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Quatro anos de escolaridade numa única turma. Escolas de proximidade em risco de fechar

24 out, 2022 - 07:40 • Liliana Carona

A perda de população nos concelhos mais desertificados faz com que restem poucas escolas do 1.º ciclo do ensino básico, localizadas fora dos agrupamentos escolares. No concelho de Gouveia há quatro que resistem com apenas uma turma única (alunos do 1.º, 2.º, 3.º e 4.º) a aprender na mesma sala.

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São conhecidas como escolas de proximidade e correm o risco de fechar. A perda de população principalmente no interior tem sido um dos fatores a contribuir para o fecho de muitas escolas. E são já poucas as que resistem.
No concelho de Gouveia , por exemplo, há quatro escolas primárias onde os alunos do 1.º ao 4.º formam apenas uma turma e estão todos a aprender na mesma sala.

“Esta escola terá certamente perto de um século”, recorda Glória Lourenço, de 60 anos, a única professora da Escola Básica de S. Paio, localidade que em tempos idos chegou a ter cinco fábricas a laborar. Hoje tem 699 habitantes e 11 crianças a frequentar o ensino primário (quatro alunos no 1.º ano, quatro no 2.º ano, duas no 3.º ano, e uma no 4.º ano de escolaridade). Há mais outras três escolas no concelho de Gouveia, com turmas únicas, (Lagarinhos, Folgosinho e Melo). O concelho tem, segundo os Censos de 2021: 12.223 habitantes, sendo que em 2011, tinha 14.046 pessoas.

Acompanhamento é constante, até no recreio

“Vamos arrumar os lápis e vamos lanchar”, pede Glória Lourenço à turma, que se agita pela hora, 10h30. No refeitório, já sentados, retiram os lanches que trazem de casa. Há queques de chocolate e sandes de fiambre, acompanhados do leite distribuído pela escola. O almoço é também ali fornecido pelo lar de S. Paio, numa parceria com o município. Com 11 alunos e dois estudantes itinerantes, filhos de feirantes, a professora Glória Lourenço, lamenta que nem sempre tenha “casa cheia”.

“Muitas vezes faltam às aulas”, diz, sempre direcionando o olhar para o recreio, onde tenta jogar à bola. Aqui o acompanhamento é constante”, garante a docente na presença de duas auxiliares e uma educadora, também responsáveis pela sala de jardim de infância, ainda frequentada por cinco crianças.

De regresso à sala de aula, há dois quadros em lousa, em sentidos opostos. “Os meninos do 1.º ano estão a aprender a escrever o número 4, os do 2.º ano, a consolidar os ordinais, os do 3.º ano, a aprender estratégias da multiplicação. E o do 4.º ano, está a trabalhar o algoritmo da multiplicação por dois algarismos.

“Vamos fazer um novo produto, 97 vezes 5. Vamos fazer a nossa estratégia, decompor”, explica a docente Glória Lourenço, colocando uma cadeira à frente do quadro, para que o aluno Santiago Maia, no 3.º ano de escolaridade, possa chegar à altura necessária e completar o exercício.

“Sou muito bom a matemática. Só me sento aqui para trabalhar e para estudar. Nasci só para matemática e sonho ser cozinheiro de pizzas. Ganho um bom dinheiro. Era o meu sonho desde pequeno”, revela Santiago. No 4.º ano de escolaridade, Darilene da Silva, dez anos, sonha ser médica. Luciana Santos de sete anos, quer ser professora. Gerson Anjos, com nove anos, já sabe que vai ser mecânico.

“Há meninos que nunca andaram no pré-escolar. É tudo uma novidade, o pegar no lápis pela primeira vez. É preciso uma ginástica mental e física para lidar com todos estes grupos”, conta a professora.

Não é a primeira vez que Glória Lourenço, docente há quase 40 anos, ensina a matéria dos 4 níveis de escolaridade na mesma sala. Chama-lhe um desafio maior.

“Alguns meninos são familiares, uns são primos, outros são irmãos, conseguimos ter para eles uma disponibilidade que não existe numa escola grande. Apesar de não conseguirmos ter uma turma para cada ano, aqui temos um desafio maior, que todas estas crianças não fiquem para trás. Nesta escola há muito carinho, e aprendizagem sem carinho, nunca pode acontecer. Tentamos organizar e ter um ensino muito individualizado”, diz a professora, salientando que “no primeiro ano há meninos que nunca andaram no pré-escolar. É tudo uma novidade, o pegar no lápis pela primeira vez. É preciso uma ginástica mental e física para lidar com todos estes grupos”, explica.

Sobre as estratégias, Glória Lourenço revela que consolida “um método mais personalizado, mais individualizado. Há alegria e movimento na sala. A minha sala está organizada com espaços diferentes e cada um sente-se importante e ele próprio, cada um sabe que está a ser valorizado”, destaca.

A valorização e integração do aluno, são essenciais para a professora Glória Lourenço, que já em pequena, na mesma sala onde agora dá aulas, também ela tinha colegas da comunidade cigana.

“Tinha uma colega de etnia cigana, a Adélia das farturas, era excelente a matemática, fomos sempre amigas, nunca senti que ela fosse diferente de mim e hoje ela é uma grande empresária”, recorda, garantindo que “as crianças de etnia cigana, relacionam-se bem com as outras crianças, nunca houve tratamento diferenciado, A ou B não têm rótulo na testa. Tratamo-los da mesma forma”, assume a docente, encontrando aí o motivo pelo qual a turma é composta maioritariamente por alunos da comunidade cigana.

“Mas porque é que a professora não tem problemas com as crianças de etnia cigana? Perguntam-me, e eu respondo: porque fui conquistando o respeito destas pessoas. Algumas, já os pais me passaram pelas mãos”, acrescenta Glória Lourenço, destacando que em certas atividades vê “meninos que não são de etnia cigana com comportamentos mais estranhos, e isto dá-nos força para continuar a acreditar que a integração é possível.

O importante é integrar as pessoas, se não conseguirmos integrar estas pessoas, quando forem adultos nunca conseguirão integrar-se, as crianças são iguais, todos são importantes. Não vemos aqui ninguém ser marginalizado”, afirma.

Proximidade em risco de acabar

Apesar das vantagens de um ensino mais próximo e personalizado, a professora Glória Lourenço admite que nem sempre é possível levar as novas tecnologias para a sala de aula.

“Estamos na era da tecnologia e temos feito formação, mas não pode ser neste estilo de escola, em todos os momentos. Vou dar uma aula ao 4.º ano recorrendo às novas tecnologias, acabo por incomodar os outros meninos mais novos”, argumenta.

Com a perda de população, no concelho de Gouveia, este ano letivo, já foi suspenso o jardim de infância, na freguesia vizinha de Nespereira, porque tinha apenas quatro crianças. Para o presidente da junta de freguesia de Nespereira, Nuno Figueiredo, é uma situação que classifica como pau de dois bicos.

“Nós não aceitámos este encerramento, porque os miúdos deixam de ficar cá, mas é um pau de dois bicos, porque quando falta um ou dois alunos, fica uma educadora e uma auxiliar praticamente sem crianças, não há miúdos”, lamenta.

A professora Glória Lourenço é também presidente da junta de freguesia de S. Paio e observa a diminuição do número de crianças.

“Se não existem pessoas que possam ser pais, é possível que aconteça o mesmo em S. Paio. O nosso concelho cada vez tem menos crianças e não sabemos se este método se vai manter”, desabafa, sem esconder a emoção.

“Estudei nesta sala, cultivei sempre uma admiração imensa, pela minha professora Cândida, que tive sempre como exemplo. Ela tinha duas coisas muito boas, sabia auscultar as crianças, ou seja, perceber se precisam de ajuda e conseguia também dar muito carinho”, recorda.

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