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Glovo, Uber, Bolt... Estafetas de plataformas digitais em greve porque não querem "trabalhar no escuro"

22 mar, 2024 - 06:30 • Miguel Marques Ribeiro

Os trabalhadores de entregas da Glovo, Uber, Bolt e de outras plataformas fazem esta sexta-feira uma greve por todo o país com a duração de seis horas: das 18h00 à meia-noite.

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“Isto não está a ser fraco, está a ser muito fraco”, lamenta Manuel, um estafeta da Uber, enquanto espera no Campo 24 de Agosto, no Porto, que chegue um novo pedido para se voltar a sentar na mota e partir para nova entrega com o peso de alguns quilos da mochila às costas.

Manuel já está reformado e trabalha como estafeta para compor o orçamento. “Tenho a idade que tenho, já ninguém me dá trabalho e isto é uma forma de ganhar algum." Aceitou falar com a Renascença por causa da greve que foi convocada por um movimento de estafetas para esta sexta-feira em todo o país. A paralisão tem início marcado para as 18h00 e fim previsto para a meia-noite.

As contas deste reformado, que já leva cinco a nos a fazer este tipo de trabalho, não deixam enganar. Ele aponta para o telemóvel: “Em sete horas de trabalho, fiz apenas uma viagem às 10 da manhã de 1,65 euros.” Assim, são precisas dezenas de serviços por dia para conseguir amealhar um bom pecúlio no final do dia de trabalho.

Manuel não tem dúvidas de que vai fazer greve: “Não há seguro de acidentes de trabalho, não há segurança social, não há apoios sociais nenhuns aqui na Uber”.

A luta dos trabalhadores que fazem as entregas para as plataformas digitais ,como a Uber, Glovo ou Boltfood, só para referir as empresas mais conhecidas, tem estado a intensificar-se. Ainda há um mês foi feita uma paralisação e quem está à frente do grupo de organizadores do protesto, de carácter informal e inorgânico, espera que estes sejam apenas os primeiros passos de uma transformação profunda do sector.

“A palavra revolta, eu acho que é o que mais nos define nesse momento”, diz Hans Donner, um dos porta-vozes da União Nacional dos Trabalhadores Independentes por App, designação sob a qual se apresentam. O grupo funciona com base no Whatsapp e reúne subgrupos das principais cidades do país. Metade dos membros é de origem brasileira.

Uma das principais reivindicações é o aumento dos valores pagos pelas empresas. Os trabalhadores exigem passar dos valores mínimos atuais, que rondam os 80 cênti os, para os três euros, base para a realização de qualquer entrega.

Hans argumenta: "Se nós formos contar o que é justo, que nós consideramos minimamente digno, que seria um trabalho de oito horas por dia, se eu perder uma hora para entregar um pedido de um euro, quanto terei no final das oito horas?”.
“O risco de acidente é muito grande. A minha vida fica na mão dos outros motoristas

Rapidamente, porém, a conversa toma outras direções e permite perceber que o que está em causa é a reforma de um sector caracterizado pela precariedade, pela instabilidade e desproteção social.

“São muitos desafios”, diz Hans e dá vários exemplos: “Não recebemos o adicional noturno, não recebemos absolutamente nada para fazer entregas debaixo de chuva e nós achamos isso absurdo. Não sabemos o que é um domingo e um feriado. Nós sabemos que é uma folga. Não sabemos o que são férias."

Começar um dia de trabalho como estafeta é sair “para trabalhar no escuro, porque eu não sei onde vou parar”. As estradas que vão ser percorridas, o número de horas que vão ser necessárias para amealhar um valor mínimo de salário, tudo isso são incógnitas com as quais o estafeta tem que lidar. “Eu saio hoje para trabalhar. O que vai ser de mim? Não sei”.

Mas há ainda outros problemas a ter em conta. Desde logo, o perigo de andar na estrada, vinca o estafeta radicado em Coimbra. “O risco de acidente é muito grande. A minha vida fica na mão dos outros motoristas e isso é muito desgastante."

A exigência física e psicológica do trabalho também é muito elevada e o estafeta tem de estar preparado para trabalhar em quaisquer condições climatéricas, sob chuva intensa ou calor sufocante. Fatores que, na perspetiva dos estafetas, acabam por não ser devidamente refletidos nos ganhos dos trabalhadores.

Plataformas aumentam valores pagos em dia de greve

A Autoridade para as Condições do Trabalho diz ter identificado 16 plataformas existentes no país. Há portanto, para além das mais conhecidas Glovo, Ubereats e Boltfood, diversas empresas de delivery (isto é, de entregas) de menor dimensão a operar no país.

A Associação Nacional das Aplicações Digitais (APAD), que representa o sector afirmou, em resposta a perguntas da Renascença que “as plataformas digitais a operar em Portugal ouvem constantemente os estafetas, e continuarão a fazê-lo, de modo a melhorar a sua experiência”.

No entanto, as plataformas estarão alegadamente a preparar um presente envenenado para os estafetas: aumentaram o valor pago por serviço no horário da greve, o que pode prejudicar as pretensões do protesto. “Silenciosamente aumentaram o valor oferecido”, desabafa um estafeta numa das contas de whatsapp usadas para partilhar informação e a que a Renascença teve acesso.

Para Alex, um estafeta oriundo do Brasil, há diversos exemplos de arbitrariedade na forma como os estafetas são tratados pelas plataformas. A qualquer momento, a conta do trabalhador pode ser suspensa ou mesmo anulada definitivamente, com poucas possibilidades de recurso.

ACT faz perto de 900 participações ao Ministério Público

Em 2023, a Agenda do Trabalho Digno introduziu nova legislação reconhece a existência de um vínculo laboral entre as plataformas digitais e os estafetas. Em junho, a ACT anunciou a realização de uma ação de inspeção orientada para os estafetas e respetivas plataformas digitais.

A inspetora-geral da ACT, Maria Fernanda Campos, enumerou à Renascença os resultados. “Tivemos um pouco mais de duas mil visitas inspetivas, abrangemos um total de 2600 estafetas e trabalhamos esse conjunto de situações em cerca de quase 1800 processos inspetivos. Levantamos 1212 autos que tiveram em vista verificar da regularidade do vínculo laboral e notificamos as plataformas para regularizar estes trabalhadores. As plataformas não regularizaram e remetemos para o Ministério Público 900 participações”.

Neste momento, há plataformas "que têm recebido decisões do tribunal que determinam que reconheçam esses trabalhadores como seus trabalhadores, como trabalhadores subordinados com todas as consequências legais", garante Maria Fernanda Campos.

Segundo a responsável da ACT, “As plataformas têm recebido decisões do tribunal que determinam que reconheçam esses trabalhadores como seus trabalhadores como trabalhadores subordinados com todas as consequências legais”, nomeadamente ao nível da atribuição de férias, do pagamento de subsídios de férias e “toda a aplicação eventual de convenções coletivas de trabalho”.

Esta alteração legal pode ter impacto nas expectativas dos estafetas. No entanto, ainda não se refletiu de forma generalizada na vida destes trabalhadores e a solução, para já, passa por formas de protesto direto.

“Nós vamos continuar”, garante Hans Donner. “Só pararemos quando nos derem os aumentos”. A expectativa, acrescenta, é que num futuro próximo seja possível abranger também os motoristas destas plataformas (Uber e Bolt, nomeadamente) numa frente comum.

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