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Na Guarda, não é fácil ir à farmácia. “Temos que nos desenrascar"

02 ago, 2017 - 13:06 • Liliana Carona

É o distrito com a segunda maior percentagem de farmácias em situação de penhora ou insolvência, depois de Portalegre. “Se não há habitantes, não há volume de negócio”, justifica o presidente da Junta de Famalicão da Serra.

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A Associação Nacional das Farmácias (ANF) alerta para “um cenário muito negro” no distrito da Guarda. A maioria das farmácias deslocalizou-se para os grandes centros e nas aldeias mais remotas é cada vez mais difícil o acesso ao medicamento.

Das 55 farmácias existentes no distrito, 17 estão em processo de insolvência ou penhora. A redução das margens de lucros e o preço dos medicamentos originaram dificuldades financeiras ao sector e colocam em causa a rede de saúde de proximidade à população.

São já 28,8% de farmácias no distrito nestas condições, quase que quadruplicando as 6,8% de 2012. É o distrito português com a segunda maior percentagem de farmácias em situação de penhora ou insolvência, depois de Portalegre (32,6%).

Os autarcas apelam a uma discriminação positiva para as farmácias do interior.

“Desenrascar” é a solução

Nas aldeias e vilas mais remotas do distrito da Guarda, faz-se o que se pode para que não faltem os medicamentos a quem precisa. Há diálogos idênticos aos que ouvimos numa farmácia. Mas os cenários são diferentes.

Na vila de Gonçalo, os utentes vão à junta de freguesia levantar os medicamentos deixados por uma farmácia de Belmonte, depois de um protocolo celebrado em Setembro do ano passado, para assegurar o serviço, após a farmácia local ter fechado portas.

“Tia Augusta vai tomar uma colher de xarope antes das refeições”, explica Dulcínia Calheiros, 40 anos, técnica superior da junta ao entregar os medicamentos a Augusta Gil.

“Podemos deixar a receita na junta, e depois a farmácia mais perto, a farmácia Costa de Belmonte vem buscar, nestas juntas mais pequenas, a proximidade existe sempre, é connosco que vêm ter”, esclarece a funcionária.

Na vila de Gonçalo, com cerca de mil habitantes e a mais de 20 quilómetros da Guarda, a farmácia fechou ainda nem fez um ano e a população recorre à junta de freguesia.

Augusta Gil, 87 anos, sente que incomoda. “A mim faz-me falta. Com a farmácia aqui não precisava de andar a incomodar ninguém”, desabafa.

Maria José, de 75 anos, elogia a iniciativa da Junta de Freguesia de Gonçalo. “Foi uma grande coisa. Se não fosse a junta não tinha os medicamentos. Tivemos que nos desenrascar e desenrascámo-nos bem”, sublinha, com um sorriso.

“Desenrascar” é o termo que mais se ouve pelas freguesias mais distantes do concelho da Guarda.

Em Famalicão da Serra, João Silvestre, com 69 anos e a viver a mais de 20 km da Guarda, também utiliza o termo. Ao fim-de-semana, a parafarmácia onde faz as encomendas está fechada e ir de táxi à Guarda são 20 euros, por isso, prefere esperar por segunda.

“Está fechada, agora só segunda. Se quiser medicamentos tenho que ir à Guarda. Tenho que aguentar: são 20 euros de táxi e seis de autocarro. Não dava, a minha reforma é pequenina, temos que nos desenrascar”, confessa à Renascença.

Também Alice Ferreira, de 75 anos, contesta o fecho da farmácia que foi substituída por uma parafarmácia em 2010. “Havia uma farmácia nos Trinta, também se deslocalizou para a Guarda, agora temos que esperar os medicamentos ou então ir à Guarda”, denuncia.

Honorato Esteves é o presidente da Junta de Famalicão da Serra, com pouco mais de 500 habitantes. Honorato deixa um alerta ao governo.

“Se não há habitantes, não há volume de negócio, a não ser que houvesse uma discriminação positiva para as farmácias rurais que aqui se quisessem instalar, porque não estou a ver ninguém a investir numa farmácia para ir perder dinheiro, vemos o país cada vez mais inclinado para o litoral, sobreviver é cada vez mais penoso e o governo central não pensa nestes termos, é que nós estamos a ocupar um terreno, que qualquer dia está desocupado, temos aqui um deserto”, reforça o presidente da Junta de Famalicão da Serra.

Mas afinal porque é que foi transferida a farmácia de Famalicão da Serra para o centro da cidade da Guarda? Nuno Linhares, director técnico e proprietário explica. “Porque em 2010 houve a introdução de genéricos, a baixa de margem de lucro baixou imenso, havia medicamentos com preço de venda ao público à volta dos 40 euros e passaram para 4 ou 5 euros. Em Famalicão da Serra, tínhamos 1.100 habitantes, agora temos 600, eu comecei a ver que não havia viabilidade e tive que tomar providências: pedi transferência para a cidade e autorização ao Infarmed para lá instalar uma parafarmácia”, explica.

A localidade de Valhelhas estava dependente de Famalicão da Serra, que ficou sem farmácia em 2010, e Nuno Linhares vai pessoalmente a esta freguesia entregar os medicamentos.

“Apesar de ter pedido a transferência para a Guarda e de estar agora a 30 km de Valhelhas, eu faço a entrega pessoal dos medicamentos, porque sou eu que conheço aquelas pessoas, e gosto mesmo de o fazer. Às vezes, vou lá e estão só ou duas ou três pessoas, mas não é por isso que deixo de lá ir”, garante o farmacêutico.

Por duas, por três pessoas, ou por 400 pessoas, a freguesia dos Trinta também deixou de ter farmácia, em 2010. Passou a ter uma parafarmácia, com a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica e a distribuição dos outros medicamentos mediante encomenda prévia.

Marisa Antunes, é a funcionária da parafarmácia. “Claro que ter uma parafarmácia é totalmente diferente de uma farmácia. Temos os medicamentos não sujeitos a receita médica, e tudo o que for sujeito, a farmácia da Guarda, vem cá à segunda e sexta-feira, e eles vêm entregar da parte da tarde”, esclarece sobre o procedimento implementado naquela freguesia, que fica a mais de 10 km da Guarda, onde está a farmácia mais próxima.

Prazeres Gaudêncio, 51 anos, moradora nos Trinta, acusa a falta de transportes para ir à Guarda, numa situação mais urgente em que precise de um medicamento.

“Antigamente, uma pessoa chegava aqui e levava aos medicamentos e agora tem que esperar pelo outro dia. Não dá jeito e agora nem táxis há nos Trinta, o que é pior”, conta.

Na Padaria dos Trinta, atrás do balcão, Fátima Fonseca, 54 anos, confessa que ouve muitas queixas dos mais idosos. “Há muitos idosos que não têm ninguém para lhes trazer os medicamentos, até porque mesmo a parafarmácia às vezes está fechada, porque a rapariga tem que andar a distribuir os medicamentos”, afirma.

“Já estou à espera dos medicamentos há dois dias e ainda não mos trouxeram”, conta Carlos Pinto, 64 anos. “Faz falta, porque são medicamentos para o sangue. Tenho que estar à espera”, diz com tristeza na voz.

Perante a ausência de farmácia nos Trinta, Bárbara Coelho, de 75 anos, em conversa com o presidente da Junta, ameaça deixar a localidade. “O meu marido conduz. Quando ele deixar de conduzir, vou-me embora para Santa Maria da Feira para ao pé da minha filha, porque aqui nos Trinta estão nos a tirar as facilidades todas, há pessoas idosas que não têm meios para ir à Guarda, até tiraram o autocarro ao sábado”, confirma.

O presidente da junta, Carlos Fonseca, denota o decréscimo da população, mas espera que o Governo tenha ideias brilhantes.

“Nós temos vindo a perceber esse decréscimo, desde a emigração, o fecho das fábricas, mas eu espero que haja ideias brilhantes dos políticos para não deixar morrer o interior”, realça.

Joana Cabral, proprietária da parafarmácia dos Trinta, conta que deslocalizou a farmácia para o centro da Guarda, por motivos económicos. “Uma farmácia na cidade dá muito mais na cidade do que numa aldeia. As pessoas são cinco estrelas, mas uma farmácia não sobrevive de simpatia e implementei a parafarmácia, porque prometi que não os deixava descalços”, sublinha.

A deslocalização das farmácias das pequenas freguesias para os grandes centros é questionada por Ana Paula Fernandes, directora e proprietária de uma farmácia em Seia, que está em processo de insolvência.

“Éramos três, agora somos cinco, e o mercado não cresceu. E uma das questões que está na lei é que a deslocalização é para um melhor acesso do utente ao medicamento, mas se pensarmos nestas localidades, estamos a falar de zona de interior, por estradas que demoram a chegar a Seia a cerca de 30 km”, reflecte.

“Deveria haver um cuidado maior para perceber se há melhor acesso ao medicamento, o futuro da farmácia, vai depender da forma como os nosso governantes olharem para as pessoas, se olharem como números, não vejo grande futuro”, defende a profissional do sector farmacêutico.

Ana Paula Fernandes pensou desistir de tudo. “Há três anos, tinha deixado isto, mas pensei nos sete colaboradores e nos utentes e tive que me propor à insolvência. Depois, o plano de insolvência é que foi aprovado, por maioria em tribunal, já vou no quarto ano, faltam 14 anos para concluir o plano”, regozija-se.

Números que a Associação Nacional de Farmácias observa como um cenário muito negro no distrito da Guarda. Carolina Mosca, delegada de um dos círculos da Guarda da ANF não esconde a preocupação.

“Um cenário muito negro, é uma situação de ruptura”, reconhece à Renascença. “No entanto, há muitas farmácias que estão abertas, em condições muito periclitantes, mas que não encerraram portas”, acrescenta, desanimada.

Carolina Mosca recorda que em 2011 enviou uma petição à Assembleia da República a alertar para a situação das farmácias no distrito da Guarda, mas lamenta não ter tido o eco esperado.

“Fiz uma petição individual, para prevenir que esta situação pudesse acontecer, fui ouvida na comissão de saúde, mas as acções não foram de acordo com a minha perspectiva, e tanto não foram que estamos a atravessar esta fase. O que eu gostaria de ver era o governo restituir a nossa margem na actividade, na Europa temos a margem de lucro mais baixa, cerca de 17,18%, não mais que isso”, conclui.

No concelho da Guarda, existem mais de 40 freguesias. Há 11 farmácias e todas – à excepção de uma, em Porto da Carne – ficam localizadas no centro da cidade. As outras que existiam estão de momento de portas fechadas, o que leva a que esperar seja uma rotina diária.

Ao nível nacional, as farmácias com acções de insolvência ou de penhora representam 20,1% da rede farmacêutica nacional, o que se traduz em 591 farmácias portuguesas.

Entre Dezembro de 2012 e Abril de 2017, o número de farmácias em insolvência subiu de 61 para 212, mais 247,5%. No mesmo período, o número de farmácia com acções de penhora aumentou de 180 para 379, o que representa um aumento de 101,6%.

Estas são conclusões do mais recente estudo do CEFAR para a Associação Nacional das Farmácias.

Comentários
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  • ANA PAULA PEREIRA SA
    01 mar, 2024 TORRES VEDRAS 11:09
    Bom dia gostaria de adquirir um Alvará de farmacia ,agradecia muito se padecem informar .
  • Joao
    02 ago, 2017 Porto 15:02
    Não conheço a realidade particular destas farmácias. Não querendo generalizar, e correndo o risco de ser injusto com casos muitos pontuais, fico um bocado cansado com esta vitimização generalizada por parte das pessoas que durante muitos anos ganharam muito, muitas das vezes prestando um mau serviço. Conheço realidades de farmácias que se apoiaram na grande facturação e margens destes negócios para ter uma vida acima daquele que o negócio pode hoje sustentar. Conheço farmacias que hoje estão insolventes porque havia famílias inteiras enconstadas ao negócio. Casas de férias, viagens, carros e até barcos. Conheço farmácias que investiram (ou melhor gastaram)o dinheiro que nao tinham em obras que nao acrescentaram valor ao negócio - só massajaram o ego dos seus proprietários. As faramacias continuam a ser negócios interessantes, mas como qualquer negócio tem de ser gerido com rigor e profissionalismo. Se calhar ja nao chega para pagar salarios à mae, ao pai, aos filhos e à tia! Acho que o ajustamento de preços e de margens vieram trazer algum equilíbrio aquele que era um negócio demasiado inflacionado e demasiado protegido. Se estão insolventes e não são viáveis só há um caminho - fechar portas, abrir novos concursos e deixar quem queira trabalhar com as condições que o mercado pode oferecer. Tenho certeza que há farmacêuticos que preferem ter uma farmacia, por mais pequena que seja a estar a ganhar 500 euros numa cidade com horarios loucos e sem garantias de futuro!
  • carla
    02 ago, 2017 Braga 14:34
    a renascença dá noticias que nenhuma outra empresa sabe é mesmo a melhor
  • G.L.F
    02 ago, 2017 Guarda 14:31
    Bom por mim podem fechar todas as farmácias e proibir todas as drogas farmacêuticas. A humanidade sobreviveu e viveu sem farmácias e sem essas drogas farmacêuticas durante milhões de anos e recorria à sábia natureza que tudo nos providencia. A burrice de hoje em dia é ainda acreditar que as farmácias são a solução para os nossos problemas. Pior, as farmácias e suas drogas farmacêuticas fazem parte do problema. Serão poucos aqueles que conseguem raciocinar e constatar esta verdade e realidade.
  • AP
    02 ago, 2017 Canada 14:31
    Ai esta a razao porque os que estao fora , nao querem voltar , pois por estas e outras ficamos por ca .de longe cumprimentos para o nosso povo .

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