Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

ENTREVISTA

Duas décadas de Alqueva. "Barragem tem água para três anos de seca"

08 fev, 2022 - 06:45 • Rosário Silva

Vinte anos depois de ter começado a encher, Alqueva é hoje uma exceção no panorama das barragens em Portugal. Em tempo de seca, o maior lago artificial da Europa não consegue resolver os problemas do país, mas alivia as preocupações, ainda que existentes, numa grande parte do Alentejo.

A+ / A-

Mesmo que não chovesse nos próximos tempos, com 79% da capacidade, Alqueva consegue garantir água para três anos de seca, assegura em entrevista Renascença, o presidente da EDIA - Empresa de Desenvolvimento de Infraestruturas do Alqueva, José Pedro Salema.

Foi para fazer face a estas situações de dificuldade que se contruiu Alqueva, com diferentes valências. Em duas décadas, o empreendimento de fins múltiplos reforçou o abastecimento público a mais de 200 mil habitantes dos distritos de Beja e Évora; vai passar a regar, já na primavera, mais 10 mil hectares além dos 120 mil inicialmente previstos e, na valência energética, as duas centrais hidroelétricas contribuem, atualmente, com cerca de 4% de toda a anergia hídrica em Portugal.

Um sucesso evidente, em particular, na vertente agrícola, com uma adesão surpreendente por parte dos agricultores e de investidores internacionais às novas culturas e técnicas de regadio, com destaque para o olival, o amendoal e a vinha.

Foi a 8 de fevereiro de 2002 que fecharam as comportas da grande barragem do Sul, dando início ao enchimento da albufeira que atingiu, pela primeira vez, a sua cota máxima - 152 metros - a 12 de janeiro de 2010. Alqueva já efetuou por três vezes descargas controladas e, nestas duas décadas, atingiu por quatro vezes o pleno armazenamento de 4.150 milhões de metros cúbicos de água.

Passam 20 anos sobre o encerramento das comportas da barragem de Alqueva, dando início ao seu enchimento. É, certamente, uma data para assinalar?

Claro que sim. De facto, é uma efeméride que é muito relevante, porque marca duas décadas de vida de uma infraestrutura que veio mudar por completo o panorama da região, principalmente no Baixo Alentejo, mas também, aqui, no Alentejo Central, com a chegada da água, que veio trazer inúmeras oportunidades.

Oportunidades em diferentes áreas?

Sim, desde logo, e em primeiro lugar, o regadio, a produção agrícola, com a assistência da água que Alqueva garante. Foi o mudar também o panorama do abastecimento público às populações. Todos nos lembramos, no passado, de ver aquelas situações de abastecimento com autotanques, em tantas vilas e aldeias no Alentejo e hoje essa situação, praticamente, desapareceu. A maior parte dos sistemas estão ligados à garantia da grande mãe da água de Alqueva. Portanto, quando existe alguma carência, é solicitado o reforço, e o abastecimento público é assegurado.

Veio também trazer mudanças na produção de eletricidade. Alqueva é uma gigantesca bateria que pode regularizar e absorver excessos de produção renovável e produzir energia quando é mais necessário em momentos de ponta de consumo.

Veio mudar também o turismo. Com certeza que a presença de um grande lago no interior, veio tornar mais atrativa a visitação, o usufruto do lago, as praias fluviais que se multiplicam, as unidades turísticas, hoje já existem algumas centenas de novas de novas unidades na região, e tudo graças, também, aos planos de água que foram criados com o projeto Alqueva. É um projeto estruturante, aqui no sul do país, e acho que podemos dizer, sem nenhuma falsa modéstia, que é um enorme sucesso.

Já abordou, por alto, as diversas valências deste empreendimento de fins múltiplos. A vertente agrícola é, sem duvida, umas das mais relevantes, inclusive, por ter mudado a paisagem da região. Isto é revelador do interesse dos agricultores e das empresas que têm investido neste território?

Há 20 anos havia um mito de que não existia água, que a barragem não existiria, que não iria encher e que não havia água suficiente. Outro mito que existia também em torno da agricultura era que não havia agricultores interessados em utilizar água. Isso desapareceu por completo. Nos últimos 10 anos, principalmente quando começámos a ter distribuição de água à agricultura, os projetos começaram a instalar-se, primeiro devagar, mas sobretudo nos últimos seis anos muito, muito rapidamente, e com a chegada, até, de um tipo de projeto apoiado em fundos de investimento internacionais, o que é uma novidade. Isto é uma coisa que não existia em Portugal e, hoje, está muito presente na nossa região.

Houve então uma enorme adesão, contrariamente ao que era perspetivado?

Veio acelerar a conversão do sequeiro para o regadio. Era a tal adesão que procurávamos e, em 2022, nós estamos perto dos 100% de adesão. Um número que nós nem sequer imaginávamos nos nossos melhores cenários, a plena utilização. Imaginávamos que seria em torno dos 85%, e, afinal, isso foi conseguido muito mais cedo e ultrapassamos claramente esse objetivo.

Daí que esteja em curso um plano de alargamento do empreendimento?

Sim, temos para os próximos anos um plano de expansão. Já em 2022 vão entrar em serviço 10 mil novos hectares, com os blocos de rega de Évora de Viana do Alentejo, e o de Cuba e Odivelas, assim como a ligação a Sines. Portanto, estas quatro obras vão ficar a funcionar já nesta primavera. São mais 10 mil hectares, além dos 120 mil que já estavam em operação.

Neste momento, estamos a preparar candidaturas ao Programa Nacional de Regadios para os projetos de Reguengos de Monsaraz, da Póvoa/Amareleja, da Vidigueira e da Messejana, com a ligação à albufeira do Monte da Rocha. Estes quatro blocos, para os quais ainda estamos à procura de financiamento, representam mais 20 mil hectares de novas áreas de regadio.

Deixe-me destacar também a ligação ao Monte da Rocha, que é uma albufeira que está muitas vezes nas notícias pelos piores motivos, pois está com um armazenamento muito baixo nos últimos anos, trazendo muito problemas para o abastecimento. A ligação a Alqueva vai eliminar, ainda que não por completo, a situação dramática que hoje vivemos no abastecimento público.

Já que fala de seca, na ultima semana, o Governo limitou o uso de algumas barragens para produção de eletricidade e para rega agrícola. Qual é a situação de Alqueva?

Aquilo que foi determinado para outras barragens é a nossa regra desde sempre. A hidroeletricidade não pode consumir água para a produção de eletricidade. Apenas o pode fazer em situações em que existe muita água, só se a barragem estiver excecionalmente cheia, é que é possível fazer o chamado turbinamento primário. Isto é, gastar água, passar água pelas turbinas e libertá-la para o mar. Numa situação como aquela que temos hoje, estamos em torno dos 79%, estamos abaixo do limiar do livre turbinamento.

A EDP, que é a nossa concessionária, está apenas autorizada a fazer turbinamentos secundários, ou seja, produz energia passando a água pelas turbinas de Alqueva para Pedrogão quando a energia está mais cara, quando é interessante gerar essa receita e, no momento posterior, é obrigada a devolver a água utilizada para o turbinamento, de volta a Alqueva, com a mesma máquina, pois são máquinas reversíveis, e podem funcionar como bombas.

Portanto, Alqueva funciona também na hidroeletricidade como uma bateria, um regularizador, consumindo energia quando a energia é barata ou há excesso de energia na rede, e produzindo em quantidade relevante também quando a energia está mais cara.

E isso pode colocar em causa o abastecimento?

Esse mecanismo não põe em causa a garantia de abastecimento. Estão salvaguardadas no contrato de concessão, essas proteções para a hidroeletricidade, que é de facto um grande consumidor. Para ter uma noção, se os quatros grupos de Alqueva estiverem a turbinar, passam 800 metros cúbicos por segundo.

E, para um leigo, o que é que isso significa?

Para colocar assim em perspetiva, quer dizer que conseguiriam encher uma piscina olímpica de 50 metros por 25 metros, com dois de profundidade, em três segundos. As pessoas conseguem imaginar o que é uma piscina olímpica, agora imagine que a quantidade de água que passa pelas turbinas, consegue encher uma piscina olímpica em cada três segundos. De facto, pode ser um grande consumidor. Se não fossem estas proteções que estão previstas, podíamos ter uma situação dramática, não é? Se tivéssemos gasto toda a energia para produzir a hidroeletricidade, porque a energia está interessante no mercado, depois não tínhamos água para agricultura, não é? Não queremos que aconteça.

Então, neste momento, em que estado se encontra a barragem?

Alqueva é uma exceção no panorama nacional, comparativamente com outros sistemas, basta estarmos atentos às notícias. Estamos com 79% de armazenamento. Fazendo, assim, um exercício muito simplista, se gastássemos tanta água como gastamos o ano passado, no consumo, na evaporação e nos caudais ecológicos, e se não entrasse mais água nenhuma, o que também não é plausível, pois mesmo em seca os rios e as linhas da água ainda conseguem escoar alguma coisa, teríamos água para dois anos, dois anos e meio. Temos capacidade para garantir água por três anos de seca. Ora, Alqueva foi desenhado para oferecer esta garantia e o que está a acontecer, não é surpresa nenhuma uma vez que o sistema está a funcionar como projetado.

Podemos agora falar de valores? Em duas décadas, o que já foi investido neste grande projeto?

Nós estamos, em termos de investimento total acumulado, perto dos 2.450 milhões de euros. Valor investido desde há 25, 26 anos a esta parte no projeto do Alqueva. Este enorme esforço foi repartido pelo orçamento nacional e pelo orçamento comunitário. Metade destas verbas vieram de Bruxelas e as outras foram geradas pelo nosso Orçamento do Estado.

Mas deixe-me dizer-lhe que houve também um impacto na economia, que ultrapassou claramente as expectativas. Só a construção gera impostos adicionais, nomeadamente as contribuições para a Segurança Social dos trabalhadores da construção, nos impostos sobre o rendimento ou na dinamização da economia local.

Tudo isso, são efeitos de recuperação do investimento muito rápido. E depois, na fase da operação. A área agrícola que está instalada, hoje, a beneficiar do Alqueva gera umas centenas de milhões de euros de valor acrescentado, todos os anos. Portanto, um investimento do Alqueva foi um excelente investimento do Estado português, que multiplicou o seu esforço por quatro ou cinco vezes, e que vai continuar a multiplicar e a render.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+