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E o microfone de Rúben bateu no chão: o povo delirante e a promessa inesperada (a crónica da festa do 20.º título do Sporting)

06 mai, 2024 - 03:45 • Hugo Tavares da Silva

A festa estalou depois do derradeiro apito no Famalicão-Benfica. De Alvalade para o Marquês de Pombal foram algumas horas de distância e houve de tudo: os hinos habituais, os animadores improváveis e as palavras de Amorim que sugerem a sua permanência no clube.

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Os talheres, o tilintar dos copos e as conversas substituíram aquele barulho mágico das botas na tijoleira, os toques na bola ou os berros de quem cobra e ama ao mesmo tempo num relvado. Os futebolistas do Sporting, e a restante entourage, sentaram-se à mesa para ver o que o velhinho rival lisboeta conseguia fazer em Famalicão. Qualquer passo em falso significava o 20.º título para as gentes de Alvalade.

Confirmado o passo em falso, inaugurou-se a festa. Os jogadores saltavam como bolas saltitantes e até o eufórico Rúben Amorim, já perdoado por uma viagem desavinda e pelas palavras demasiado honestas que denotavam uma certa descalibração de rota, já tinha um cachecol a apertar-lhe o pescoço, incapaz de travar a festa que lhe saltava da garganta. Rúben acabava de vencer pela segunda vez o título nacional pelo Sporting, transformando-se no segundo treinador português a consegui-lo depois de Cândido de Oliveira, em 1948 e 1949. E o mais novo idem. Tem apenas 39 anos e cumpriu agora a quarta época completa em Alvalade.

O Sporting voltou assim a ser campeão longe do campo, não no sofá mas à mesa, tal como aconteceu em 2002, quando o Boavista perdeu na Luz e ofereceu o título a Mário Jardel, João Vieira Pinto e companhia. Hugo Viana, hoje diretor para o futebol, fazia parte desse plantel. Tinha uma bela canhota.

Depois do Famalicão-Benfica, que terminou 2-0 para os da casa, Roger Schmidt admitiu que o Sporting foi melhor ao longo da época. O alemão elogiou a consistência e a eficácia da rapaziada de Amorim. E a história fabricou-se ali à distância: é o 20.º título para os sportinguistas, numa trama que começou em 1941, quando Fernando Peyroteo massacrou as balizas adversárias. Pelo meio, houve fases de claro domínio, nomeadamente na década de 40, e os tais jejuns. Schmeichel, Acosta, etc, etc, deram de beber à dor em 1999/2000, colocando o fim num jejum imenso. De lá para cá, o Sporting ganhou o campeonato apenas em 2002, 2021 e agora, em 2024.

Na festa em Alvalade, depois do tal tilintar dos copos e talheres, Amorim interrompeu uma espécie de flash interview de Sebastián Coates, o capitão, e logo com uma gafe. “Ele tem de ir apanhar o avião… o autocarro”, corrigiu-se imediatamente, todo bem-dispostinho da silva. Os olhos do treinador abriam-se perante a voracidade dos jornalistas.

“É uma felicidade enorme”, confessou. Amorim lembrou que o seu primeiro título foi assombrado pela covid-19, a maldita pandemia que fez desaparecer tanta gente e aparecer tantos medos, e aproveitou para lembrar que este título teve gente nas bancadas, talvez para mandar uma bicada aos que diziam que os adeptos do Sporting só atrapalhavam.

Durante a conversa, chegou a cometer o atrevimento de dizer que ficava em Lisboa, que queria atacar “o terceiro” título nacional com o verde e branco a tapar-lhe a carapaça aperfeiçoada pelos treinos de kickboxing.

Também Hugo Viana parou perante os microfones, algo que não aprecia especialmente. “Merecemos ser campeões este ano. O jogo do Benfica poderá ter sido o jogo chave da época”, referiu o dirigente, reforçando essa mesma ideia já proferida pelo treinador. “É hora de dar os parabéns a todos os que acreditaram desde o princípio”, fechou Viana.

Nas redes sociais iam surgindo as reações de ilustres, como Cristiano Ronaldo ou Ricardo Sá Pinto. O herói destes tempos veio da Suécia. “Eu adoro estar aqui, tem sido fantástico. Não posso prometer nada”, revelou Viktor Gyökeres, que sobre o futuro nada revelou. E o treinador, que tal? “Por acaso até é um bom treinador…” Nada mau, hein? Para quem viu a reportagem da Renascença na Suécia (AQUI), na pegada do bomber sueco, é fácil perceber o tom seco, sério e ambicioso. E até em português se aventurou.

O autocarro arrancou rumo ao coração de Lisboa somente às 00h13. Pedro Gonçalves, um óptimo futebolista do futebol impensado, deu conta disso mesmo no microfone da Sporting TV com algumas palavras que não devem ser transcritas por aqui. Daniel Bragança, um dos meninos bonitos dos adeptos leoninos, levava uns óculos que piscavam e deixou umas palavras que derreteriam qualquer sogra. “Não consigo falar. Eu queria só mandar um beijinho para os meus avós. Quero que eles desfrutem ao verem o neto deles a ser campeão duas vezes pelo Sporting. Gosto muito deles, tenho-os sempre no coração.” Bom de bola, bom de coração.

St. Juste, que já perto das 3h da manhã seria um autêntico líder de claque no Marquês, ia dançando no autocarro como um bailarino de alto gabarito. Mais ou menos como os avançados do Sporting dançaram à frente das balizas rivais, homenageando Peyroteo, o pioneiro destas andanças. Foram, até agora, 136 golos em 51 jogos. Na Liga foram 92 golos em 32 jogos.

O autocarro com os protagonistas chegou à rotunda mais famosa do país à 1h50. Os jogadores continuavam a mexer nos telefones, o que leva os mais céticos a questionar que tipo de baterias são aquelas.

E o palco, antes pisado por artistas como Plutónio, começou a ter a finalidade para o qual foi montado. Paulinho, o roupeiro cujos dentes não fazem cair ninguém, foi o primeiro a dar uso ao verbo. Agradeceu, no fundo, o apoio dos sportinguistas.

Gyökeres foi muitíssimo celebrado. É amado por esta gente. É um 9 que homenageia a memória de Manuel Fernandes, uma lenda que vive um momento delicado. Alguns jogadores denunciavam que não estão tão habituados a uma cerveja ou duas, o que também os torna mais humanos, é o descarregar da pressão imensa que sofrem o ano inteiro. É uma folga. É justo.

Os hinos habituais começaram a soar. A chuva também, o tilintar da chuva não se ouvia. Só faltava o céu chorar. Estava bonita a festa. Cachecóis, luzes, cantorias, berros e alegrias. São noites que as pessoas levam para sempre. Viam-se muitas crianças. E, aparentemente, não se registaram quaisquer problemas ou excessos.

Estranhamente, Frederico Varandas preferiu não falar aos sportinguistas. O capitão, sim, assumiu a conversa. “Somos campeões. Obrigado pelo apoio, foi inacreditável”, agradeceu o uruguaio Coates. Depois, arquitetou um movimento: “Fica, fica, fica Amorim…” E lá veio Rúben.

E foi um show dentro do show, diga-se. Primeiro, sacou a sua versão de comediante. “Vamos despachar isto que eu tenho um avião para apanhar bem cedo amanhã…”, ouviram-se gargalhadas e assobios. Era uma alusão àquele voo, ao tal voo, para Londres para supostamente negociar com o West Ham. “É muito cedo para esta piada, vou guardar para mais tarde, OK?”, disse o homem que tudo pode e cujo atrevimento era mais alto do que a estátua do Marquês de Pombal.

A seguir, pediu aplausos para o staff e para as pessoas com menos “expressão mediática” que também fazem o clube e o dia a dia daqueles jogadores e dos protagonistas. O homem que festejou como se devem festejar os grandes dias guardou o melhor para o fim.

“Disseram que só ganharíamos campeonatos de 18 em 18 anos", continuou Amorim. "Disseram que só ganhámos o campeonato [em 2021] porque não tínhamos público. E dizem que jamais seremos bicampeões outra vez. Vamos ver…” E o microfone, inanimado, caiu como se fosse uma gota da chuva. E Rúben Amorim parecia um rapper que, com as palavras, manejava o mundo e o que se diz dele.

Terá Rúben Amorim prometido que fica no Sporting na próxima época? Parece que sim, parece que sim.

Pote, Inácio e Paulinho continuavam a animar as muitas dezenas de milhares à frente do palco (para lá das 3h da manhã). O povo não ia a lado nenhum. A segunda-feira também não, estava sempre no horizonte, à espera do despertador e de mais um dia de trabalho. Mas o sorriso é outro, certo?

“Amanhã não é feriado, mas parece c$%&#! Boooooora”, sentenciou Pedro Gonçalves, lembrando Eder.

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  • Bruno Moura
    06 mai, 2024 Lisboa 07:57
    Que bela peça jornalística. Já não lia ou via algo parecido desde os tempos do saudoso Gabriel Alves. Lemos a notícia como se de um romance se tratasse, daquele que não queremos que acabe. Parabéns ao Autor (Hugo Tavares da Silva) e à renascença por continuar a investir num jornalismo de qualidade.

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