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Dia Mundial dos Pobres

Irmã Maria de Fátima Magalhães: “Todos somos pobres de alguma coisa”

13 nov, 2021 - 09:08 • Rosário Silva

Há mais de três décadas que, em Elvas, a irmã Maria de Fátima Magalhães dirige diferentes projetos de cariz social. Com a colaboração de dezenas de voluntários, empresas e entidades do concelho, a obra que a religiosa da Companhia de Santa Teresa de Jesus conduz, chega a centenas de pessoas a quem a vida conduziu à rua, à prisão ou à marginalidade. A propósito do Dia Mundial dos Pobres, celebrado a 14 de novembro, a Renascença conversou com a coordenadora do Movimento Teresiano de Apostolado (MTA) que, recentemente, lançou o livro "Encontros de Graça".

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No dia 14 de novembro, celebramos o Dia Mundial dos Pobres, este ano com o tema “Sempre tereis pobres entre vós”. O Papa Francisco, na sua mensagem, não poupa nas palavras e acaba também por questionar os políticos e apontar o dedo aos poderes económico e financeiro. Irmã Fátima, é uma mensagem bastante atual, não é?

Olhe, em primeiro lugar, agradecer ao Papa Francisco, pois foi ele que teve a iniciativa de criar o Dia Mundial dos Pobres. Afinal, há dias mundiais tanta coisa, mas faltava o Dia dos pobres. O Papa Francisco que, para mim é um homem cheio de Espírito Santo e que está atento aos sinais do Espírito no mundo, criou em 2017, o primeiro Dia Mundial dos Pobres. Este ano, o tema é “Sempre tereis pobres entre vós”, a a primeira impressão quando se lê esta mensagem, pensamos que, afinal, parece que não é preciso fazer nada, pois os pobres estarão sempre entre nós. Depois de ler a mensagem do Papa para este ano, e acho que ela é profética e evangelizadora, percebi que teremos sempre pobres entre nós, porque teremos sempre Cristo entre nós, Ele que se fez pobre, que se fez um de nós, assumiu todas as pobrezas, nas suas várias formas. Realmente, ninguém nasceu para ser pobre, nem é culpado de ser pobre. O mundo do egoísmo, o mundo dos grandes, o mundo dos poderosos e de muita gente sem escrúpulos, é que cria pobreza. Há muitas formas, na atualidade: os idosos, os que não têm nada, os que estão desempregados, os refugiados, os migrantes, entre muitos outros. São estes pobres que a Igreja tem que assumir como sendo da família, como sendo nossos irmãos. Temos que os sentar à mesa, pois ninguém é tão rico que não tenha nada a receber, e ninguém é tão pobre que não tenha nada para dar. Portanto, tem que se atuar numa linha de partilha, de compaixão, de proximidade uns com os outros e criar condições para que os ricos saibam repartir e partilhar, e que os pobres saibam receber também, dando de si.

É essa a mensagem que o Santo Padre nos quer deixar?

Há um ponto muito importante, na mensagem, que eu gostava de citar: “Parece ganhar terreno a conceção, segundo a qual os pobres não são responsáveis pela sua condição”. Acredito nisto a 100%. Ninguém é responsável da sua condição de pobre. São as circunstâncias, são os sistemas, são as guerras ou até mesmo as grandes superfícies que acabam com o comércio ao pé da porta, por exemplo. Mas é também o sistema económico, como diz o Santo Padre, “o mercado que ignora ou discrimina os princípios éticos, cria condições desumanas que se abatem sobre as pessoas pobres em condições precárias”. Eu costumo dizer, não há pobreza, há pobres, há pessoas que estão em condições precárias de vida e que são muitas vezes as que mais sofrem. Por exemplo, se olharmos para o mundo em pandemia, quem é que ainda não está vacinado? Quem é que está a sofrer as consequências das guerras? São as crianças, são os pobres, são os velhinhos, são as famílias desfavorecidas. O Papa clama a favor dessas pessoas.

E são essas pessoas que estamos a descartar?

Com certeza. O Papa chama a atenção dos descartáveis. Há os de primeira, os de segunda, e como diz o Papa, depois, há os descartáveis, aqueles que não são abrangidos pelos holofotes, de que ninguém fala ou que ninguém quer, logo, os descartáveis. A pobreza não é da vontade de Deus. A vontade de Deus é que haja unidade, fraternidade, proximidade e ajuda. Claro que é impossível que todos tenham as mesmas condições, pois todos são diferentes. Olhe, no meu conceito, todos somos pobres. Essa ideia de que aqui estão os não pobres e na outra rua estão os pobres, é mentira. Todos somos pobres de alguma coisa. Deixo-lhe um exemplo de uma pessoa jovem, de Elvas, que sabendo dos meus projetos sociais, veio ter comigo e disse-me: “Eu sou o mais pobre de todos, pois se me tirarem o dinheiro. não tenho mais nada. Não sei quem é o meu pai. Não convivo com ele. A minha mãe está sozinha, está doente. Eu tenho muito dinheiro e venho aqui oferecê-lo, mas tirando isso, não tenho mais nada”. Na verdade, há pobreza de afetos, de carinho, de presença, pobreza de dizer “tu és útil, fazes-me falta e eu preciso de ti”, pessoas que não têm fé e vivem numa solidão tremenda, com doença mental, tanta gente com depressões, aqui no Alentejo, tanta gente que suicida, tanta gente que não encontra razões para viver, porque não há quem precise destes pobres. Todos precisamos de todos, pobres ou não. Podemos não dar dinheiro, mas podemos dar tempo ou qualquer outra coisa que tenhamos.

Falou nos seus projetos sociais, pode, em traços gerais, dar a conhecê-los?

Primeiro, e não podia deixar de falar neles, quero realçar que todos contam a ajuda de muitos voluntários, graças a Deus. Começo por falar do projeto “Ajudar a crescer bebés” que atende, todos os meses, 30, 40,50 mães, que devido ao nosso apoio, respeitam a vida que têm no seu ventre e ajudam as suas crianças. É um projeto que já tem mais de 25 anos e nasceu numa altura em que a Igreja fez uma campanha pela defesa da vida. Começamos a bater porta-a-porta e a pedir às mães que não abortassem, pois nós podíamos ajudar. Contamos também com o apoio financeiro da Fundação Mariana Martins de Elvas que nos dá 1.300 euros todos os meses, com os quais compramos leites muito caros, para as mães doentes, que têm SIDA, outra que são desnutridas e que não podem dar qualquer leite ao seu bebé. Temos muitas empresas que nos ajudam e graças a Deus, temos berços, temos muitas roupas, mas apoiamos também com medicamentos, com viagens, com tudo o que for necessário.

Irmã Fátima, as crianças crescem, têm outras necessidades, mais tarde serão também adultos. Há todo um apoio que é igualmente assegurado a estas famílias?

Sim, é o projeto “Ajudar famílias porta-a-porta”. Temos a cidade dividida em zonas e, todos os meses, os voluntários vão, porta-a-porta, entregar alimentos, mas ver também as condições das pessoas. Apoiamos com medicamentos, com mobiliário, com o que for necessário para dar dignidade às pessoas. Depois, essas pessoas são idosas, não é? Os filhos, os netos vão estudar para fora e já não voltam, é o problema do Alentejo. Assim, criamos outro projeto “Coração de Ouro” para apoiar idosos. Pensámos que era um projeto com menos gastos, mas encontramos idosos que nunca tiveram um fogão, comiam umas papas e pouco mais, idosos que nunca tiveram uma casa de banho, que foram explorados por netos toxicodependentes ou por filhos que lhes roubavam as reformas. Depois, há também aquelas pessoas que até têm dinheiro, mas têm muitos problemas, vivem em profunda solidão e vão pagar 80 euros por uma consulta no psicólogo por pouco tempo. Então, criámos o projeto “SOS Escuta”, onde ouvimos as pessoas, para mim é como se eu fosse um sacerdote, as coisas ficam em mim. As pessoas precisam de ser escutados e isso é transversal a quem é rico, a quem é pobre, a quem tem o curso superior, a quem não tem, a quem está sozinho. Infelizmente, até pessoas que tiveram bons empregos, foram para a reforma, os filhos saíram, estão sozinhas e precisam muito desse apoio…

Mas não é tudo. Há um projeto que entra pela noite dentro, certo?

Sim, é o projeto “Passos da Noite”. Aqui, contamos com o apoio das grandes superfícies que nos dão o que sobra e vamos pelas ruas e entregamos, ou vamos a sítios que conhecemos e sabemos que estão pessoas que precisam. Acabamos por criar laços, estas pessoas abrem-se connosco e nós encaminhamo-las para uma casa que temos em Elvas para sem-abrigo, sempre em parceria com as entidades do nosso concelho. Procuramos também a sua reinserção na sociedade, conseguindo-lhes emprego. Também já acolhemos uma família da Síria durante ano e meio. Neste momento estamos a acolher uma família, de cinco pessoas, do Sudão.

Há também todo um trabalho que é feito com os reclusos. Quer falar-nos deste projeto?

Devido à droga, às condições precárias de vida, à falta de valores ou devido a outras tantas situações, muitas pessoas acabam por ir parar à prisão. Aqui em Elvas existe um estabelecimento prisional e há mais de trinta anos, eu já não consigo viver sem ir à cadeia a um sábado, que vamos realizar um trabalho de evangelização e de oferta de bens que estão em falta. Todas as semanas temos apoio religioso e espiritual. No Natal damos, também, prendas aos filhos dos reclusos, com a ajuda dos nossos meninos das escolas e das nossas paróquias. Contamos igualmente com o apoio da direção e dos técnicos desta prisão. Eu lembro que estes senhores estão privados da sua liberdade, mas não estão privados da sua dignidade. Seja qual for a condição das pessoas, o nosso papel de cristão, o que a Igreja nos pede, é que amemos estas pessoas que são um dom precioso de Deus. Se queremos encontrar Jesus, sabemos onde Ele está: nos pobres, nos pequeninos, nos descartáveis.

Vivemos um longo período de confinamento por causa da pandemia, como conseguiram sustentar todos estes projetos?

Olhe, eu só tenho mais uma vez a dar graças a Deus, porque pela minha idade e por ser diabética e pertencer a um grupo de risco, não podia sair. Então, os voluntários reforçaram a presença e ajuda, com o apoio da associação cultural “Gota d’Arte” que parou a sua atividade normal e decidiu ajudar-nos. Ninguém ficou de fora. A câmara, através da assistência social e dos seus projetos, fez-nos pedidos e nós conseguimos responder sempre. Com a mudança de horário das grandes superfícies, eram os voluntários que iam buscar as sobras e traziam. Ainda digo mais, um grupo de jovens criou, nessa altura da pandemia, um projeto chamado “Surto Solidário”. Entre eles, através das redes sociais, ligavam uns aos outros e fizeram uma campanha de alimentos e de dinheiro, tendo conseguido cabazes ainda maiores que os habituais. Havia pessoas que viviam na chamada pobreza envergonhada, inclusive muitas que estavam ligadas às artes, mas também à restauração. Duas empresas de peixe, sedeadas em Lisboa, mas que têm aqui os seus armazéns, entregaram-me três mil quilos de peixe, de alta qualidade, por duas vezes. Um dos rapazes de uma das empresas é forcado e conseguiu reunir os forcados amadores, que se levantaram às quatro da manhã, para ir buscar o peixe à Nazaré. Quando cheguei às dez da manhã, já eles estavam à minha espera há meia hora e todos muito felizes.

É a chamada solidariedade gerada por momentos de grandes dificuldades?

No principio da nossa conversa, falámos daqueles que geram pobreza através das suas empresas e dos seus projetos, mas há muita gente anónima que gera solidariedade. Aliás, o meu lema é “muita gente em lugares pequenos da terra a fazer coisas pequenas, transformam a face da terra”. Assim nasceu o Cristianismo, não é? De fato, os pobres sabem ajudar seus irmãos pobres que às vezes são tão pobres, tão egoístas, tão fechados sobre si próprios, que só têm dinheiro, mas não sabem como usá-lo. No entanto, também quero dizer que há muita gente, com inúmeros bens e que nos ajuda bastante, mas que se quer manter anónima. Realmente não me posso queixar. Nunca bati a uma porta que me dissesse não, outras há que vêm ter comigo e eu nem preciso pedir. Tenho a certeza que aquilo que eu faço é querido por Deus, porque as pessoas vêm ter comigo e partilham.

Imagino que tem muitas experiências e, até, reconhecimento dessa solidariedade?

Sim, muitas experiências. Olhe, estou a lembrar-me, por exemplo, de um ex-recluso que estava numa cadeia de Inglaterra e que eu ajudei, através de cartas. Neste momento, está no Mónaco, onde tem uma empresa de limpezas. Seja no Natal, seja na Páscoa, este homem envia-me uma mensagem a pedir o meu NIB para fazer uma transferência para as prendas de Natal dos reclusos. Tenho outros ex-reclusos que agora são voluntários noutras cadeias. Exemplos não me faltam de pessoas que ajudei e que agora são elas que querem ajudar os outros.

É uma vida de entrega aos outros. Suponho que muitos desses testemunhos figurem no livro que lançou recentemente, “Encontros de Graça”. Quer falar-nos um pouco da obra?

O livro tem o prefácio do senhor arcebispo de Évora, D. Francisco Senra Coelho, o posfácio do meu diretor espiritual, o padre jesuíta Manuel Morujão e a contracapa é do cardeal José Tolentino. Este livro nasceu, precisamente, de muitos encontros na rua e de muitos desencontros, muitos fracassos, dos quais Deus se serviu para me dar a volta, digamos assim. Esta dividido em três partes. Os primeiros 15 capítulos são “encontros de graça”, o que para mim, significa encontros cheios de Deus, de gratuidade, cheios de voluntariado e também alguns muito engraçados que passaram pela minha vida. A segunda parte é composta por testemunhos que me marcaram, de crianças da rua, de reclusos, de voluntários, de pessoas ligadas ao mundo da marginalidade que conseguiram recuperar, entre muito outros. A ultima parte do livro contém orações e poemas, a que eu chamo preces dentro da alma, que nasceram na rua, nasceram diante de uma pessoa que se suicidou, ninguém procurou, e que eu velei sozinha, diante de uma idosa ou diante de uma pessoa na rua alcoolizada. Para mim, é uma contemplação, um lugar de encontro com Deus.

E o produto da venda reverte, justamente, para os projetos sociais que coordena?

Sim, este livro é, aliás, uma edição gratuita da editora “Letras Impares”. Quem quiser adquirir, pode fazê-lo nas três livrarias de Elvas, também em Évora, na livraria Salesiana, ou então, pode contactar-nos, aqui, no Colégio Luso-britânico. Estamos ainda a negociar com livrarias de outros pontos do país, como Braga ou Porto.

A terminar, irmã Maria de Fátima, que mensagem devemos reter neste Dia Mundial dos Pobres que vamos celebrar?

Primeiro, quero recordar que Cristo é o pobre dos pobres, porque assumiu todas as nossas pobrezas. Ele veio para amar e servir. Não devemos ter medo ou vergonha das nossas pobrezas. Em segundo lugar, não te consideres rico. Todos nós somos pobres de alguma coisa. Eu sou pobre de tempo, sou pobre de proximidade com tanta gente com quem eu gostaria de estar mais tempo e não posso, sou pobre de saúde, por isso preciso do outro. E aqueles a quem lhes faltem os bens essenciais, que nos batam à porta, pois são os preferidos de Deus. Não são “essa gente” como às vezes se diz, os que não têm nome. O Papa chama-lhes “os preferidos de Deus”, os pequeninos. Não tenhas vergonha, porque no meio da tua pobreza, há muita riqueza a partilhar connosco. Venham ter connosco, vamos partilhar as nossas pobrezas, somos irmãos em Cristo e podemos ser família.

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