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Reportagem Renascença

Prisão: uma mancha que não sai do currículo

19 set, 2022 - 06:21 • Tomás Anjinho Chagas

Jovens cumprem pena e sentem dificuldades em encontrar emprego quando saem. “A Constituição diz que não se pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime, mas isso não acontece. És sempre condenado várias vezes cá fora", lamentam. Associação Companheiro, que apoia na reinserção, diz que também é alvo de preconceito por ajudar reclusos e ex-reclusos.

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Foram presos na casa dos 20 anos, idade em que a maior parte dos jovens está a formar-se ou já integrou o mercado de trabalho. Cometeram erros na juventude e pagaram por eles. Mas o peso do preconceito não sai, quando se sai da prisão.

Segundo os dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), até dezembro de 2021, havia 2.035 reclusos com menos de 30 anos nas prisões portuguesas. A esmagadora maioria são homens (só 132 são mulheres).

A Renascença conversou com duas pessoas que “foram de cana” quando tinham menos de 30 anos e que relatam as dificuldades de voltar a entrar na vida ativa. De encontrar vagas para eles, para pessoas que têm uma mancha no currículo chamada cadastro.

O registo criminal pode não ser o principal problema. O estigma é, na maioria das vezes, a verdadeira barreira a uma reinserção completa na sociedade.

“No momento em que fui preso, a única coisa que pensei foi: pronto, acabei com a minha vida"

Gilson Fonseca, 34 anos


Do sonho do teatro ao pesadelo da prisão

Nasceu em São Tomé, mas foi para Portugal que a mãe o trouxe quando era pequeno. Gilson Fonseca tinha vários sonhos quando era novo. “Ser ator, cheguei a fazer teatro, dança e futebol, que é uma das minhas grandes paixões”, conta à Renascença.

Esteve preso durante sete anos e meio. Está em liberdade há poucos meses. Acredita que, “com o passar do tempo, vamos crescendo e ter alguma coisa de base” e que quando estava na casa dos 20 queria estar ligado ao comércio.

O caminho foi desviado pelas circunstâncias que viveu. Fala em “falta de apoio” familiar e social, mas não passa culpas pelas escolhas que fez.

“Não, é a minha cabeça. Jamais poderei pôr a culpa em cima de alguém por erros meus. Jamais”, atira Gilson.

Foi para trás das grades com 26 anos. Na altura já esperava o desfecho. “Tinha noção, obviamente. Um dia tanto se anda à chuva, que se molha”, relata.

“No momento em que fui preso, a única coisa que pensei foi: pronto, acabei com a minha vida. Sabia perfeitamente o estigma que existe sobre os reclusos, as oportunidades que existem para os ex-reclusos”, afirma Gilson Fonseca.

É um fardo que sabia que iria carregar. “Se uma pessoa sabe que a outra pessoa foi presa, não vai estar com boa vontade. Vai pensar: 'Ah, ele já esteve preso, por isso é bandido'”.

É “uma dupla penalização”, confirma Gilson. Primeiro é-se punido por cometer o crime, e depois é-se punido por ter estado preso. Quem já passou por isso dá um exemplo do que os ex-reclusos sentem, por vezes, quando se candidatam a uma vaga de emprego: “Hum... esteve preso, vai roubar-me, vai dar-me problemas. Já preenchemos a vaga”.

É um estigma que impede uma rápida reintegração, as negas sucedem-se a quem tem o registo criminal como apêndice das candidaturas. No entanto, nem todas as empresas o fazem, admite Gilson.


Gilson reencontrou-se na prisão. Mas saiu de bolsos vazios

Agora, com 34 anos, conta que quando se entra na prisão a mente “desliga-se automaticamente” e que essa mudança é a alavanca para uma pessoa se reencontrar. É a “melhor parte”, considera. Foi assim que Gilson percebeu que “nunca mais” teria de voltar a “um sítio como aquele”.

Não tem dúvidas sobre o papel que um emprego pode ter na reinserção, pessoal e na sociedade. Assim que entrou, começou a trabalhar. Foi “faxineiro de piso” (limpezas), copeiro e ajudante na cozinha, no momento de preparar os lanches e o pequeno-almoço.

“Há aquela necessidade de estar ocupado. Estando ocupado, a tua mente não está a pensar em coisas más. Mas sim a preparar o teu caminho para o futuro”, garante Gilson Fonseca.

Mas há também aspetos práticos que são resolvidos através do trabalho. “Uma pessoa sai da cadeia, e o bolso vem vazio. Eu preciso de comer e me safar. Ninguém vai ajudar-te”. Foi outro empurrão para trabalhar enquanto estava a cumprir pena: pagar as contas.

Foram esses hábitos que criou na prisão que o deixaram voltar à vida rapidamente. Atualmente, trabalha na Câmara Municipal de Lisboa, emprego que conseguiu através da Associação Companheiro (que acompanha reclusos ou ex-reclusos).

É um caso de sucesso imediato, mas o próprio Gilson Fonseca relata casos de pessoas que não querem sair da cadeia depois de cumprirem pena, porque se sentem perdidos ou desmotivados.

“Façamos nós essa reflexão: para uma pessoa desistir assim da vida é porque estava perdido e sem ninguém. E onde é que houve essa ajuda? Só para termos a certeza de que ela não existe”, atira Gilson Fonseca.

"Para arranjar trabalho, vão sempre colocar-te entraves"

Cleidir Moura, 32 anos


Cleidir quis estudar, mas começou a "faltar o básico"

Com 18 anos, voou de Cabo Verde para Portugal para estudar Biologia Marinha em Braga, mas bateu de frente com a realidade.

“Só o alojamento e a propina era o ordenado da minha mãe, que estava a morar em Lisboa”, explica Cleidir Moura.

Numa viragem forçada, foi para a Marinha Grande para fazer um curso profissional de Turismo. Só que também esses planos foram interrompidos. A escola onde estava inscrito e que fornecia refeições aos alunos faliu.

Foi aí que começou a “faltar o básico”, e a falta de condições levou-o a começar a “fazer a vida”, ou seja, a cometer crimes, na gíria prisional. Admite que “não sabia bem o meio” em que estava a meter-se, mas não se desresponsabiliza. Diz que a decisão foi dele.

Cleidir ficou com o futuro “em stand-by”. Mas acredita que o que passou na prisão foi decisivo para se endireitar. “A partir do momento, só pensas em sair. Lá dentro, há muitos se perdem, muitos se tornam homens”.

Trabalhar foi o escape que encontrou na cadeia e, até foi a cumprir pena que começou. “O meu primeiro trabalho foi na prisão”, conta Cleidir, que explica que há dois tipos de pessoas: os que têm horários, regras e trabalho; e os que ficam à espera que a comida vá ter à cela.

Agora, cá fora, Cleidir Moura explica que os hábitos que criou foram “decisivos” para estar preparado para o mundo real. “Chega ao final do mês e recebes 30 euros, mas estás a fazer isso não por dinheiro, por liberdade”.

“Liberdade” é a palavra que o guiava todos os dias em que esteve a cumprir pena. Mas quando ela chegou, com ela chegou outro problema: a falta de documentação legal. O sistema “castiga-te. Assim não vais a lado nenhum”, dispara Cleidir.

“A Constituição Portuguesa diz que não se pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime, mas isso não acontece. És sempre condenado várias vezes cá fora. Para arranjar trabalho, vão sempre colocar-te entraves”, afirma.

Cleidir Moura conseguiu encontrar emprego através da Associação Companheiro. Foi essa a sua salvação, conta. Mas nem todos têm essa sorte, e tal como Gilson Fonseca, este homem também relata casos de pessoas que não querem sair da prisão por terem medo de enfrentar a realidade.


"Ainda nos entendem como uma associação que apoia o crime"

Verónica Leirião, Associação Companheiro


Preconceito chega também a quem apoia ex-reclusos

O acompanhamento psicológico dos reclusos nos meses que antecedem a sua saída é fundamental para preparar a transição. Verónica Leirião, psicóloga, é uma das pessoas que põe em marcha este plano.

Trabalha na Associação Companheiro, e é lá que recebe a Renascença. Acompanha dezenas de pessoas, algumas estão prestes a sair, outras já saíram. Nega que o futuro dessas pessoas esteja “hipotecado”, defende antes que fica “adiado”.

Verónica Leirião explica que tem acesso aos processos dos ex-reclusos, mas que a sua missão “não é julgá-los”. O objetivo é sim facilitar o regresso à liberdade de pessoas que estiveram muito tempo longe dela.

Esta psicóloga acredita que o país está a evoluir no que toca ao trabalho de reinserção, “já muitas coisas vão sendo feitas”, mas “há um longo caminho a ser feito”. Refere-se a questões práticas como “o que pode falhar? Onde é que podem ser precisas verbas? A documentação está em ordem? Onde existe ajuda?”

Verónica Leirião considera que trabalhar na prisão é, “sem dúvida”, um passo importante para a reinserção ser mais fácil “cá fora”. Mas também admite que esse é “privilégio” a que nem todos têm direito. Há, por vezes, falta de oferta dentro dos estabelecimentos prisionais.

Quanto ao estigma em relação aos ex-reclusos, Verónica Leirião sublinha que ele tem vindo a esbater-se ao longo do tempo, mas que não deixou de existir.

“Obviamente ainda há e muito. Até para a nossa associação, ainda sentimos esse preconceito. Ainda nos entendem como uma associação que apoia o crime, quando na realidade fazemos exatamente o contrário”, defende a psicóloga, bem habituada a pessoas que estiveram a cumprir pena.

É um caminho que ainda tem de ser feito. Até porque, conta Verónica Leirião, continuam a existir casos de pessoas que são afastadas de uma candidatura por terem cadastro.

Cumprir sonhos adiados

Estes são apenas dois casos de pessoas que foram presas antes dos 30 anos e que se batem com o problema de voltar à vida em idade ativa.

A Renascença tentou contactar várias vezes o Ministério da Justiça e a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, com o objetivo de melhor conhecer a realidade da população que está presa, mas sem respostas.

Cleidir Moura e Gilson Fonseca estiveram muitos anos atrás das grades, mas hoje trabalham e todos os dias se sentem mais perto da reinserção.

Os sonhos são agora mais palpáveis: Cleidir quer terminar os estudos, obter a documentação legal, viver com os filhos, visitar a família em Cabo Verde e um dia ajudar também outros ex-reclusos na Associação Companheiro.

Gilson Fonseca, agora a saborear os primeiros meses de liberdade, só deseja conseguir sustentar-se. “Tanto me faz, só preciso de pôr comida na mesa. O mais importante é isso. Deus está no comando”.


Créditos:

Texto: Tomás Anjinho Chagas

Voz e entrevistas: Tomás Anjinho Chagas

Sonoplastia: André Peralta

Design: Rodrigo Machado

Música utilizada na reportagem áudio: "Presta Atenção" - Valete

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