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Podcast "A guerra ali ao lado"

Amigos e inimigos

02 jan, 2024 - 08:45 • Guilherme Correia da Silva (jornalista) e André Peralta (sonorização)

A Alemanha deixou de estar a meio da ponte entre a Rússia e a Ucrânia. Escolheu um dos lados - o lado ocidental, da Ucrânia e da NATO. Mas como será no futuro? Berlim e os aliados vão manter as costas voltadas para Moscovo até quando? "A guerra ali ao lado" é um podcast Renascença, em três episódios, lançado no mês em que se completam dois anos desde o início da invasão russa.

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A guerra ali ao lado: Amigos e inimigos (episódio 3)

Com a guerra, erguem-se trincheiras: Quem não está comigo está contra mim.

O chanceler alemão Olaf Scholz foi claro depois da invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022: "Não haverá uma paz ditada por Putin - nem os ucranianos, nem nós vamos aceitar isso. O Governo alemão continuará a apoiar militarmente a Ucrânia de forma ponderada, equilibrada e em estreita coordenação internacional."

Antes da guerra, a Alemanha não deu ouvidos aos avisos dos parceiros europeus sobre a deriva ditatorial do Presidente russo, comenta o historiador alemão Harald Biermann. Mas a entrada de tropas russas em território ucraniano foi um despertar.

"A Alemanha não pode ser uma ponte", afirma Biermann. "A única hipótese para a Alemanha é ser parte do Ocidente, ela é membro da União Europeia, membro da NATO. Se houver políticos que defendam uma política de mediação entre o Ocidente e o Oriente, isso seria o caminho para o abismo."

Virar costas é uma solução?

"O grande perigo é que não se revitalize a relação com a Rússia e que, a longo prazo, se volte a cair numa lógica de 'amigos e inimigos'", adverte Albert Scherr. O sociólogo alemão diz que é preciso começar já a pensar no pós-guerra. Como lidar com a Rússia? Como incentivar o diálogo?

"Amigos e inimigos" é o terceiro e último episódio do podcast da Renascença "A guerra ali ao lado", sobre a guerra na Ucrânia vista da perspetiva da Alemanha.


Ouça também:
Episódio 1: "Não podemos estar sempre a chorar"
Episódio 2 - O verde tem muitos tons
Página principal - A guerra ali ao lado


Transcrição integral do episódio 3


Hoje está um dia gelado, aqui na cidade de Bona. Estamos na zona oeste da Alemanha. Estão zero graus. E mesmo assim, há quem venha para aqui, para correr ou para dar um passeio. É assim o ano inteiro, aqui na cidade de Bona, e foi também assim no ano de 1989.

No verão desse ano, o chanceler alemão e o líder da União Soviética também vieram passear para aqui, para um sítio um pouco mais acima.

É um episódio contado nas memórias do antigo chanceler Helmut Kohl.

Mikhail Gorbatchov, o pai da "Perestroika", veio visitar Bona, a antiga capital federal. E sentou-se num muro com o chanceler Kohl, a apreciar a vista do rio Reno, aqui ao lado.

A dada altura, a conversa foi parar a um ponto polémico: A reunificação alemã. A Alemanha estava dividida por um muro há quase três décadas e Gorbatchov disse que isso era uma consequência lógica da evolução histórica.

Mas Helmut Kohl apontou para o rio Reno, mesmo ao lado, e disse algo do género: "Está a ver o rio, que passa aqui? Nós podemos tentar bloqueá-lo - tecnicamente, isso é possível - mas o rio vai galgar a margem. E tão certo como o Reno corre em direção ao mar, assim acontecerá com a unificação alemã e europeia."

SOM - Harald Biermann: "Na altura, a reunificação era vista como algo a longo prazo. Ninguém esperava que as mudanças no Leste e a reunificação da Alemanha acontecessem tão depressa."

Diz o historiador alemão Harald Biermann. O muro de Berlim caiu a 9 de novembro de 1989, poucos meses depois da conversa entre Kohl e Gorbatchov.

Até aí, a Alemanha Ocidental sonhava com a reunificação - aliás, era uma exigência inscrita na própria Constituição da altura, que dizia que "todo o povo alemão" era chamado a "completar" a "unificação e liberdade" da Alemanha. Mas os governantes em Bona tentaram também ajustar-se à realidade política e adotaram uma postura de aproximação, com o outro lado da Cortina de Ferro, em vez de confronto. Daí a reunião de Kohl com Gorbatchov.

O gás russo desempenhou um papel fundamental para essa aproximação, sobretudo depois da crise do petróleo no Médio Oriente, nos anos 70.

Harald Biermann: "A partir da década de 1970, a União Soviética foi um parceiro de confiança que forneceu sempre gás, mesmo em tempos de crise. As pessoas habituaram-se a isso, contavam com isso."

Este é o podcast da Renascença "A guerra ali ao lado", sobre a invasão da Ucrânia da perspetiva da Alemanha. O meu nome é Guilherme Correia da Silva, sou jornalista e correspondente da Renascença na Alemanha. Episódio 3: "Amigos e inimigos".

O primeiro contrato para fornecer gás natural russo à República Federal da Alemanha foi assinado em fevereiro de 1970, na cidade de Essen.

Em 1989, o muro caiu, a União Soviética desmoronou, mas o gás continuou a fluir. Até 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia. Nessa altura, a Alemanha já estava bastante dependente do gás russo. Rafael Loss, investigador do Conselho Europeu de Relações Internacionais, explicou porquê em entrevista à Renascença.

Rafael Loss: "Acreditou-se durante muito tempo que a União Soviética e depois a Rússia seria um parceiro confiável para o fornecimento de energia. Apostou-se sobretudo no gás natural russo, mais barato, como a tecnologia para a transição energética. E a Alemanha tornou-se extremamente dependente, economica e politicamente, nas últimas décadas."

Foi talvez por isso que a Alemanha se mostrou reticente em excluir os bancos russos do sistema de pagamentos internacionais SWIFT, como forma de sanção.

Por outro lado, enquanto as tropas russas se aglomeravam junto à fronteira ucraniana e faziam manobras, Berlim prometeu enviar 5.000 capacetes militares como ajuda. O anúncio foi visto como uma piada. Já em plena invasão, os ucranianos pediram tanques e a Alemanha recusou no início. Ver blindados alemães a combater tanques russos na Ucrânia lembrava demasiado as imagens da Segunda Guerra Mundial.

O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, queixou-se dessa hesitação aos deputados alemães, no Bundestag. Zelensky disse que a "economia, economia, economia" estava a relegar outros valores para segundo plano:

Volodymyr Zelensky, discurso no Bundestag a 17.03.2022: "Liberdade e igualdade. A oportunidade de viver livremente, de não se submeter a outro Estado que nos considera como o seu território. Porque é que [os nossos militares] estão a defender tudo isto sem a vossa liderança? Sem a vossa força? Porque é que outros países distantes estão mais perto de nós do que vocês?"

Depois do choque inicial, a Alemanha aclarou a voz. O chanceler alemão Olaf Scholz anunciou uma "nova era" no país, afastando-se da Rússia de Putin e aproximando-se de Kiev.

Olaf Scholz, discurso no Parlamento a 30.05.2022: "A União Europeia foi confrontada com diversas crises nos últimos anos. Esta guerra, aqui ao lado, é a maior delas todas."

Berlim fica a 1.300 quilómetros de Kiev, 15 horas de carro. A Alemanha não podia ficar de braços cruzados, disse Scholz.

Olaf Scholz: "As pessoas estão preocupadas. Eu também. Para uns, o nosso apoio não é suficiente. Para outros, estamos a ir longe de mais."

O medo era se a guerra se iria alastrar: será que a paz na Alemanha também estaria ameaçada?

Olaf Scholz: "Ajudar um país a defender-se, um país que foi atacado brutalmente, não é agravar a situação, é contribuir para pôr fim à violência tão depressa quanto possível. […] Não haverá uma paz ditada por Putin - nem os ucranianos, nem nós vamos aceitar isso [palmas]. O Governo alemão continuará a apoiar militarmente a Ucrânia de forma ponderada, equilibrada e em estreita coordenação internacional. Não vamos agir sozinhos, nem faremos nada que torne a NATO parte desta guerra, e vamos reforçar as nossas capacidades de defesa."

Na "nova era" anunciada pelo chanceler Olaf Scholz estão previstos 100 mil milhões de euros adicionais para modernizar o Exército alemão, a Bundeswehr. É uma soma histórica após décadas de cortes nas despesas militares ou subfinanciamento.

Parte desse dinheiro deverá ser investido em novo material - por exemplo, caças F-35 em vez de Tornados, corvetas, fragatas. A Alemanha prevê ainda desenvolver um sucessor para os tanques Leopard 2 e comprar a Israel um sistema de defesa antiaéreo ao estilo da Cúpula de Ferro. Outra aposta será no recrutamento de soldados, porque há mais pessoas a sair do que a entrar e o Exército está a encolher. Não é só em Portugal que diminui o número de efetivos.

Vou até à cidade de Koblenz. O Exército alemão acaba de abrir uma "loja" temporária, num centro comercial, para divulgar as suas ofertas.

Oficial do Exército 1: "A ideia é ir até onde está a sociedade, para mostrar quais as nossas valências ou quais as áreas onde precisamos de pessoal."

Explica um responsável do Exército para o recrutamento de novos militares.

A "loja" da Bundeswehr fica no primeiro andar do centro comercial, entre uma boutique de produtos para o cabelo e um espaço com carrosséis para crianças. Dentro da "loja", foi montado um pequeno percurso de obstáculos, há uma cama com a "História Militar Alemã" à cabeceira e uma estante com cabides onde estão pendurados diferentes casacos da Bundeswehr para vermos e usarmos, se quisermos. Algumas pessoas experimentam.

Oficial do Exército: "A Alemanha enfrenta o obstáculo da transformação demográfica e enfrenta desafios no recrutamento de trabalhadores qualificados."

A população alemã está cada vez mais envelhecida.

Oficial do Exército: "Isso também afeta bastante o Exército. Precisamos, pelo menos, de 20 mil pessoas por ano para que o Exército não diminua, e só alcançaremos esse objetivo com um recrutamento ativo, mostrando às pessoas todas as nossas valências e quais as especificidades deste trabalho."

Mas é difícil tornar o Exército mais atrativo, particularmente na Alemanha.

Heiko Borchert, professor associado do Centro de Estudos Avançados de Segurança, Estratégia e Integração, em Bona, recorda que a Alemanha e os alemães hesitam bastante quando se trata de questões militares. Isso tem a ver com a experiência da ditadura nazi e da Segunda Guerra Mundial, mas não só:

Heiko Borchert: "Pelo menos desde o fim da Guerra Fria - instalou-se uma sensação de paz e de que nunca mais haveria perigos existenciais a que se teria de responder militarmente - houve simplesmente uma negligência política em relação às Forças Armadas. A Alemanha tem uma relação extremamente ambivalente com as Forças Armadas, como um meio 'normal’ de exercício do poder do Estado."

Borchert e os colegas chamam a isso "pacifismo estrutural". Depois da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, cristalizou-se na Alemanha uma ideia de "contenção", aversa a operações militares. Essa política teve consequências nefastas para o Exército, continua Heiko Borchert.

Heiko Borchert: "O Exército alemão foi cronica e sistematicamente subfinanciado, nas últimas três décadas. Porque, de forma sistemática, as pessoas não quiseram lidar com esta questão e discutir o objetivo das Forças Armadas e que valor social e político elas têm."

Agora, tanto Borchert como outros especialistas em segurança duvidam que a Alemanha se consiga defender a si própria, se necessário. Se calhar, nem os 100 mil milhões de euros extra para a Defesa serão suficientes.

Heiko Borchert: "O Exército alemão precisou desta 'nova era' várias vezes, nas últimas três décadas. Até porque, destes 100 mil milhões, só 53 poderão ser investidos. O resto são impostos ou é para compensar a inflação ou para os câmbios. O que eu pergunto é: Porque é que, neste caso específico, o Ministério das Finanças não prescinde do IVA de 19%?"

O Ministério da Defesa sublinha que o foco é tornar a Bundeswehr apta para a guerra, porque "a guerra voltou à Europa". O ministro Boris Pistorius diz que é preciso um Exército que possa combater, que esteja operacional e seja resistente.

O gabinete de Pistorius recusou uma entrevista à Renascença citando "motivos de agenda".

Uma coisa é certa, de acordo com o especialista Heiko Borchert: a Alemanha mudou definitivamente de rumo.

Heiko Borchert: "A guerra foi um alerta, sem dúvida nenhuma."

É a "Zeitenwende", a "mudança de era" anunciada pelo chanceler Scholz. Antes da guerra, os críticos acusavam a Alemanha de minar o futuro da NATO com as suas hesitações. Agora, Berlim aproximou-se dos parceiros da Aliança Atlântica, aumentou as despesas com a defesa e reforçou o apoio à Ucrânia.

Do ponto de vista geoestratégico, o historiador alemão Harald Biermann diz mais:

Harald Biermann: "Nunca mais haverá uma política para o Leste tão ingénua que permita fazer negócios com Putin ou com um ditador semelhante, como aconteceu no passado."

O passado é o "local de trabalho" de Biermann. Ele dirige a "Casa da História", um museu sobre a história contemporânea da Alemanha, na cidade de Bona.

Com a autorização de Biermann, vou até um dos andares do museu, onde há uma pequena secção dedicada ao ex-chanceler alemão Willy Brandt (SPD), que foi amigo de Mário Soares e ajudou a fundar o Partido Socialista.

Uma turma de alunos do secundário para, mas não parece prestar muita importância à moldura com o Prémio Nobel da Paz que Willy Brandt recebeu em 1971, por "abrir o caminho para um diálogo construtivo entre o Oriente e o Ocidente”, em plena Guerra Fria e com a Alemanha dividida.

Um ano antes, Brandt assinou um tratado com a União Soviética para normalizar as relações diplomáticas. No museu, dá para ouvir o discurso de Brandt da altura, numa espécie de telefone de metal. É um discurso em que Brandt tenta tranquilizar os alemães.

Willy Brandt: "Este tratado não põe em causa, de maneira nenhuma, a ancoragem firme da República Federal e da sua sociedade livre na aliança ocidental. […] O tratado não põe em causa nada, nem ninguém. O objetivo é ajudar a abrir o caminho para o futuro. E se o fizer, beneficiará a paz, a Europa e todos nós."

Anos antes, a crise dos mísseis de Cuba já mostrara os riscos de seguir o caminho da confrontação. A resposta de Brandt foi a aproximação. O que o chanceler fez não foi nada de revolucionário - o que fez foi "evolucionário", diz o historiador Harald Biermann.

Harald Biermann: "Mesmo os conservadores já tinham constatado que a Alemanha não podia continuar assim [com uma postura confrontativa]. O grande mérito de Brandt foi ter implementado [a política de abertura ao Leste] de forma bastante consistente e rápida. Até porque ele era uma pessoa com credibilidade na Polónia e na União Soviética."

O tratado com a União Soviética foi o primeiro de uma série de tratados da Alemanha federal para normalizar as relações com os países do outro lado do Muro de Berlim. Era também uma forma de o Governo federal alemão se afirmar na arena internacional.

O muro caiu, a Alemanha reunificou-se e os laços com Moscovo mantiveram-se.

Mas o mundo mudou, a Rússia mudou. Vladimir Putin não é Gorbatchov - Putin já foi apelidado inclusive de "anti-Gorbatchov", por minar a democracia no país.

Harald Biermann: "Os países bálticos e a Polónia avisaram que Putin se estava a tornar um ditador, que fazia guerra para demonstrar o seu poderio. Mas nós não quisemos ver, até porque comprávamos gás barato - toda a gente queria fazer negócios com a Rússia. A política e a sociedade não levaram a sério o que estava a acontecer, foi por isso que tivemos um choque tão brutal quando a Rússia atacou a Ucrânia."

Agora, a Alemanha deixou de estar a meio da ponte. Foi para o lado ocidental.

Harald Biermann: "A Alemanha não pode ser uma ponte. A única hipótese para a Alemanha é ser parte do Ocidente, ela é membro da União Europeia, membro da NATO. Se houver políticos - e há, da AfD, mas políticos realmente influentes - que defendam uma política de mediação entre o Ocidente e o Oriente, isso seria o caminho para o abismo. Isso nunca funcionou na história da Alemanha."

Para a Alemanha, é óbvio. O apoio à Ucrânia tem a ver com a defesa da independência, da soberania e da integridade territorial do país. É isso que está fixado na Carta das Nações Unidas. Disse o chanceler alemão, Olaf Scholz:

Olaf Scholz, ONU, 19.09.2023: "Putin tem de compreender que nós - os países das Nações Unidas - levamos os nossos princípios a sério e, no mundo multipolar, não toleramos o revisionismo e o imperialismo."

Já nos tratados da chamada "Paz de Vestfália", assinados há 375 anos nas cidades de Münster e Osnabrück, a ideia era simples: para haver paz, é preciso que os Estados respeitem as fronteiras dos vizinhos e não se metam nos assuntos internos uns dos outros.

Mas há outro princípio que, com o passar dos séculos, se tornou cada vez mais importante: o princípio da cooperação. Exemplo disso é a criação da União Europeia ou a relação entre a Alemanha e a França depois da Segunda Guerra Mundial. Passaram de inimigos a melhores amigos.

Albert Scherr: "Para a Alemanha, a França era um absoluto inimigo na Primeira e Segunda Guerras Mundiais. E o que é que aconteceu? Depois da Segunda Guerra, reforçou-se a cooperação política e económica e investiu-se fortemente em intercâmbios de jovens franceses e alemães. Enviou-se turmas de estudantes para lá e para cá. Foram organizados encontros. Isso fomentou a compreensão mútua e quebrou a imagem do outro como 'bicho-papão'."

Albert Scherr é um sociólogo alemão. Ele diz-se preocupado com o discurso militarista na política e o investimento crescente em armas e munições. Em 2022, os gastos militares mundiais atingiram um valor histórico: 2,2 biliões de dólares.

Albert Scherr: "A minha posição foi sempre esta: não pode haver uma resposta pacifista a uma agressão militar. Mas isso não quer dizer que se abandone para sempre o pacifismo e o anti-militarismo. O meu receio é que na Alemanha e noutras partes da Europa se normalize a guerra e a corrida ao armamento, abafando posições críticas."

O sociólogo diz que é preciso começar a pensar no pós-guerra. Isso inclui a relação com a Rússia.

Albert Scherr: "O grande perigo é que não se revitalize a relação com a Rússia e que, a longo prazo, se volte a cair numa lógica de 'amigos e inimigos'."

Encontro-me com Tetiana Nazaruk. Ela e outros estudantes criaram uma associação e estão a recolher donativos, em Bona.

Tetiana Nazaruk: "Vamos ajudar alguns hospitais no leste da Ucrânia, vamos comprar medicamentos."

Estamos num pequeno jardim, numa avenida nobre da cidade. Os estudantes trouxeram bolachas, bolos, limonada e "kompot", uma bebida ucraniana que se faz cozendo em água cerejas, groselhas ou outros frutos frescos e acrescentando açúcar.

Há também um jogo, para descobrir que citação corresponde a que banda ucraniana.

Tiro de um saco um papelinho com uma citação. E diz assim: "A vida acontece a um passo da morte". Não sei que música é, mas no placar à minha frente está a imagem de uma banda com um símbolo de uma caveira. E é mesmo dessa banda.

ESTUDANTE 1: "Há um 'renascimento' [de tudo o que é cultura ucraniana]. A primeira vez que isso aconteceu foi em 2014, depois da revolução de Maidan. O segundo 'renascimento' foi agora em 2022. Aumentou a procura de música, filmes e livros em ucraniano."

ESTUDANTE 2: "Também há uma grande necessidade de demarcação da Rússia. E com a música e os filmes com traços da cultura ucraniana, é mais fácil fazê-lo."

À conversa com Tetiana Nazaruk, falamos no caso do músico ucraniano Monatik. Um cantor e dançarino que, no início da carreira, enfrentou vários contratempos e chegou a ser mentor do programa "The Voice" na Ucrânia. Até à guerra, Monatik cantava sobretudo em russo; agora, mudou para ucraniano… traduz até canções antigas.

Mas como serão as coisas depois da guerra? É uma questão que Tetiana Nazaruk se tem colocado a si própria.

Tetiana Nazaruk: "Depois de a guerra acabar, seria benéfico tentar melhorar as relações, porque continuamos a ser vizinhos, mas eu vejo como muitas pessoas reagem em relação isso, não querem fazer amigos, nem com os russos que apoiam a Ucrânia. Esta desconfiança só deverá desaparecer dentro de uma ou duas gerações. Os cidadãos russos têm de agir, tomar uma posição e encontrar formas de apoiar a Ucrânia. Ao mesmo tempo, também nos cabe a nós não destruirmos por completo as nossas relações com os russos e tentar construir uma parceria, dentro do possível."

Tetiana está a estudar Economia. Depois, diz que quer viajar, conhecer o mundo.

Tetiana Nazaruk: "… e encontrar um emprego relacionado com o desenvolvimento da Ucrânia, na esfera económica…"

Em Bona e noutras cidades alemãs, os ucranianos vão para as ruas, para que o conflito não caia no esquecimento.

Num desses eventos, um grupo de crianças trouxe uma bandeira da Ucrânia com várias mensagens escritas à mão. Uma delas destacava-se: em vez da saudação habitual "Glória à Ucrânia" - "Slava Ukraini" - estava escrito, em ucraniano: "Felicidade para a Ucrânia, Glória já nós temos".

Som da reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas a 9 de outubro de 2023

9 de outubro de 2023. O Conselho de Segurança das Nações Unidas reúne-se para falar sobre a Ucrânia. Sergiy Kyslytsya, o embaixador ucraniano na ONU, toma a palavra. E dirige-se ao representante da Rússia no Conselho…

Sergiy Kyslytsya: "Também reconheço aqui o representante do criminoso regime russo no assento permanente da União Soviética…"

A seguir, Kyslytsya condenou um novo ataque russo, a 5 de outubro, à aldeia de Hroza. Pelo menos 52 pessoas morreram… E o embaixador lembrou o início de uma nova guerra.

Sergiy Kyslytsya: "Dois dias depois do horror em Hroza, vimos imagens horríveis de Israel, com milhares de mísseis a sobrevoar os céus de Israel. Houve pessoas que foram mortas nas ruas, carros que foram esburacados com balas, com civis lá dentro. Abuso de reféns. Nós, na Ucrânia, estamos particularmente sensibilizados com o que aconteceu em Israel, porque o terror da invasão russa também trouxe tudo isso às aldeias e cidades ucranianas".

A posição da Ucrânia é clara, acrescentou o embaixador.

Sergiy Kyslytsya: "Em qualquer parte do mundo, todos os que provoquem terror e mortes têm de ser responsabilizados."

São ambas guerras aqui ao lado. Tel Aviv fica a quatro horas e meia de Berlim, de avião. Kiev ainda está mais perto.


Ouça também:
Episódio 1: "Não podemos estar sempre a chorar"
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"A guerra ali ao lado" é um podcast Renascença, em três episódios, que olha a partir da Alemanha para a invasão russa da Ucrânia e aprofunda as consequências políticas, sociais e económicas de uma guerra que gerou ondas de choque na Europa e no mundo. Pode subscrever nas plataformas de podcast e em rr.pt.

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