29 nov, 2016 - 16:18 • José Bastos
O presidente da Associação de Pilotos Portugueses de Linha Aérea (APPLA), Miguel Silveira, acredita que o facto de a aproximação a Medellín se fazer em zona montanhosa possa ter ampliado o conjunto de riscos associados á operação, que terminou em tragédia, esta terça-feira.
Numa altura em que uma longa investigação está, apenas, a começar, Miguel Silveira sublinha que, como sempre acontece, a indústria aeronáutica saberá absorver as lições deste acidente, em nome do reforço da segurança.
Com os dados disponíveis, há três factores que podem chamar a atenção de um especialista: mau tempo, um aeroporto difícil de montanha e uma companhia sem autorização do ANAC para aterrar no Brasil. A causa do acidente pode estar na acção concertada destes factores?
Num acidente aéreo, os quadros colocados aos investigadores são sempre mais complexos em função das características do cenário em que se opera. Neste caso, uma região montanhosa - que conheço relativamente bem - e também o mau tempo poderão ser factores a contribuir para o acidente.
Com elevado grau de probabilidade, vamos encontrar estes dois elementos - montanha e estado do tempo - como factores contribuintes. Já quanto à razão de a Agência Nacional da Aviação Civil do Brasil não reconhecer esta aeronave ou a sua empresa de transporte aéreo, as explicações podem ser variadas e não terem nada a ver com aspectos ligados à segurança de voo. Podem estar relacionadas com questões burocráticas. Do modo que não me posso pronunciar sobre esta questão da ANAC e nesta fase da investigação diz-me muito pouco.
Pelo que se sabe, o comandante reportou problemas eléctricos a bordo e despejou os depósitos. É um sinal de que estaria com problemas?
Sim. Chama-se "fuel jettison" ou alijamento de combustível. Significa que o piloto quer o avião mais leve com o intuito de aterrar de imediato e procura ter um peso adequado para a aterragem. Nas aeronaves já os problemas eléctricos, quando são graves, podem ser anomalias de alguma complexidade para resolver, especialmente em aviões modernos, cuja operacionalidade depende em muito dos seus circuitos eléctricos e electrónicos, que estão também relacionados com a parte computorizada.
O avião AVRO RJ-85 é o aparelho indicado para operar neste tipo de cenário de aeroporto de grande complexidade em zonas montanhosas?
Este avião AVRO RJ-85 (BAe 146) é uma excelente aeronave (origem British Aerospace) com um palmarés de segurança muito bom. Quanto a este avião - não sei se exactamente este modelo, mas um parecido - operou há uns anos nos Açores, numa tentativa da SATA Azores ter aviões acção-reacção, vulgarmente conhecidos como aviões a jacto e, sim, é um avião bastante bom, muito adequado a essas condições. Não vejo que por aí haja algum factor acrescido de risco por ter estado envolvido este modelo em particular.
É comandante de Airbus A330 e voa regularmente para a América do Sul. Há condições específicas - distintas da Europa ou América do Norte - que amplie riscos?
No meu caso específico, o cenário que requer cuidados especiais de pilotagem e navegação são as áreas montanhosas. Em tudo o resto, voar em qualquer parte do globo com os regulamentos ICAO - Internacional Civil Aviation Organization - com quase todos os estados a pertencer a esta organização da aviação civil - a estabelecerem regras comuns leva a riscos semelhantes em todo o lado.
Agora, de facto, voar em regiões montanhosas, como aparenta ser este caso, requer cuidados acrescidos. Especialmente, há condições não normais ou mesmo de emergência a requerer perda imediata de altitude. Em regiões montanhosas, geralmente, não podemos ir para qualquer sítio, antes temos de ter uma navegação muito cuidada. Temos de saber exactamente para onde levamos o avião.
Muitas vezes, quando temos de ir mesmo para altitudes bastante baixas (em caso de falha de motor ou de um problema eléctrico que nos faça descer - associado ao facto do piloto ter expelido o combustível, o 'fuel jettison', faz com que o avião fique mais leve eventualmente estaria com problemas na capacidade de manter a altitude) temos sempre de ter muito cuidado.
Temos de saber exactamente onde se está e muitas vezes navegar pelos vales montanhosos que, por exemplo, há naquela região. O aeroporto de Medellín tem características de operação muito específicas e de grau de dificuldade elevado.
O facto da comitiva ter saído de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, em duas etapas, porque o avião charter não tinha autorização para voar no Brasil, indicia algum tipo de poupança por parte de quem organizou a deslocação?
Não posso dizer nada, porque, na realidade, não sei detalhes. O que posso dizer é que, em matéria de seguranç,a temos uma máxima na aviação: "Se investir em segurança é caro, então basta aguardar pelo primeiro acidente para saber exactamente o que fica caro". De modo que temos de investir em segurança com cabeça, tronco e membros e saber em que alíneas se está a investir.
Temos de ter um apertado controlo no ciclo de produção e segurança do investimento que está a ser feito, mas do que não há dúvida é que o investimento é vital para a segurança aérea. Não estou, de modo algum, a dizer que não tenha sido o caso neste acidente em Medellín.
De certeza que investiam em segurança, mas na aviação comercial não há nada mais caro do que um acidente, que, no limite, pode até colocar em causa a sobrevivência da empresa.
Inicia-se agora uma longa investigação que acabará, como sempre na aviação, por contribuir para maior segurança na indústria?
Sim. Em absoluto. Ainda há dias estive a falar como convidado num seminário organizado pelo Eurocontrol [organização europeia para a segurança da navegação aérea] e esta forma da aviação aprender com os seus próprios erros é hoje denominada de "Segurança 1" e levou-nos já a patamares de segurança muito bons. Mas parece que não conseguimos melhorar. Não conseguimos sair daqui e está a surgir aquilo que, pomposamente, se chama de novo paradigma de segurança que é a "Segurança 2".
A grande diferença entre estes dois paradigmas é de que, em vez de aprendermos apenas com os erros, aprendamos também com o que fazemos bem. Porque, se aprendemos apenas com os erros, com os acidentes ou incidentes, por mais pró-activos que sejamos, na realidade estamos a ser reactivos, porque a verdade é que o acidente já aconteceu.
Assim, a "Segurança 2" é o novo paradigma impulsionado pelo professor Erik Hollnagel diz que devemos também aprender com o que fazemos de bem ao longo das nossas carreiras, ao longo dos nossos voos, ao longo do nosso dia. Esta transição da "Safety 1" para "Safety 2" é uma pista muito interessante para o futuro, mas seguramente que se vai aprender alguma coisa deste acidente de Medellin. É muito importante perceber o comportamento das aeronaves que operavam nas imediações do aeroporto na altura do acidente, perceber o que lhes aconteceu de diferente deste voo acidentado. Perceber o que aconteceu de diferente para melhor em oposição do que correu mal com o AVRO RJ-85. Esta é precisamente a diferença entre a "Segurança 1", o que temos feito até agora, e a "Segurança 2" que parece ser o paradigma emergente: o estudar aquilo que se faz bem.