoa sente, como a mulher que chora a morte do marido que foi para o mar e não voltou, como ouvi lá em Alfama… Mas, não é fim, a morte não é o fim, a última palavra não é do tal destino trágico, mas é do Senhor, que nos dá esperança e alegria. Eu acredito fortemente que o Senhor nos preparou algo belo e muito maior do que estes dias de tristeza que vivemos e temos que passar.

O seu discurso tem sido sempre de esperança. Que solução vê para este conflito? Acha que isto se vai arrastar muito tempo, ou este é o momento em que tudo ficará resolvido com a ajuda e atenção da comunidade internacional?

Sviatoslav Shevchuk, o chefe da Igreja ucraniana greco-católica, diz que o nosso problema é que queremos construir a Ucrânia cada um à sua maneira, e o caminho é olhar para aquilo que nos une. Neste momento não pode haver divisões políticas, cada um para seu lado, cada um a puxar a 'brasa à sua sardinha', como se diz cá nas terras lusas.

A paz é o bem maior?

Exatamente, a paz é um bem maior. E para os cristãos, paz não é uma ideia, nem uma ideia fixa, não é um tratado que se põe no papel e ainda antes de ser assinado, ou logo depois, é rasgado. Para nos os cristãos, paz e verdade é uma pessoa, não é algo, é alguém: é Cristo, e só com ele e na base dele, d'Aquele que é caminho, verdade e vida, que é o príncipe da paz, e da rainha da paz, Nossa Senhora, mãe de Deus, da Igreja e nossa mãe, é que é possível alcançar, apelando diariamente e construindo, sendo construtores da paz no dia a dia, neste esforço diplomático, às vezes incompreensível, às vezes parece que a cabeça vai para um lado e os pés para outro… Mas, ‘a falar é que a gente se entende', sentando-se à mesa, conversando. Também não é paz a qualquer custo, para alimentar o dragão, não nos vamos deixar vitimizar....

Mas, acha que há condições para isso, neste momento?

Acho que há. Não é para alimentar o dragão, mais uma vez, para ser devorado, porque ele vai precisar de mais sacrifícios. Não é assim que se consegue a paz, mas conversando francamente e abertos à verdade, e pondo tudo em cima da mesa, aquilo que pensamos e sentimos, mas tudo o que está em xeque. E o que está em xeque são as vidas humanas, tanto de um lado como de outro.

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