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Investigadores criam fibras óticas vivas. Uma revolução no campo da bioengenharia

22 fev, 2022 - 08:00 • Olímpia Mairos

Grupo da universidade do Minho utilizou açúcares de algas e bactérias. O seu fabrico, explicam, “é rápido e barato, permitindo, por exemplo, detetar forças físicas, detetar a Covid-19 ou gerar modelos 3D de doenças como o cancro”.

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O Grupo de Investigação 3B’s da Universidade do Minho, numa colaboração com o Canary Center for Cancer Early Detection da Universidade de Stanford (EUA), criou, pela primeira vez, estruturas biológicas similares às fibras óticas, utilizando açúcares de algas e bactérias.

Em entrevista à Renascença, o investigador Carlos Guimarães fala da nova descoberta, cujo fabrico é rápido e barato, e que permite, por exemplo, detetar forças físicas ou a Covid-19 e até gerar modelos 3D de doenças como o cancro.

São fibras óticas, feitas à base uma nova classe de materiais que permitem fazer um interface e combinar a tecnologia das fibras óticas com eventos biológicos e digitalizar e converter tudo em informação e em dados para guiar possíveis terapias, possíveis estratégias de engenharia de tecidos.

Como surge esta descoberta?

A inspiração deste trabalho e das fibras baseia-se na tecnologia que usamos todos os dias para transmitir informação, para conectar computadores, internet e tudo mais, que é feito à base de materiais, o vidro que é um material sólido, muito bom para guiar luz, mas que, do ponto de vista biológico, é um material relativamente limitado. Nós não metemos vidro no organismo, não podemos implantar vidro em tecidos vivos.

Há vários anos que no grupo 3B's da Universidade do Minho temos trabalhado em materiais naturais, alternativamente ao vidro, por exemplo, materiais que são criados naturalmente em algas, bactérias, como alginato e goma gelana, e temos usado esses materiais manipulados para fazer vários tipos de estruturas, nomeadamente estruturas que são fibras. E temos usado essas fibras para várias aplicações.

Neste trabalho, especificamente em colaboração com a Universidade de Stanford (EUA), com um grupo que tinha muitos anos de trabalho, a nossa ideia foi fazer uma interface entre as fibras de materiais naturais, que nós temos trabalhado, e a parte da ótica. Quando conseguimos estabelecer que era possível criar fibras com estruturas inspiradas na fibra ótica, mas feitas à base destes hidrogéis naturais, apercebemo-nos que tínhamos uma plataforma inovadora para integrar toda a inovação, todo o conceito das fibras óticas com estruturas e com entidades vivas, nomeadamente células vivas.

Células conseguem viver e crescer numa forma tridimensional?

Basicamente são fibras óticas que, para além de conseguirem guiar luz, conseguem, ao mesmo tempo, transportar células vivas em constante atividade. Neste caso, nós focamo-nos muito em utilizar células de cancro, nomeadamente cancro da próstata. E basicamente, estas fibras óticas vivas o que nos permitem fazer é ser, no fundo, uma estrutura que é a nossa fibra, onde as células conseguem estar vivas, proliferar e crescer numa forma tridimensional, formando quase um tecido biológico com uma forma de fibra e, ao mesmo tempo, conseguimos guiar luz, daí a parte das fibras óticas. E depois, a interação entre a luz e as células vivas permite-nos acompanhar aquilo que se está a passar dentro da fibra de forma muito mais rápida e muito mais eficiente do que outras tecnologias.

O foco é essencialmente o cancro?

O que nós fizemos, neste trabalho, especificamente, foi preencher a nossa fibra ótica com células de cancro da próstata, células de cancro vivas. E à medida que as células progridem, no fundo, tal como no organismo, as células do cancro começam a proliferar e começam a formar uma estrutura tumoral. E essa estrutura tumoral, como é óbvio, vai preenchendo o interior da fibra ótica e vai afetando a maneira como a luz é guiada e, depois, podemos usar este processo medindo os sinais óticos que saem da fibra tal como os sinais óticos conduzem a internet. Neste caso vão transmitir-nos informação sobre o que é que está a acontecer, como esse cancro na fibra, em três dimensões. E depois nós usamos isso para fazer alguns testes, nomeadamente crescer o tecido tumoral e fazer testes, aplicar-se a outros tipos de drogas ou moléculas em concentrações diferentes e, de uma forma muito rápida, descobrir qual é a terapia, qual é o fármaco adequado para um determinado tipo de cancro ser efetivamente inibido. E, portanto, nestas fibras óticas vivas o que nós fazemos é digitalizar o evento biológico, para já focado essencialmente em cancro, para depois muito facilmente ajustar, mudar o tipo de células, potencialmente integrar células de um paciente, de forma a que muito rapidamente consigamos otimizar a terapia ou o fármaco ideal para tratar um certo tipo de doença.

Uma mais-valia no campo da medicina...

Estamos a falar em medicina personalizada porque o que acontece é que conseguimos, de uma forma muito mais eficaz, fazer testes que mimetizam uma situação viva e a situação do organismo num modelo mais pequeno que não só é um modelo biológico de engenharia de tecidos como uma interface direta com estruturas de ótica. Portanto, este, no fundo, é o conceito das fibras óticas vivas que são fibras óticas feitas à base uma nova classe de materiais que nos permitem fazer um interface que ainda não tinha sido feito até hoje que é combinar a tecnologia das fibras óticas com eventos biológicos e, depois, usar a luz para digitalizar e converter tudo em informação e em dados que podemos usar para guiar possíveis terapias, possíveis estratégias de engenharia de tecidos, entre outros.

Podemos afirmar que estamos perante uma verdadeira revolução?

De facto, o que acontece é que há muito, desde sempre, a biologia e os estudos biológicos e de células são feitos maioritariamente, dominados, por superfícies 2D. Nós tendemos a cultivar células em frascos e em placas que são condições que não tem nada a ver com aquilo que elas experienciam no organismo e, portanto, são muito úteis, mas que se afastam um bocado da relevância fisiológica e, por vezes, os testes que nós fazemos nesses tipos de superfícies de duas dimensões, depois, quando avançamos a nível de testes em modelos animais mais próximos da clínica, vemos que os resultados falham, porque, de facto, estávamos a fazer testes em condições que não recapitulam aquilo que se passa no organismo.

Tem havido um crescimento e uma tendência a tentar criar modelos tridimensionais mais complexos e mais próximos dos seres humanos, sendo que a grande falha é que, depois, é muito mais difícil analisar, obter informação de dados que nos permitam fazer análises matemáticas, estatísticas ou o que seja para tirar conclusões relevantes.

Nós criamos uma plataforma inovadora e revolucionária nesse sentido, uma vez que conseguimos combinar os modelos tridimensionais mais próximos daquilo que se passa no organismo e nos tecidos vivos e, ao mesmo tempo conseguimos ter uma plataforma que permite analisar esses modelos e esses eventos biológicos de forma muito mais rápida, sem necessitar do tipo de pré-processamento ou qualquer tipo de análise a jusante, basta-nos inserir um feixe de luz, captar o que é que está a sair da fibra ótica em segundos, devido à velocidade da luz. Conseguimos obter uma série de informações biológicas relevantes e, assim, uma interface única estabelecida entre o modelo tridimensional e a parte da quantificação rápida e eficiente que até agora tem sido feita à base de cultura de crescimento celular em duas dimensões.

Em termos de aplicações práticas, o que significa esta descoberta?

São várias as aplicações práticas. Para já, encontramo-nos ainda muito na fase de modelos in vitro, ou seja, modular doenças e modelar eventos biológicos em laboratório, o que por si só é algo que poderá ter aplicações diretas, porque podemos dirigir como uma estratégia de medicina personalizada em que, em vez de usarmos linhas celulares ou tipo de células vivas, podemos usar células obtidas diretamente de pacientes e usar os nossos modelos para estudar a doença de cada paciente e para adaptar a terapia de forma precisa ao tratamento de cada um de cada um.

Portanto, temos aí já uma aplicação direta na clínica. Mais à frente podemos pensar, como é óbvio, numa interface mais avançada. Estas fibras óticas são feitas de materiais compatíveis, ao contrário do vidro, e, portanto, podemos pensar em transportá-los diretamente para o organismo, implantar as fibras em tecidos biológicos que possam, por exemplo, monitorizar o processo de uma ferida crónica de forma que consigamos entender as forças que estão a jogar. Podemos fazer, pensar, em implantes, por exemplo, no nível cerebral e neuronal para fazer estimulação nervosa e tratamento de certas doenças em que a luz tem vindo a ser também aplicada como possibilidade e, portanto, há muitas outras aplicações para além daquela que nós estamos para já mais focados, exatamente na criação de modelos de doença tridimensionais que nos permitam testar e otimizar terapias.

Uma descoberta importante no combate das doenças infeciosas…

E possível usar também este tipo de estruturas para detetar biomarcadores ou moléculas de interesse, nomeadamente patógenos. E nós também aplicamos este tipo de estruturas para mostrar que era possível detetar de forma rápida e eficiente o vírus da Covid-19 - o coronavírus 2 – e, portanto, também é uma aplicação possível, embora nós nos tenhamos focado mais na parte das estruturas vivas, mas no sentido da implantação em interfaces com tecidos biológicos ou até com outro tipo de testes. Estas fibras também têm a capacidade de detetar esse tipo de moléculas que poderá ser importante no combate das doenças infeciosas. Como temos visto nos anos em que vivemos, são problemas graves e que podem voltar, porque ainda não desapareceu.

Qual o passo seguinte?

Temos duas grandes vertentes; uma é aumentar a complexidade dos nossos modelos. Nós começamos a trabalhar com modelos puramente de cancro, que se focam em células tumorais. Mas temos cada vez mais conhecimento na área do micro ambiente tumoral. Os tumores são doenças muito complexas em que não são só as células do cancro, mas toda uma outra entidade, para além das células da vizinhança do tumor, células imunes que, de facto, todas elas jogam e levam a que a doença tenha prognósticos muito diferentes. Portanto uma das nossas próximas etapas é aumentar a complexidade dessas nossas fibras óticas vivas com camadas multicelulares que possam interagir em tempo real, usando sempre a luz para quantificar e analisar este processo complexo e, portanto, cada vez mais aproximar-nos de um modelo de cancro que, de facto, recapitula aquilo que acontece no organismo.

A outra vertente é tentar pegar nestas estruturas, nestas fibras óticas que são capazes de guiar luz e transportar informação e fazer uma interface direta entre tecidos biológicos do organismo humano, inicialmente, claro, nos animais, e o transporte de luz como transmissão de informação, como deteção de biomarcadores de vírus, de moléculas de importância.

A nova classe de fibras óticas já foi patenteada. Tem potencial para continuar a crescer?

Acho que conseguimos inovar em várias áreas e criar uma série de possibilidades, não só naquilo que já demostramos, mas nas avenidas futuras que poderemos prosseguir. E temos visto isso, temos recebido feedback positivo de vários institutos, vários grupos de investigação, nem tanto de Portugal, mas de todo o mundo. De facto, têm olhado para a nossa descoberta como algo inovador e têm proposto conversas e possíveis colaborações porque, de facto, o potencial é grande e poderemos ver vários frutos a serem gerados desta nossa tecnologia.

A criação, pela primeira vez, de fibras óticas vivas foi o tema de capa da revista Advanced Materials, uma das melhores do mundo na área. O estudo foi também elogiado internacionalmente nos portais Advanced Science News e Nanowerk. A investigação foi realizada pelo aluno de doutoramento Carlos Guimarães, orientado pelos professores Rui L. Reis (UMinho) e Utkan Demirci (Universidade de Stanford).

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