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​Terror em Cabo Delgado. “As pessoas têm pouca esperança de que as coisas vão mudar”

17 out, 2022 - 17:11 • Henrique Cunha

Saúde mental e malária são algumas das grandes preocupações dos Médicos Sem Fronteiras no Norte de Moçambique, cinco anos após o início dos ataques terroristas. A população continua a “viver com medo permanente”, afirma Mariana Abdalia.

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Os ataques terroristas na região de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique, começaram há cinco anos e “as pessoas têm pouca esperança de que as coisas vão mudar”, diz à Renascença Mariana Abdalia, da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF).

A população continua a “viver com medo permanente”. Os números apontam para cerca de um milhão de pessoas deslocadas no Norte de Moçambique depois de fugirem das suas casas em busca de segurança, devido ao conflito que começou em Cabo Delgado em outubro de 2017.

E viver um conflito tão prolongado, com uma perspetiva de futuro estável praticamente inexistente, “tem profundas consequências na saúde mental das pessoas”, adianta Mariana Abdalia, gerente de comunicações de campo da MSF em Moçambique, uma organização não-governamental (ONG) que chegou ao terreno em 2019.

Cinco anos depois do início dos ataques terroristas, não é por isso de estranhar que “algumas comunidades na região ainda vivam com medo permanente e continuem a sofrer traumas e perdas”.

Em entrevista à Renascença, Mariana Abdalia sublinha as dificuldades acrescidas relacionadas com os problemas de saúde mental de “pessoas que não se deslocaram somente uma vez, mas já duas, três, quatro e cinco vezes, e ouvimos casos desses aqui na província”.

Mariana Abdalia sublinha que “viver com esse constante medo, com essa constante incerteza do que vai acontecer no futuro tem consequências grandes de saúde mental em especial”, até porque “as pessoas têm dificuldade em planear o futuro, têm pouca esperança de que as coisas vão mudar”.

“Muitas pessoas também têm familiares, pessoas queridas que estão desaparecidas na província e não sabem onde essas pessoas estão. Muitas pessoas vivenciaram experiências traumáticas, viram entes queridos serem assassinados, por exemplo, na sua frente. E isso com o tempo provoca muitos problemas, e as consultas maiores que vemos nas atividades dos MSF de saúde mental são sempre relacionadas com stress agudo, com ansiedade e também com as questões relacionadas com a perda, com o luto”, relata.

Muitas pessoas com “tratamentos interrompidos"

A responsável destaca a malária como a "maior causa de consultas dos MSF" e revela que 80% das consultas mensais estão relacionadas com esta doença.

Mariana Abdalia alude também ao conjunto de pessoas que “tiveram os seus tratamentos interrompidos, como por exemplo pessoas com doenças crónicas, como a HIV, e que se não são tratadas passam a ter outras questões de saúde; passam a ter problemas renais, problemas cardíacos, e com o tempo isso também vai tendo um peso grande”.

Por outro lado, merece também uma atenção muito particular dos MSF “as grávidas que não tiveram acompanhamento pré-natal e que não têm acompanhamento pós-natal”.

A responsável pela comunicação da MSF em Moçambique adianta que “as questões continuam lá independentemente do conflito se aliviar, e de ter mais ou menos violência”, pois “são questões que vamos ter ainda durante muito tempo e é importante continuar a acompanhar as pessoas ao longo deste processo”.

A imprevisibilidade do conflito e a falta de segurança constitui outra dificuldade para as organizações humanitárias no terreno. “Não conseguimos adivinhar onde vai ser o próximo ataque, o próximo foco de violência e por consequência não conseguimos identificar com antecedência onde vai ser o próximo deslocamento em massa, e isso dificulta a resposta”, afirma Mariana Abdalia.

Como organização humanitária “temos que ser muito proativos, muito eficientes e fazer deslocações muito rápidas, de um dia para o outro para conseguir responder”, sublinha.

A tudo isto acresce a questão da falta de segurança, com Mariana Abdalia a lembrar que “a MSF está em algumas partes da região de Cabo Delgado, onde nenhuma ou poucas outras organizações humanitárias chegam”.

A responsável pela comunicação da MSF assegura que a organização tenta “sempre chegar aos lugares com mais difícil acesso, mas mesmo assim há regiões, há lugares da província em que não há nenhuma ajuda humanitária pela questão de segurança”. “Então essa questão também é um desafio para a MSF, assim como para outras organizações que trabalham por aqui”, refere.

Tudo isto exige das ONG que se encontram no terreno uma grande flexibilidade de adaptação às necessidades criadas pelos focos de instabilidade e de violência.

No caso da MSF, “nós estamos sempre alerta, a olhar onde há mais necessidade, até porque os focos de violência vão mudando ao longo do tempo, ao longo dos meses, ao longo dos anos, mas a população vem-se deslocando em massa há muitos anos, desde o começo do conflito, e por isso, a necessidade é constante, e sempre vamos mudando”.

“Já mudamos projetos de localizações algumas vezes aqui na província, mas sempre seguindo as necessidades das populações conforme elas se vão movimentando”, justifica Mariana Abdalia, neste testemunho à Renascença, cinco anos depois do início dos ataques terroristas na região de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique.

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