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Ténis debaixo de água e palavras sábias: a crónica da épica vitória de Borges na primeira ronda do Estoril Open

01 abr, 2024 - 22:00 • Hugo Tavares da Silva

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O braço de ferro lá nas alturas, entre a choradeira das nuvens e o sol que torrava as peles destreinadas, era semelhante ao que se passava no court, entre Nuno Borges e Lucas Pouille, número 241 do mundo, o carrasco de Richard Gasquet, um dos príncipes do circuito a quem tocou ser “lucky loser”.

Pouille não estava para brincadeiras e comportou-se como um antigo top-10 que é. As gentes que ali aterraram para celebrar mais um feito de Borges, o português que alcançou os oitavos de final do Open da Austrália, onde até ganhou um set a Daniil Medvedev, e que acabou de vencer o Challenger 175 de Phoenix, começaram a ver a vida a andar para trás.

Para agravar os estados de alma da alma, havia no sector 6 um grupo de franceses ruidosos, que até cantaram o hino antes do jogo começar (a canalha no canto oposto respondeu com o hino português). Eram talvez cinco e cantavam músicas que se ouvem no futebol. Durante muito tempo, arrancaram apenas sorrisos aos portugueses. Com o andamento da partida, ficou tudo mais azedo. É que Pouille conseguiu um improvável e imaculado 6-0 no primeiro set. Vimos Borges a berrar como nunca. A raquete, embrutecida, beijou a terra. Estava perdido.

O segundo set começou com um 2-0 para o francês e o desfecho, mesmo que não tão dramático, parecia estar traçado. Mas a chuva, hesitante e malabarista, ia refrescando as ideias do tenista português. Corria tudo mal e, de repente, depois da chuva e das pausas por causa da chuva, a bola amarela começou a aceitar o que ele tinha pensado para ela.

E Borges cresceu, começou a dominar os jogos contra um belo, belíssimo adversário, vencendo o segundo set, depois de um tiebreak, tendo sabido fintar um match point. Que esta gente visite o inferno e volte ao seu nível é uma daquelas coisas assombrosas do ténis.

A festa dos tais cinco ou seis franceses, munidos de bandeiras e alegria, continuava na mesma toada. Mas a chuva que lavou a mente do irreconhecível Borges, lavou também o orgulho lusitano. Então, sem grande elegância diga-se, começaram a ouvir-se uns “shiuuuuu” e um atrevido “fermez la bouche”, como que exigindo que estivessem caladinhos...

Os amortis repetiram-se de parte a parte, sendo que Borges traçou uma estratégia admirável para responder a essa manobra que chegava do outro lado. Amorti com amorti se paga, não é?, então metia, quase ao longo da rede, do outro lado, a bolinha já seduzida pela cantiga portuguesa.

A linguagem corporal de Nuno Borges já era outra, parece que lhe retiraram 20 quilos das costas e das pernas e dos ombros e dos braços e da raquete, sabe-se lá. Henrique Rocha, que na quarta-feira terá pela frente o lendário Gael Monfils, e Jaime Faria, dois nomes a ter em conta no futuro do ténis português, estavam ali junto ao court a aplaudir e a apoiar o compatriota.

O estádio principal do maior torneio de ténis nacional era um caldeirão, apesar de a chuva ter procurado apagar o fogo. Molhou apenas as cadeiras, meteu gotas desavindas em óculos, fez levantar pessoas que, não tão habituados ao protocolo, sentiram-se enjauladas por não poderem sair durante os pontos ou determinados jogos. Houve alturas em que chovia com alguma intensidade e manteve-se tudo, como se nada fosse. Ténis aquático, ora aí está uma novidade deste Estoril Open.

Nuno Borges, o 62 do mundo e melhor português da atualidade, já era outro. Com o jogo a galgar as duas horas no cronómetro, o tenista da Maia, de 27 anos, tomou conta das operações para gáudio das gentes que já tinham praticamente uma questão pessoal contra os franceses, quase que salivando pela vingança de 1984, 2000 e 2006 (no futebol, pois claro). Por isso mesmo, um ou outro lá gritava “Eder!”, assim mesmo, como um espasmo.

Quando o português sentenciou o 6-3, o público respirou de alívio com um rugido que merece ficar na memória. Os tais aficionados que não esquecem o futebol lá cantaram “e foi o Nuno que os f….”. Sim, mais uma deselegância, transferindo a grandeza de Eder para Borges, que terá pela frente, na segunda ronda, Lorenzo Musetti.

Mais importante foi a conversa entre uns poucos jovens, atrás deste que vos escreve, no momento em que, sem avisar, Nuno Borges começou a tratar da cambalhota no espírito e no marcador. “Quando estás em baixo, só há um caminho: para cima”. Palavras sábias.

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