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Entrevista Renascença/Ecclesia

Braga. "O âmago de todas as Semanas Santas é a participação da sua população"

24 mar, 2024 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

Rui Ferreira, doutorado em Estudos Culturais pela Universidade do Minho, é um estudioso de Braga. No início da Semana Santa, é o convidado da entrevista Renascença/Ecclesia e fala sobre os momentos que transformam a cidade, atraindo milhares de pessoas para celebrações que esgotam os espaços das igrejas. O especialista manifesta ainda preocupação face a uma excessiva dependência do turismo que “pode tornar-se um problema”.

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Rui Ferreira, doutorado em Estudos Culturais pela Universidade do Minho, é um estudioso de Braga e alerta para os riscos de descaraterização dos eventos que vivem muito dependentes do turismo.

“Há esse risco, claro, e muito mais num evento religioso como é a Semana Santa de Braga”, diz em entrevista à Renascença e Agência Ecclesia.

O investigador e estudioso de tudo o que diz respeito a Braga defende ser necessária atenção de quem está à frente das entidades para "não permitir a descaraterização do que somos enquanto sociedade".

Rui Ferreira admite, por outro lado se “pode criar um problema sério quando o turismo, por algum motivo, decrescer”, pois aí “a economia vai-se ressentir, sem dúvida”.

Com uma tese de doutoramento sobre “os cerimoniais público(-privados) e as solenidades da Semana Santa de Braga”, Rui Ferreira diz que a Semana Santa de Braga “está reconhecida como um Inventário Nacional do Património Cultural e Imaterial”, mas adverte que “não pode agora adormecer à luz dessa inscrição”.

“Teve grande repercussão mediática essa classificação, essa integração na lista e eu acho que ainda pode ser feito trabalho, nomeadamente investindo cada vez mais na investigação científica, em exposições na programação da Semana Santa”, acrescenta.

Para Rui Ferreira, “quem, de alguma forma, quiser perceber a intensidade da vivência da Paixão de Cristo tem necessariamente de passar por Braga”.

“Hoje, os dois momentos mais expressivos de reconhecimento da cidade são a Semana Santa e o Bom Jesus. E brotam ambos da paixão de Cristo. Há aqui uma ligação clara”, sublinha.

Numa entrevista em que percorre o conjunto de eventos e celebrações que a Semana Santa de Braga proporciona, Rui Ferreira salienta que “o âmago de todas as Semanas Santas é a participação da sua população, o seu envolvimento”, e eles "são os primeiros protagonistas”.

"A Irmandade da Santa Cruz e a Irmandade da Misericórdia têm feito um trabalho notável"

A Semana Santa de Braga é um grande encontro entre tradição e modernidade?

Nos últimos anos, tem tentado ser. A Semana Santa confirmou-se praticamente desde os anos 60 como o principal momento turístico da cidade de Braga. A partir daí, começou a ser feito um trabalho coordenado das instituições para valorizar a Semana Santa e a verdade é que deu resultado, porque hoje é mais reconhecida a nível nacional, é o pico do turismo na cidade de Braga.

Temos um turismo sazonal muito forte, mas a Semana Santa é, efetivamente, um momento alto e isso obriga a Comissão Organizadora, que reúne uma série de instituições da cidade, a ir atualizando o seu programa, fazendo propostas diferentes, conciliando com as tradições, com os grandes cerimoniais públicos que são as procissões e as celebrações na Sé Primaz. Por isso, podemos dizer que tem sido feito um trabalho a esse nível, embora seja um trabalho sempre inacabado. Tem de se fazer em permanência esse esforço de aproximação às pessoas que vêm ter connosco e julgo que esse trabalho está a ser conseguido, está a ser bem feito.

Estamos a falar da Semana Santa e são manifestações centrais na vida coletiva de Braga. O envolvimento da comunidade é um dos fatores de atração e persistência?

Efetivamente, é um dos momentos da vida coletiva de Braga. Braga tem um outro momento bastante relevante, o das festas de São João, que em matéria de trabalho turístico é bastante mais antigo do que a Semana Santa. Mas a Semana Santa eleva-se a nível das outras Semanas Santas que se fazem em Portugal, quer pela tradição que a cidade carrega - de recordar que Braga é uma cidade com mais de dois mil anos de história, considerada pelos historiadores a cidade mais antiga de Portugal - quer pelo vínculo fortíssimo à Igreja, que vem desde o séc. XI.

Os arcebispos governaram a cidade até 1790, até D. Maria I acabar com as donatarias. Isso nota-se no dia a dia, nota-se na fisionomia da cidade e, evidentemente, a Semana Santa, como a Semana Maior para o cristianismo, eleva-se também no contexto da cidade. Eu deduzo que seja por isso que as pessoas procuram Braga. É todo um conjunto: as celebrações da Semana Santa, a própria cidade e a sua história, que emana a paixão de Cristo e emana também do cristianismo. Depois, as práticas: estamos no Minho, que é a terra das tradições, a terra conservadora por excelência e, por isso, temos muitas tradições que vão prevalecendo e isso atrai as pessoas porque dá autenticidade àquilo que acontece na cidade.

"A Semana Santa confirmou-se praticamente desde os anos 60 como o principal momento turístico da cidade de Braga"

O programa desta semana inclui manifestações particularmente relevantes, como as procissões e outros cerimoniais que se integram no chamado rito bracarense. Há uma marca própria que torna esta semana diferente?

Eu diria que sim. Não vou entrar na questão do rito bracarense porque isso é uma questão, em termos de investigação, ainda muito inconclusa, mas, de facto, há algumas práticas inscritas na liturgia de Braga, que se manifestam particularmente na Semana Santa, que foram prevalecendo apesar dos Concílios, nomeadamente o Vaticano II, na sua reforma litúrgica, e, antes, o Papa Pio XII, na reforma que fez da Semana Santa, as terem abolido. Braga teve um regime de exceção: os ritos mais antigos, foram prevalecendo. Embora o seu significado teológico e espiritual seja questionado muitas vezes, porque, efetivamente, falamos da procissão teofórica do enterro que decorre na celebração da morte do Senhor na Catedral, no final da celebração.

Estamos a falar da celebração de Sexta-feira Santa, não é?

Exatamente, a celebração de Sexta-feira Santa, que é muito característica. A Sé, evidentemente, é a catedral mais antiga de Portugal, mas tem limitação de lugares. A Sé está completamente apinhada de gente e é uma experiência de facto intensa, mas com um significado, embora ao arrepio daquilo que são as regras atuais da liturgia. Mas, efetivamente, é uma marca de autenticidade, mas a principal, além da procissão teofórica, que, no fundo, deu origem às procissões do Enterro, que ainda hoje se fazem em muitas localidades, há uma outra prática do rito que é relevante e que acontece já este domingo.

Nas portas da Sé Primaz, faz-se a procissão de Ramos, como em muitos lugares. Há uma paragem na porta da Sé que está fechada. O arcebispo que presida à celebração vai fazendo um rito que é típico do rito bracarense e que terá sido importado por São Geraldo, que foi o primeiro a intervencionar liturgicamente ou a atualizar para o rito romano. De visigótico, o rito de Braga já não tem nada, mas tem práticas que muitos arcebispos foram adicionando e que permanecem. Esta do Domingo de Ramos é muito interessante, porque tem um significado profundo. A porta está fechada, recita-se um salmo e, depois de três pancadas na porta, ela abre-se e, finalmente, as pessoas podem entrar na Sé para continuar a celebração.

Depois, há outras particularidades, como a do lava-pés que inicia a celebração. Depois, há algumas questões mais de antífonas nas próprias celebrações do Tríduo Pascal. E há uma festa que também há em outras dioceses, mas que em Braga se mantém porque estava no breviário bracarense: a festa de Nossa Senhora dos Prazeres ou de Nossa Senhora das Alegrias, que é muito significativa até para aquilo que se procura fazer querer aos cristãos, particularmente desde o Conselho Vaticano II: não ficarmos na paixão e na morte de Cristo, mas vivermos a alegria da ressurreição, a esperança da ressurreição.

"Temos muitas tradições que vão prevalecendo e isso atrai as pessoas porque dá autenticidade"

E ainda há espaço para valorizar essas solenidades?

Exatamente. E Nossa Senhora das Dores, que tem também um epicentro devocional na cidade de Braga. De Braga foi propagada para todo o país essa devoção. Passa a Nossa Senhora das Alegrias e até há um rito interessante, na Basílica dos Congregados, também integrada no programa da Semana Santa, em que se retira as espadas à Senhora das Dores, significando que Nossa Senhora passa das dores às alegrias. No rito bracarense, é na segunda-feira de Pascoela, em que se faz a celebração da festa de Nossa Senhora dos Prazeres, que ainda se verifica em alguns pontos da arquidiocese. Isso até era bom de ser explorado ainda mais para dar a ideia aos cristãos de que não devemos ficar na dor. A morte de Cristo foi também para fazer sentido ao sofrimento que todos nós passamos na nossa vida.

Além desta dimensão religiosa que é evidente, as cerimónias ganham cada vez mais um valor cultural e turístico. A sociedade no seu todo deve procurar divulgar e preservar este ciclo tão importante para Braga?

Sem dúvida. E tem sido feito trabalho. Aliás, eu estive na Comissão da Semana Santa, durante quatro anos, e a minha presença deveu-se precisamente à questão da ambição que a Semana Santa tinha de se candidatar à UNESCO. Isso ficou ali um bocadinho em "banho-maria", mas fizemos o passo prévio, que era inscrever-nos no Inventário Nacional de Património Cultural e Material, tarefa que levei a cabo com sucesso. Foi finalizada no ano passado e visa tentar preservar aquilo que é relevante. Mas convém não nos esquecermos de que o património material está sempre sujeito à evolução, não pode ser cristalizado. É preciso um equilíbrio entre aquilo que é relevante e aquilo que pode, efetivamente, mudar e ser atualizado.

A Irmandade da Santa Cruz e a Irmandade da Misericórdia têm feito um trabalho notável de preservar aquilo que é importante e relevante nas suas procissões e nas suas celebrações, integrando factos novos que vão, de alguma forma, criando uma vivência mais intensa daquilo que se pretende viver nas procissões. As procissões não são só um desfile de pessoas, têm de ter algum sentido, alguma mensagem. Portanto, tem sido feito esse trabalho muito interessante das diversas comissões da Semana Santa e das entidades que a integram e, acho que tem havido esse cuidado. A inscrição no Inventário é um primeiro sinal que se dá e esse trabalho tem de ser continuado.

"O património material está sempre sujeito à evolução, não pode ser cristalizado. É preciso um equilíbrio entre aquilo que é relevante e aquilo que pode ser atualizado"

Está a ser bem aproveitada essa inscrição no Inventário Nacional do Património?

Sim, penso que sim. Aliás, esta inscrição é o corolário de um trabalho de investigação que foi sendo feito nos anos anteriores, com exposições, com publicações, com todo o tipo de levantamento do património e isso é que vai alertar as Irmandades da sua relevância e de dar continuidade àquilo que é efetivamente importante. O Inventário é um registo e um registo tem de ser atualizado de quando a quando. Por isso, se faz um alerta para as entidades que constituem a Comissão no sentido de darem continuidade a esse trabalho. Acho que, nesse aspeto, a Semana Santa tem feito um bom trabalho, aproveitando os recursos que tem e a cidade percebe a importância da Semana Santa também do ponto de vista económico. Eu sei que isto da questão da turistificação dos eventos ou da questão da patrimonialização dos eventos também tem os seus riscos, mas é por isso que há entidades e pessoas que têm de refletir continuamente nesse aspeto. E Braga está a viver esse processo. Se perguntarem a qualquer bracarense, quer seja crente ou menos crente, ele vai dizer muito bem da Semana Santa porque percebe que aquilo é muito importante para a cidade.

Perdeu força a candidatura a património da UNESCO?

Não sei. Já não estou na Comissão, colaboro. Vai haver um centro interpretativo, no qual também vou prestar colaboração, mas em relação à questão da Unesco, numa reunião, eu julgo que em 2016, em Lisboa, foi-nos dito que Braga já tinha muitas candidaturas. Tinha a candidatura à cidade de "Media Arts", a cidade criativa; tinha a candidatura do Bom Jesus do Monte... Eles entendiam que era melhor finalizar essas candidaturas porque ter três candidaturas na mesma localidade não seria bom. Na altura, pensou-se que o melhor seria avançar com o Inventário, que é o primeiro passo brigatório para quem quer candidatar-se à Unesco, e, mais tarde, pensar nisso mais a sério. Neste momento, não lhe sei dizer, teria de perguntar ao cónego Avelino, que é o presidente da Comissão.

Esse trabalho fica feito para o futuro, independentemente dos rumos que seguir...

Sem dúvida.

"As procissões não são só um desfile de pessoas, têm de ter algum sentido, alguma mensagem"

Quem são os protagonistas desta Semana Santa?

Em primeiro lugar, são os bracarenses que compõem tudo o que é celebrações, que participam nelas, que lhes dão corpo. Um momento celebrativo como a Semana Santa que não tenha a participação da sua população deixa de fazer sentido. O âmago de todas as Semanas Santas é a participação da sua população, o seu envolvimento. Eles são os primeiros protagonistas. Depois, as instituições que de alguma forma aglutinam grande parte destes protagonistas, que é o Cabido da Sé de Braga, a entidade principal, que lidera a Comissão. No fundo, a Catedral é o centro, o cerne, apesar de a Semana Santa se viver nos diversos templos da cidade, que são muitos. Mas a Sé é o centro nevrálgico, onde acontecem essas celebrações do rito bracarense, e, portanto, é o cabido a principal entidade.

Depois, temos as duas Irmandades históricas. Uma é a Irmandade da Misericórdia, que leva a efeito, na Quinta-feira de Endoenças, conduzir os penitentes. Hoje, as coisas são um bocadinho diferentes, mas as Misericórdias continuam a fazer essas procissões um bocadinho por todo o país, as procissões de EndoeNças ou dos Fogaréus. No caso de Braga, chama-se" do Senhor Ecce Homo" ou "do Senhor da Coroação". E é o caso da visitação às igrejas: também ainda se fazem alguns sítios, embora hoje de forma diferente, necessariamente, porque era para visitar o sepulcro. conduzir os penitentes às igrejas onde o Senhor estivesse no sepulcro. Ou seja, metia-se uma hóstia num recipiente em forma de sepulcro. Isso também foi abolido pelo Conselho Vaticano II, mas continua-se a fazer visitação às igrejas em Braga. Já não com uma prática tão adornada como no passado, mas, por exemplo, se formos à Póvoa de Varzim ou a Viana do Castelo, continua-se a fazer na noite de Quinta-feira Santa a visita às igrejas, que é uma tradição que brota destas procissões de Endoenças. E em Braga temos a figura do penitente, que é o farricoco, que também não é exclusiva de Braga. Há em muitos outros sítios, em Portugal e fora de Portugal, mas tornou-se o ícone, apesar de ter sido proibido várias vezes.

É um ícone até em termos de imagem…

Exatamente. Em termos de imagem, porque ela foi proibida no séc. XIX por causa dos distúrbios que causava na procissão. Ela regressa no início do séc. XX já como figura alegórica, apenas. Já sem a sua missão judicativa que tinha no passado, que aproveitava o anonimato para acusar as pessoas que estavam a assistir à procissão da janela. Os arcebispos foram proibindo isso até à proibição total.

Depois, temos a Irmandade Santa Cruz, que é fundada em 1581 e tem um templo todo ele devotado à paixão de Cristo. É uma Via-Sacra em espaço fechado, é um templo absolutamente notável e que organiza a procissão do Senhor dos Passos, no Domingo de Ramos. E é a segunda mais antiga que se faz em Portugal. Como sabemos, as procissões de espaços foram impulsionadas a partir de Lisboa, dos Passos da Graça, que é a mais antiga do país, pelos agostinianos. E foi um arcebispo agostiniano que introduziu esta procissão em Braga, o Frei D. Agostinho de Jesus, em 1597, exatamente dez anos depois da de Lisboa.

Depois destes focos de Lisboa e Braga, as procissões dos Passos foram-se disseminando e hoje são a prática mais repetida da Quaresma, que é uma Via-Sacra encenada e, de facto, é um momento muito importante, é o momento do arranque da Semana Santa de Braga, é a procissão do Senhor dos Passos. E ambas as irmandades organizam a procissão do Enterro do Senhor, que é a mais intensa, a mais demorada, em que participam outras instituições. É o momento alto da Semana Santa de Braga, aquela procissão, que era quase um funeral que atravessava as ruas da cidade, que outrora começava com o descimento da cruz, que ainda se faz em alguns sítios. Era o sentido de descer o Cristo da cruz e fazer o funeral pelas ruas da cidade.

Mas convém aqui não esquecer uma outra procissão, que foi recuperada em 1998, a procissão da Burrinha ou Cortejo Bíblico Vos Sois o Meu Povo, que, de facto, não é uma procissão, é um cortejo que recorda a história da Salvação até Cristo até à Páscoa, e que tem imensa popularidade. É um exemplo de vida de uma comunidade que se devota a uma prática da Semana Santa de Braga mais do que todas as outras. Há ali uma freguesia, uma paróquia que se mobiliza para fazer aquela procissão, e é absolutamente exemplar.

"Se perguntarem a qualquer bracarense, quer seja crente ou menos crente, ele vai dizer muito bem da Semana Santa"

Tem uma envolvência muito grande?

É absolutamente exemplar a esse nível, na forma como as pessoas sentem aquilo como o seu. E isso mais do que todas as outras, porque as outras resultam mais da organização das irmandades, com participação de outras pessoas, evidentemente. Mas esta é a comunidade que a faz, que a quis fazer, que a quis recuperar.

E é uma procissão que nasceu no séc. XVIII como Procissão da Senhora das Angústias, centrada nas dores de Maria, que se realizava em julho, no primeiro domingo de julho. Com as complicações da República, a procissão foi-se fazendo menos vezes. A irmandade que a organizava até foi extinta e é em 1960 que ela é integrada pela primeira vez na Semana Santa, graças ao papel do SNI [Secretariado Nacional de Informação].

Na altura, o SNI achava que Braga tinha de ter alguma coisa no Sábado Santo para prender os turistas. Manda a "ciência turística" que os turistas têm de ter ali algum atrativo. E, então, o presidente da Câmara da altura, o Santos da Cunha, que era paroquiano de São Vitor, lembrou-se de recuperar essa procissão. Era em julho, mas passou-a para a Semana Santa, para o Sábado Santo, criando assim este elo que faltava entre a Sexta-feira e o Domingo.

A verdade é que a procissão foi um sucesso, mas deixou de haver procissão da Senhora das Angústias, entretanto, na roupagem nova de 1998. Deixou de ser centrada nas dores de Maria, passou a ser centrada na História da Salvação e a verdade é que foi a comunidade que quis que ela regressasse em 1998. As pessoas só se lembravam da Burrinha, já não se lembravam da Senhora das Angústias. Portanto, a Burrinha passou a ser o ícone porque, efetivamente, vai uma Nossa Senhora, uma imagem em cima da Burrinha: uma Nossa Senhora do Egito. Porquê? Qual é a ligação às dores de Maria? Quem sabe o ideário das dores de Maria, sabe que cada espada representa uma das dores. A segunda dor é a fugida para o Egito e por isso é que ela se integrava, desde o início do séc. XIX, na procissão, além da imagem da Senhora das Angústias no andor e de uma imagem de uma Senhora em cima de uma Burrinha, a lembrar a segunda dor de Maria. Portanto, tem uma ligação, apesar disso, à Paixão de Cristo,. Como sabemos, a maior parte das dores de Nossa Senhora tem a ver com a Paixão.

Foi recuperada com imenso sucesso, decorre na quarta-feira, não no sábado, e foi por isso que ela deixou de se realizar em 1973, porque o Vaticano tinha revalorizado a Vigília Pascal e não podia haver uma procissão. As pessoas não poderiam estar na rua a assistir à passagem da Burrinha, enquanto decorriam as Vigílias Pascais nas comunidades. Não fazia sentido. A procissão acabou em 1973, mas o povo de São Vitor quis que ela regressasse. A freguesia de São Vitor é a maior freguesia de Braga, a maior freguesia do distrito, tem mais de 30 mil habitantes. Portanto, é uma freguesia dispersa e por isso a procissão também tem essa relevância de unir a comunidade.

Atualmente, é uma das principais atrações da Semana Santa?

Sem dúvida, sem dúvida.

"O âmago de todas as Semanas Santas é a participação da sua população, o seu envolvimento"

Sabemos que a cidade de Braga vai ter um espaço museológico dedicado à Semana Santa, instalado na Torre Medieval, provavelmente já no próximo ano…

Esperamos que sim. Eu fui chamado para fazer a curadoria dessa exposição. Penso que a pretensão da Comissão da Semana Santa e do Museu Pio XII é que ela fique pronta em 2025. Vamos esperar que assim possa ser.

Queria lembrar-lhe um texto seu, no qual liga o Bom Jesus do Monte, de que já falamos, à Semana Santa, como formas mais intensas de plasmar o imaginário da Paixão de Cristo na comunidade humana. São marcas que se ligam em Braga?

É verdade, é verdade. Acabou de me lembrar uma frase minha e já não me lembro onde é que a escrevi... Escrevi isso algures...

Sim, é num texto sobre a Semana Santa de Braga, numa revista da Associação de estudantes de Teologia...

Muito bem. Efetivamente, não é obra do acaso que os dois elementos que mais atraem e que mais reconhecimento internacional e nacional têm em Braga sejam o Bom Jesus do Monte - que é património da UNESCO e é um monumento absolutamente extraordinário - e a Semana Santa, que até passou a perna ao São João, a festa secular desde o séc. XII, na cidade de Braga. Isso tem a ver com este imaginário da Paixão de Cristo que se foi enraizando na comunidade, também da parte cristã fervorosa dos bracarenses e dos minhotos em geral. Ambos brotam da paixão de Cristo. Há uma ligação clara, há alguns protagonistas que pude estudar também na minha tese de doutoramento. Já aqui falei sobre o Frei Agostinho de Jesus, mas também sobre outras figuras que foram instigando este imaginário. A cidade, de facto, vive a Paixão. Quem quiser vir à Braga na Semana Santa vai ter uma experiência extraordinária de vivência da celebração da Paixão. Mas, se quiser vir noutras alturas do ano, pode ir ao Bom Jesus e tem também uma experiência da Paixão, desde o Pórtico até lá acima, à Capela da Ascensão.

"A cidade vive a Paixão (…) Quem, de alguma forma, quiser perceber a intensidade da vivência da Paixão de Cristo tem necessariamente de passar por Braga"

Que convite deixa para quem ainda não tem a oportunidade de conhecer ao vivo estas tradições que os bracarenses fazem questão de manter?

Acho que quem, de alguma forma, quiser perceber a intensidade da vivência da Paixão de Cristo tem necessariamente de passar por Braga. Paixão de Cristo em português, porque replicamos muitas práticas que se fazem noutros lugares. Mas há de facto um toque local e práticas que não se fazem em muitas localidades de Portugal e que podem vivenciar uma experiência única daquilo que é a história de uma gente - os bracarenses - e de uma série de arcebispos que foram passando e deixando a sua marca. Certamente sairão satisfeitos, quer sejam crentes ou não. Se calhar até se vão converter nas celebrações da Semana Santa em Braga.

Mas convém aqui não esquecer, o Compasso Pascal. Nós não nos ficamos pela procissão do Enterro. No domingo, em Braga, continua a haver a alegria do Compasso Pascal com sinos, foguetes, bandas filarmónicas e toda a gente a querer receber a Cruz, a querer beijar a Cruz na sua casa.

A Quaresma e as Solenidades da Semana Santa de Braga fazem parte do Inventário Nacional do Património Cultural e Material. Esta é uma distinção que deveria ser mais projetada?

Ela teve em espera alguns anos, não por culpa da Comissão da Semana Santa e de quem a introduziu, mas porque a Direção Geral do Património e Cultura estava com algumas dificuldades de pessoal e de gestão. Também dos processos de património imaterial. Foi por isso que só sucedeu em 2023. De alguma forma, ainda não tiveram tempo de trabalhar devidamente, mas eu acredito que já há menção no programa deste ano de que está reconhecida como um Inventário Nacional do Património Cultural e Imaterial. Teve grande repercussão mediática essa classificação, essa integração na lista e eu acho que ainda pode ser feito trabalho, nomeadamente investindo cada vez mais na investigação científica, em exposições na programação da Semana Santa. A Semana Santa não pode agora adormecer à luz dessa inscrição, até porque, daqui a uns anos, o registo tem de ser renovado. Convém não esquecer isso. A Semana Santa tem de continuar este trabalho de investigação. Acho que este centro interpretativo já é um sinal, mas pode haver ainda mais investimento na parte da programação.

"Há algumas práticas inscritas na liturgia de Braga (…) que foram prevalecendo apesar dos Concílios (…) as terem abolido. Braga teve um regime de exceção: os ritos mais antigos, foram prevalecendo"

Não o preocupa o rumo que está a ser seguido no país no planodo turismo? Não lhe parece que está a ser criada uma dependência econômica extrema do setor?

Isso é uma questão para os políticos resolverem. Efetivamente, o peso do turismo na economia é cada vez maior, e eu não vejo isso como negativo, isso é positivo para o país.

Mas a dependência excessiva não o será?

Pode criar um problema sério quando o turismo, eventualmente, por algum motivo, decrescer. A economia vai ressentir-se, sem dúvida. Tem de haver um equilíbrio, também para que os eventos que vivem do turismo não sejam descaracterizados por causa disso.

Há esse risco?

Há esse risco, claro, e muito mais num evento religioso como é a Semana Santa de Braga. Mas com atenção e reflexão naquilo que deve ser feito, acho que podemos conseguir um equilíbrio. Não podemos descurar essa atenção e isso é que é importante. Quem está à frente das entidades, sejam políticas sejam religiosas, seja de outros níveis, tem que ter isso sempre presente para não permitir a descaracterização daquilo que somos como sociedade.

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