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Novo Governo

"Se for mais do mesmo é mau", diz Júdice, com maioria absoluta "é muito forte", assume Alegre

23 mar, 2022 - 06:15 • Susana Madureira Martins

Quase dois meses depois das eleições legislativas, o país conhece esta quarta-feira os nomes que irão fazer parte do Governo. Ouvido pela Renascença, José Miguel Júdice espera, por exemplo, que para uma pasta como a Defesa, que ganhou relevância com a guerra na Ucrânia, vá "alguém que seja capaz de ir para o mundo falar de igual para igual com as grandes figuras" e Manuel Alegre salienta que mesmo "em maioria absoluta a oposição continua a ter um papel".

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A maioria absoluta conquistada pelo PS dá condições para arriscar "um grande Governo", escolher bem os ministros, que até podem ser menos "leais" ao primeiro-ministro, menos fáceis de gerir, mas com mais qualidade. É a opinião de José Miguel Júdice, advogado e antigo dirigente do PSD, que em declarações à Renascença, assume que António Costa tem "uma oportunidade única" para fazer reformas.

Desde as legislativas tudo mudou. A pandemia passou para segundo plano e o conflito na Ucrânia trouxe inesperadas novas prioridades ao futuro Governo que, se tudo correr como previsto, irá tomar posse no dia 30. Desde logo em duas pastas fundamentais: Negócios Estrangeiros e Defesa.

Para Júdice os futuros ministros destas áreas serão "peças chave de um puzzle onde é preciso, para um pequeno país, ter prestígio e para ter prestígio têm que ter muita qualidade".

Em particular, na Defesa "tem de estar alguém que seja capaz de ir para o mundo falar de igual para igual com as grandes figuras que os outros países vão passar também a ter na Defesa", conclui o antigo militante do PSD.

Isto é o que se pode e deve fazer. "O que não pode é fazer-se o que se fazia muitas vezes em Portugal", diz Júdice, em que "os Negócios Estrangeiros eram para o líder do partido mais fraco ou para uma figura que está no governo, mas que não pode ter tempo para tratar da intendência do governo".

Este era o perfil de Augusto Santos Silva, no entender do advogado, "quase como um grande conselheiro". E o mesmo vale para o ministério da Defesa, "um lugar onde se punham políticos, que tinham de estar no Conselho de Ministros, mas eram mais importantes para a política do que para governar". O que porém, não terá sido o caso "deste último", reconhece Júdice referindo-se a Gomes Cravinho.

O que esperar do próximo Governo, então? O advogado diz que essa é a curiosidade. "Se for mais do mesmo é mau, se o governo fizer apenas 'tiro o Joaquim, o Manuel e a Fernanda que estão um bocado cansados', mas o resto fica tudo igual é não perceber nada". E conclui que isso seria "achar que nada mudou, que com mais do mesmo faz-se a mesma coisa e não é verdade".

Sobretudo com o conflito na Ucrânia a dobrar o primeiro mês. A partir de agora e com dois Orçamentos ordinários que serão aprovados num único ano, Júdice defende que "os recursos são escassos, vai faltar dinheiro para outras finalidades se tivermos de gastar mais em Defesa, portanto, é uma total mudança das prioridades e implicaria um governo diferente".

A questão é saber se o Primeiro-ministro "arrisca". Júdice conhece bem António Costa, de quem de resto foi mandatário na candidatura deste à câmara de Lisboa em 2007 e nota como "um dos defeitos" do primeiro-ministro o gostar de ter no governo "pessoas muito próximas, muito amigas, muito dependentes, caso extraordinário do ministro Cabrita".

Ou seja, "ministros que servem para tudo, porque só servem para uma coisa: são leais e são fiéis ao primeiro-ministro", resume Júdice. Ora, tendo "maioria absoluta deve arriscar ter um grande governo".

O que significa ter um "grande Governo"? É "ter pessoas de muita qualidade que são mais difíceis de gerir do que aqueles que devem tudo ao primeiro-ministro e sabem que se o primeiro-ministro deixar de os querer vão voltar à banalidade de onde vieram". E este "vai ser um teste interessante", reconhece o advogado.

No fundo, Costa tem a faca e o queijo na mão. Tem a maioria, o tempo e a oportunidade certas. E condições únicas "para passar das ideias aos atos", muito mais do que se governasse em minoria.

Em maioria absoluta o caminho é: decidir e executar a seguir, sem grão na engrenagem. "Quando o primeiro-ministro com a sua equipa entende 'devemos fazer isto', num governo de maioria absoluta segue-se a execução, imediatamente" e "é só preciso ter cuidado, ponderar um bocado a opinião pública, ponderar os aspetos constitucionais, ponderar os riscos de um veto do Presidente da República, mas fora isso, decidem e fazem".

A via para o sucesso e a fatalidade de uma rua mais brava

Resumindo: "as condições para o sucesso são enormes". E nem o facto de a rua se tornar mais brava pela contestação social, manifestações ou greves diminui esta convicção de José Miguel Júdice. "A rua faz parte do jogo democrático. As pressões, os 'lobbies', os grupos de interesse, cada um usa os instrumentos que pode para tentar complicar a vida de tudo o que aconteça e que lhes desagrade".

É também neste sentido que vai a opinião do histórico dirigente do PS Manuel Alegre, que em declarações à Renascença reconhece que em maioria absoluta não havendo a centralidade do parlamento, a contestação social será maior nas ruas. "É capaz de acontecer. Umas vezes com razão, outras vezes só para se fazer prova de vida".

Mas nada que para o antigo deputado e por duas vezes candidato derrotado à Presidência da República faça tremer a maioria absoluta de António Costa, que "é muito forte, é muito sólida", com o PS a mostrar com o resultado eleitoral de janeiro que "é um partido forte e enraizado" quando "todos já anunciavam a derrota" do partido. "Afinal virou-se o feitiço contra o feiticeiro", congratula-se o socialista.

A "tendência" da maioria absoluta para o abuso e a importância da oposição

Se a contestação social é vista como parte do jogo democrático, também a maioria absoluta é vista com normalidade por José Miguel Júdice. Para o ex-bastonário da Ordem dos Advogados "não é um problema em si mesmo a tendência que o poder absoluto tem para o abuso, isso é normal".

O que é preciso é "contrariá-lo, mas também hoje em dia vivemos numa sociedade muito mais controladora dos abusos do que há vinte ou trinta anos, ou no tempo de José Sócrates", conclui Júdice, para quem hoje há redes sociais, canais de televisão, comentadores, e um Presidente da República que "lá está".

Assim, "é preciso estar atento", mas "os riscos da maioria absoluta são muito limitados", tendo em conta que "os tribunais funcionam, mesmo em minoria neste momento há muito mais partidos na Assembleia, a oposição é muito mais diversificada e muito mais forte". Não há "problema", despacha Júdice.

Uma normalidade que Manuel Alegre também vê. A maioria absoluta dá "outra estabilidade, outra liberdade de movimentos", mas também não se vive orgulhosamente só. Para o socialista "a oposição continua a ter um papel. Em democracia, a oposição é tão importante como o governo, estimulam-se reciprocamente".

E aqui, sim, Alegre vê um problema. Ou melhor "os problemas que há no maior partido da oposição e com uma certa fragmentação da direita e o aparecimento da extrema-direita" trazem "o receio que a oposição não seja muito estimulante". Assume-se "preocupado" com o estado atual do PSD, argumentando que "é mau para a democracia".

Cabe assim à "maioria absoluta a capacidade de encontrar dentro de si mecanismos de reinvenção, renovação e de autocrítica permanente, uma espécie de contrapoder dentro de si mesmo", resume Alegre, que vê em António Costa um fiscal de si próprio, tal como o líder socialista prometeu na noite eleitoral de janeiro. "Ele tem formação democrática para isso, já o demonstrou".

As prioridades da maioria absoluta

"As mudanças têm de ser feitas todas muito depressa", ao mesmo tempo e em todas as áreas. É o que defende José Miguel Júdice. "A nossa capacidade de bloquear mudanças é limitada, se fizermos uma mudança de cada vez, o bloqueio vai mudando de tema em tema".

Mas, se se fizer "um conjunto de mudanças todas ao mesmo tempo é muito mais difícil que os grupos de interesse hostis à mudança se possam mobilizar com a mesma eficácia". Mudar a "Administração Pública que está com pouca vontade de mudar", por exemplo, resume o advogado.

Júdice atribui o problema ao envelhecimento da população. "Os que querem mudar que são os mais novos emigram. Vão mudar para outros lados". A mudança é agora, altura em que estão reunidas as condições, "com um Presidente da República que está íntima e brutalmente interessado nisso".

Para Manuel Alegre resume-se tudo a "resolver" problemas. Na saúde, onde é "preciso preparar o futuro". O "problema da água, o aproveitamento do mar é essencial, o problema da revolução digital que vem aí, a quarta revolução industrial que vem aí".

O histórico socialista lembra mesmo o antigo primeiro-ministro sueco Olof Palme, de quem foi amigo, que "criou uma vez o ministério do futuro, para se antecipar aos acontecimentos e para se começar a pensar para além do imediato".

Para Alegre "há problemas que parecem longe, mas já cá estão, as alterações climáticas", por exemplo, um dos temas que "está muito para além da espuma dos dias com que nós em Portugal perdemos muito tempo, a comunicação social, os comentadores e, por vezes, os políticos também".

Resumindo e voltando a José Miguel Júdice, espera-se que "o Governo tenha força, energia, que não esteja cansado e que ouse mudar as coisas. É preciso que o primeiro-ministro não pense assim 'quero estar mais quatro anos e daqui a quatro anos vou embora e foi uma vida sossegada', não, ele deve escrever para a História", pede o advogado.

Está, assim, fora de questão para Júdice que Costa abandone o barco a meio do mandato para seguir para outros voos. "Ele tem uma oportunidade de ficar na História e bater o record do primeiro-ministro mais tempo a governar". O antigo dirigente do PSD assume que se "estivesse no lugar" de Costa "não havia nada que fosse capaz de me motivar a mudar de vida".

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