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Reportagem Renascença

Atrasos e queixas disparam nos CTT privatizados. Nove anos depois, o carteiro não toca sempre duas vezes

07 nov, 2022 - 08:30 • Fábio Monteiro (texto) , Marta Pedreira Mixão (vídeos e fotos)

Milhares de queixas, inúmeros atrasos e uma privatização que ainda provoca ressentimentos. Os Correios de Portugal são uma das empresas nacionais com mais reclamações. A encomenda de Ana foi entregue a um desconhecido e desapareceu. A carta registada de Eduardo foi parar a uma repartição de Finanças. O iPhone de Bruno nunca chegou. Insatisfação com o serviço da operadora já deu origem a episódios de violência. Em 2021, o Estado esteve quase a entrar na estrutura acionista da empresa. Mas depois a geringonça acabou.

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CTT. O carteiro não toca sempre duas vezes
CTT. O carteiro não toca sempre duas vezes. (Fotografia e vídeo: Marta Pedreira Mixão, Imagem: Rodrigo Machado)

De porta em porta, na avenida General Roçadas, em Lisboa, Nuno Sabino avança e repete uma coreografia: como um pianista a fazer um glissando, deixa a mão deslizar por todos os botões do intercomunicador. Depois, espera – umas vezes mais, outras menos. Por sorte, alguém sempre atende e pergunta: “Quem é?” Ao que o homem de 50 anos, com saco a tiracolo e um molhe de envelopes nas mãos, responde: “Bom dia. São os correios.”

Para o carteiro, que partiu em mais um giro do Centro de Distribuição Postal (CDP) de Arroios, as ruas e esquinas do bairro da Graça não têm recantos secretos nem muitos rostos desconhecidos. Há 28 anos que, enquanto profissional dos Correios de Portugal (CTT), calcorreia (e conduz), colina acima, colina abaixo, aquele “quadrado”. Por vezes, conversa com alguns moradores sobre os “glory days”, os tempos de jovem; outros tiram-lhe as palavras: “Já vi crianças a crescer que agora são adultos e casados.”

Nuno gosta de contactar com pessoas, da aparente ausência de rotina; nunca trabalhou para outra empresa que não os CTT. “Nem sequer consigo imaginar o que é trabalhar num escritório.” Nenhum momento, nenhuma experiência, o fez repensar a carreira de carteiro, pela qual enveredou quando tinha ainda 21 anos. Nem mesmo o período “surreal” da pandemia, quando andou a trabalhar em Lisboa sem ver “uma pessoa ou carro na rua”.

Por vezes, claro, “é difícil lidar com o público”, admite. Nem todas as pessoas o recebem de braços abertos, em particular quando aguardam por uma carta ou encomenda que tarda em chegar: “Nós entregamos 2.000 cartas por dia. Mas quando há uma que tu estás à espera… se não chega nesse dia, de certeza que não vais encontrar um cliente bem-disposto.”

O carteiro garante, ainda assim, que casos de clientes maldispostos são a exceção à regra. Aliás, os correios “ainda são bastante respeitados pelos portugueses, principalmente pela população mais idosa”. E têm fãs, como por exemplo Luís Evangelista.

Em julho, o docente do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, que mora na zona de Santa Iria da Azóia, fez confusão com uns papéis e esqueceu-se de ir levantar uma encomenda. Acontece que, como Luís costuma utilizar regularmente o balcão dos CTT, a gestora da agência local tomou a iniciativa de o contactar pelo Facebook: mandou-lhe uma mensagem a avisar que, se não fosse levantar o volume, este seria devolvido ao remetente.

Agradecido pela atenção, o professor universitário fez questão de elogiar o serviço numa publicação no Twitter. “Achei absolutamente extraordinário. Isto é o tipo de coisa que se não é para agradar ao cliente, não sei o que será.”

A opinião de Luís quanto ao serviço dos CTT, contudo, não parece ser a regra. Dados do Portal da Queixa (PQ) relativos aos CTT e CTT Expresso, a que a Renascença teve acesso, indicam que há cada vez mais portugueses desavindos com a operadora de correios. Em boa verdade, ao nível nacional, salvo as três gigantes das telecomunicações – MEO, NOS e Vodafone – e a TAP, poucas empresas há mais de quem reclamem tanto.

Um aumento de 2.700% nas queixas

Só em 2021, os CTT e o serviço CTT Expresso foram alvo de 7.136 e 3.249 reclamações, respetivamente, no Portal da Queixa. Nas redes sociais, tornou-se hábito ver um pulular de queixas, pessoas a zurzir, quase diariamente, contra os serviços da empresa. Há mesmo um grupo no Facebook, com mais de 5 mil membros, cujo propósito é “denunciar o mau serviço prestado pelos CTT”, onde abundam relatos de encomendas perdidas e atrasos na expedição, entre outros problemas.

No primeiro trimestre de 2022, a operadora recebeu uma média de 79 reclamações no PQ por dia – um volume que não tem comparação com as 50 que recebeu durante todo o ano de 2013, quando foi privatizada por iniciativa do Governo de Pedro Passos Coelho.

No período 2014-2018, o volume de reclamações referente em exclusivo aos CTT aumentou uns surpreendentes 2.681%. Entre 2018-2022, mais 22%. (Quando a empresa foi privatizada em 2013, o serviço CTT Expresso ainda não existia.)

Estes números sinalizam uma mudança de tom da relação dos portugueses com os CTT, mas devem ser olhados com cautela, aponta Pedro Lourenço, fundador do Portal da Queixa. Por um lado, a pandemia empolou-os. Por outro, o volume de queixas tem vindo a crescer na generalidade dos serviços. “Hoje optamos muito mais facilmente por plataformas digitais do que os tradicionais livros de reclamações físicos [como acontecia em 2013]”, explica.

Pedro Lourenço não nega, em todo o caso, que as queixas relativas aos CTT sejam muitas – e que continuam a aumentar. Durante os primeiros nove meses de 2022, foram submetidas 3.860 e 1.515 reclamações referentes aos CTT e CTT Expresso – mais do que em todo o ano de 2018. Tudo indica ainda que, até ao final deste ano e tendo em conta que o Natal é o momento de maior procura dos serviços da operadora, o registo de 2019, pré-pandemia – 4.345 (CTT) e 1.984 (CTT Expresso) – seja ultrapassado.

Trabalhador há quase três décadas dos CTT, Nuno Sabino não tem explicações para o número de queixas. Escusa-se também a estabelecer diferenças no período pré e pós privatização. “A única coisa que consigo dizer e não posso escamotear é: ao dia 25 recebo o meu ordenado e nunca me ficaram a dever nada.”

O homem de calções e pólo vermelho não se compromete. É uma peça numa grande engrenagem, não tem “uma visão alargada” de todas as roldanas: quais precisam de ser oleadas, quais podem estar em falta. “Pode-se melhorar? Claro. Tudo se pode melhorar”, diz, mas não concretiza.

Na pilha de reclamações dos correios, porém, não faltam pistas. Existem, inclusive, elementos suficientes para tentar dar resposta a perguntas como: nove anos depois de terem sido privatizados, como estão os CTT? E a qualidade do Serviço Postal Universal? Qual a origem da enxurrada de queixas? E devia o Governo ter renovado o contrato de concessão?

O vórtice das encomendas perdidas

Nas dezenas de queixas diárias que chegam ao Portal da Queixa sobre os CTT, abundam relatos de falhas nos serviços da operadora. Falhas essas, note-se, que não são novidade e que já foram sinalizadas por diferentes entidades, ao longo dos últimos anos. Em maio de 2020, uma auditoria da Inspeção-Geral de Finanças (IGF), relativa ao período 2013-2017, revelou ter ocorrido “uma degradação da qualidade do serviço postal” desde a privatização dos CTT.

Mais recentemente, uma auditoria da Autoridade Nacional das Comunicações (ANACOM) – realizada entre julho de 2021 e janeiro de 2022 – detetou múltiplas falhas: desde atrasos “significativos” no encaminhamento de correio prioritário e normal, até a ausência de distribuição em certos giros “por períodos de tempo bastante alargados”.

Dos vários centros de distribuição inspecionados, Loulé, Póvoa de Varzim e Santarém ficaram particularmente mal na fotografia. Verificou-se que, “num período alargado de tempo, uma proporção largamente superior a 5,5% do correio prioritário diário não atingiu o seu destino até ao primeiro dia útil após ter entrado na rede postal dos CTT”.

A história de muitos queixosos, como Ana Igreja, não é por isso fruto de uma banal onda de maldizer. A jovem de 23 anos habita numa moradia em Sintra e, até há pouco tempo, nunca tinha tido “grandes problemas” com os CTT. “Sempre confiei neles.” No pico do Natal de 2021, durante a pandemia, quando uma encomenda demorou mais de dois meses a chegar, nunca perdeu a “esperança”, nunca apresentou queixa.

Foi a contragosto, portanto, que Ana passou a integrar o coro de reclamações dos CTT, quando, em setembro, fez uma compra no valor 40 euros pela internet e pagou para que a encomenda fosse remetida através do serviço CTT Expresso. Em teoria, isto dar-lhe-ia “maiores garantias” na rapidez e segurança da entrega – a encomenda teria um código que lhe permitiria seguir o percurso do volume e, no momento de entrega, o carteiro estaria obrigado a pedir a identificação e o número de contribuinte da pessoa que o recebesse em mãos.

Todavia, não foi isso que aconteceu. No dia em que a jovem recebeu mensagem dos CTT a dizer que a encomenda ia ser entregue, “não estava ninguém em casa”. “Quando cheguei, não havia nenhum papel para levantamento, nem a encomenda estava dentro da caixa de correio”, conta.

De boa-fé, Ana procurou pela encomenda no quintal de casa: o carteiro podia tê-la atirado lá para dentro. Depois, foi bater à porta de alguns vizinhos, espreitar algumas ruas vizinhas. Mas nada. Foi ao consultar o estado do pedido no site dos CTT que teve uma má surpresa: no registo, o volume aparecia como entregue.

“Nos CTT Expresso, eles pedem sempre o contribuinte e a identificação da pessoa [que recebe]. O recibo de entrega, contudo, estava limpo, não tinha dados nenhuns. A encomenda foi perdida à porta. O carteiro entregou-a a alguém. Nunca vamos saber a quem foi entregue, porque não foi pedida a informação, como eles se comprometem a pedir.”

A perceção de Ana sobre os trâmites de segurança – que é partilhada por muitos portugueses que recorrem ao serviço Expresso dos CTT – está errada, diz Miguel Salema Garção, porta-voz dos CTT. “Não existe nenhuma obrigatoriedade [protocolada] de pedir o número de identificação fiscal e o nome quando a encomenda é entregue.” A pessoa que recebe o volume deve apenas dar uma “assinatura, não é obrigatório recolher outros dados”.

Em declarações à Renascença, Garção garante que os CTT levam “muito a sério” o tema das queixas, mas recusa-se a falar de casos particulares e admite possíveis falhas.

“A qualidade do serviço não deve ser medida pelos clientes 'tout court', porque as reclamações muitas vezes vêm da expectativa que o cliente tem relativamente ao serviço versus a própria realidade do serviço que se contrata.”

Como qualquer cliente insatisfeita, Ana Igreja apresentou reclamação da encomenda e ligou para linha de apoio dos CTT. E serviu de pouco. “Perguntei ao operador: ‘Diga-me sinceramente, sei que não me pode dar a sua opinião, mas estes casos costumam ser resolvidos?’ A resposta dele foi quase rir-se. Ele disse: ´Como você disse, não posso dar a minha opinião.’ Logo aí, senti que não ia ver a encomenda”, lembra.

Apesar de ter provas que o carteiro falhara na entrega, cerca de uma semana depois de ter apresentado reclamação a jovem de 23 anos recebeu um email dos CTT a “fechar” o processo.

“Compreendo a sua insatisfação e lamento o seu desconforto. Informo que tenho indicação em como a situação está regularizada. (…) Continuaremos a contar consigo, na expectativa que o sucedido não tenha colocado em causa a confiança depositada nos nossos serviços”, lê-se no email, datado de 14 de setembro, a que a Renascença teve acesso. Por outras palavras: o que está perdido, perdido está.

Dados...

À luz de dados do Portal da Queixa, o caso de Ana Igreja é representativo de quase todos os motivos de reclamação do serviço CTT Expresso: 34% por atrasos na expedição, 31% por problemas na entrega na morada certa, 28% por falhas no apoio ao cliente, 5% por extravio de pacotes e 6% por outros problemas.

Os principais motivos de reclamação dos CTT são basicamente os mesmos, mas em proporções diferentes: 49% por atrasos na expedição, 22% apoio ao cliente, 19% problemas na entrega, 6% encomendas perdidas e 5% outros motivos.

Chamado ao Parlamento para uma audição, no início de setembro deste ano, o CEO dos CTT, João Bento, reconheceu que a operadora tem recebido “muitas reclamações”, mas garantiu que “o grosso vem do processo de desalfandegamento [do correio internacional], que tem por base um guião da Autoridade Tributária, que é mais exigente do que na maioria dos países”.

Os relatos compilados no Portal da Queixa atestam a justificação dada pelo CEO, mas apenas de forma parcial. Efetivamente, desde 1 de julho de 2021, as compras extracomunitárias deixaram de estar isentas de IVA – o que veio criar novos constrangimentos no serviço dos CTT. Fonte da operadora revelou à Renascença que até esta mudança “apenas 2% do correio internacional ia à alfandega”, mas que, desde então, quase todo passou a ir.

Em 2021, a ANACOM, regulador que compila e analisa queixas submetidas de vários pontos, inclusive as diretamente aos CTT, contabilizou 41,1 mil reclamações sobre a empresa de correios – quase o dobro que em 2019 (22,9 mil). A fatia das queixas sobre desalfandegamento foi de 9%.

... e dores de cabeça

Subsistem, logo, outros motivos de reclamação. E relatos mais graves do que a demora provocada pelo processo de desalfandegamento de encomendas, como comprova Eduardo Santos.

Em março, o advogado lisboeta enviou uma carta, relativa a um contrato, por correio registado, para um cliente. E tudo correu como seria de esperar: no escritório, recebeu o comprovativo de entrega dos CTT. A missiva, contudo, não tinha ido parar à morada correta.

Eduardo só percebeu que algo tinha corrido mal quando recebeu uma chamada de uma repartição da Autoridade Tributária, situada na mesma rua para onde havia endereçado a carta.

“Claro que as Finanças abriram [a carta] para perceber o que era e não era. A senhora que me contactou pediu muita desculpa. Só quando abriu é que percebeu que não era para eles. Meteu aquilo outra vez num envelope das Finanças e mandou para mim”, conta.

É fácil compreender que o erro dos CTT poderia ter gerado um grande problema legal, se a carta tivesse informação privilegiada ou sensível. Por sorte, não foi o caso.

Sem paciência para dramas maiores, a única ação que Eduardo tomou foi apresentar uma reclamação e pedir a devolução do dinheiro, os cerca de 4€ que pagou pelo correio registado. Todavia, passados mais de seis meses, três e-mails depois, ainda não recebeu nada.

Por lei, os CTT têm de responder a todas as reclamações no prazo máximo de 15 dias, e “obviamente cumprem com os procedimentos em vigor”, diz Miguel Salema Garção, porta-voz da operadora, à Renascença. A maioria é “resolvida no primeiro contacto”, inclusive nos casos de devoluções, adianta a fonte.

Contudo, no caso de Eduardo, a única resposta que obteve dos CTT, relativa à entrega em morada errada, foi uma mensagem “automática”. Fosse o valor em causa maior, teria talvez ficado “muito” mais chateado. Na mesma proporção, quiçá, que Bruno Lopes.

O homem de 43 anos, que mora em Unhais da Serra, concelho da Covilhã, já anda às turras com os CTT há algum tempo. “Liguei para o apoio ao cliente mais de 50 vezes.” A 29 de setembro de 2021, uma amiga, que mora no Luxemburgo, enviou-lhe um IPhone 11 Pro Max, que deveria ser a sua “prenda de aniversário antecipada”. Um ano depois, a encomenda ainda não chegou ao destinatário.

Segundo uma declaração dos serviços postais do Luxemburgo, a que a Renascença teve acesso, o volume chegou a Portugal a 3 de outubro. Os CTT, contudo, dizem que nunca cá aterrou. Por email, a 11 de março de 2022, a operadora disse a Bruno que “não tem evento de receção” em solo passado.

No ano passado, a amiga de Bruno submeteu pelo menos duas reclamações nos serviços postais do Luxemburgo, que foram depois reencaminhadas para os CTT. “Fizeram queixas de lá, mas nunca obtiveram resposta”, acusa.

Exasperado, com medo de que a encomenda tivesse ficado “enfiada num buraco, sem nunca ter sido scanneada”, devido à confusão provocada pela Covid-19, Bruno chegou a ligar para a linha de apoio dos CTT a pedir o número do centro de “recolha de encomendas internacionais” da operadora. “A gente houve aquelas histórias de encomendas cujos donos não aparecem e que a certo ponto são vendidas em leilão. Os números ou a morada podem ter ficado desgastados”, explica.

Bruno queria procurar, estava disposto a revirar caixas num “contentor” algures esquecido. Uma pesquisa na internet levou-o até uma morada, um edifício em Lisboa que nunca pode visitar.

Máquinas a disparar e triar

O principal motor de processamento de correspondência dos CTT em Portugal fica em Cabo Ruivo, nos arredores de Lisboa, num edifício plantado não muito longe do Parque das Nações. Se a encomenda de Bruno Lopes chegou algum dia a solo nacional, conforme garantem os correios do Luxemburgo, é 100% certo dizer que passou por ali.

Dos cerca de 2.2 milhões de objetos que os CTT movem por dia, o Centro de Produção e Logística do Sul (CPLS) processa perto de 1.8 milhões, cerca de 85% do total. Neste número, está incluído todo o correio internacional que entra no país. O Centro de Produção e Logística do Norte (CPLN) fica com os restantes 15%.

António Guilhoto é diretor de Operações de Correio em Cabo Ruivo, e há 30 anos que trabalha para os CTT. Numa visita ao centro, de forma demorada e detalhada, explica à Renascença como funcionam todas as engrenagens: quem, como, que máquina e a que horas. Se há problemas ao nível da distribuição, não tem origem naquelas instalações, garante. “Tomara eu ter mais correio até.”

O edifício do CPLS tem três pisos. No superior, conta com um pequeno museu sobre a história do serviço postal em Portugal, uma cantina aberta em permanência para os trabalhadores, e várias salas de reunião. No intermédio, há um posto dos CTT aberto ao público. Já no inferior, o mais resguardado dos olhos de quem passa, é onde acontece toda a ação – e onde fica a entrada e saída dos muitos camiões distribuem o correio para todo país.

Num dos cantos, há quatro máquinas, que se parecem um pouco com caixas de supermercado megalómanas, que dividem o correio em formato regular (envelopes) consoante os centros de distribuição para onde deve ser remetido. Em teoria, cada uma pode “tratar 800 mil cartas por dia, portanto temos muita capacidade”, faz questão de frisar o responsável.

Nos bastidores dos CTT: O que acontece às nossas encomendas? Foto: RR/ Marta Pedreira Mixão
Nos bastidores dos CTT: O que acontece às nossas encomendas? Vídeo: Marta Pedreira Mixão

Perto do centro, está estacionado outro conjunto de máquinas, que tem como função analisar minuciosamente a correspondência já triada e deixá-la “sequenciada” – isto é, organizada por morada e giro, pronta a distribuir pelos carteiros. Depois, noutra ponta do espaço, há ainda um tapete gigante circular onde um conjunto de trabalhadores dispõem a correspondência de formato irregular – encomendas, embrulhos artesanais – para que essas moradas sejam lidas por uma máquina especial.

Enquanto a visita decorre, há sempre trabalhadores a conduzir empilhadoras, a circular, a descarregar e a carregar caixas com correio. A maior fatia do trabalho, ainda assim, percebe-se que está nas roldanas de máquinas. “Perto de 95% do correio que passa no centro passa por máquinas. Desse número, perto de 75% vai já sequenciado para o carteiro”, diz António Guilhoto.

O correio prioritário (registado, azul e internacional), aquele em que a empresa assume o compromisso de entregar no espaço de 24 horas, “não é sequenciado [pelas máquinas], pois não há janela de tempo”. Salvo na região de Lisboa, a responsabilidade do sequenciamento pesa sobre os carteiros; é a primeira coisa que muitos fazem, assim que entram ao trabalho, antes de partirem para os seus giros.

“Tenho de tratar aqui, dividir por centro de distribuição postal e enviar, pelas 23, 24 horas, que é a hora em que os primeiros carros saem daqui para o Porto”, diz António.

Há maratonas, na verdade, que nem as máquinas conseguem ganhar. Com mais de 9 mil metros quadrados de área, para funcionar o CPLS requer cerca de 500 trabalhadores distribuídos por três turnos, 24 sobre 24 horas, exceto aos domingos. Nem todos os horários de trabalho são simpáticos. Ainda assim, António Guilhoto garante que não tem falta de mão-de-obra.

Na distribuição dos CTT, porém, “não tem sido pacífico arranjar pessoas”, nota o responsável do CPLS. E tem razão: o cenário, no terreno, é muito diferente.

Quem quer ser carteiro?

Os CTT têm falta de carteiros – e isto não é um segredo que a empresa oculte. Nos últimos dois anos, têm saído recorrentemente anúncios de recrutamento. E em setembro, o próprio CEO, João Bento, admitiu o problema a viva-voz no Parlamento.

“Nós temos tido, em média, durante o verão, mais de 100 vagas por preencher.”

Perante os deputados, o responsável máximo dos CTT atribuiu a escassez de mão de obra à conjuntura que se estende a vários setores em Portugal. À Renascença, Miguel Salema Garção, porta-voz da operadora, dá exatamente a mesma justificação e admite que a “necessidade de mão-de-obra se mantém”. A falta, revela, é mais premente nas zonas do grande Porto, Lisboa e Algarve.

“Os CTT têm já há cerca de dois meses um processo de recrutamento a nível nacional, inclusivamente acompanhado por uma campanha de comunicação interna, no sentido de criar embaixadores dentro da empresa, no sentido de identificarem a possibilidade de mulheres e homens que possam querer trabalhar connosco", conta.

As explicações dos CTT não convencem, em todo o caso, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores dos Correios e Telecomunicações (SNTCT). De acordo com os sindicalistas, na génese do problema estão dois motivos: muitos dos horários oferecidos são reduzidos (quatro ou seis horas), mas os giros depois atribuídos exigem mais tempo que um horário completo para serem cumpridos; e a compensação salarial também não é competitiva.

“Não faz sentido nenhum. Se quiser contratar um trabalhador a ganhar 700 euros [brutos] por cinco horas, a pagar 400, 500 euros [líquidos], e depois está lá oito ou nove horas a trabalhar, claro que ninguém quer. Por esse preço, estão numa loja, num centro comercial, que até tem ar condicionado e mais não sei quê”, diz Vítor Narciso, secretário-geral do SNTCT.

“Antigamente, havia uma coisa que se dizia; não há dinheiro, não há palhaços. Ora, não se cativam trabalhadores para os CTT, para andar a correr ao sol, à chuva, etc, etc, por 500 euros. Então, têm dificuldades, como é evidente.”

De acordo com números oficiais da operadora, cedidos à Renascença, em 30 de junho de 2022 o número total de trabalhadores dos CTT (efetivos e com contratos a termo) era de 12.803, mais 542 (+4,4%) do que na mesma data no ano anterior. Em dezembro de 2013, ano em que foi privatizada, a empresa tinha 12.383 trabalhadores, ou seja, um número inferior ao atual.

Segundo o relatório de resultados consolidados dos CTT, referente ao primeiro semestre dos CTT, entregue à CMVM a 30 de junho, dos 12.803 trabalhadores da empresa, as áreas de operações e distribuição tinham 5.534 trabalhadores (dos quais 4.190 carteiros e distribuidores) e a e a rede de retalho tinha 2.312.

A chegada da violência

Para Vítor Narciso, a falta de trabalhadores nos CTT está diretamente correlacionada com a onda de queixas que a operadora tem sido alvo. Nalguns casos, denuncia, a animosidade com o mau serviço da operadora tem já consequências na rotina de alguns profissionais. Há “zonas de distribuição problemáticas” – em particular, na periferia das grandes cidades -, onde carteiros sofrem ameaças de violência física, há “discussões acesas e pontapés em portas” de agências, devido a atrasos na entrega da correspondência.

O líder sindical refere três tipos de clientes insatisfeitos: pensionistas, que aguardam pelos conhecidos vales CTT, cidadãos que recebem apoios da Segurança Social, e pessoas revoltadas que “têm que pagar a reabertura da água, da luz, porque não pagaram no prazo devido, por causa da entrega não atempada das faturas.” “As pessoas revoltam-se. Mas não é contra o senhor João Bento, Presidente dos CTT. Revoltam-se com a pessoa que lhes aparece à frente, que é o carteiro”, diz Vítor Narciso.

No final de março deste ano, no bairro da Açucena, no Seixal, um carteiro foi retirado à força do veículo que conduzia e agredido por dois indivíduos, que exigiam “os seus vales CTT”. Dois dias antes, os mesmos sujeitos, já haviam atacado uma funcionária de uma agência de correios.

Apesar de “nada justificar” o sucedido, Domingos Ceia, também membro da direção SNTCT, admite a “possibilidade” de os vales CTT dos dois indivíduos poderem estar atrasados. “Infelizmente, nos correios, a distribuição está péssima, seja em que CDP [Centro de Distribuição] for. Há CDP que têm correio há duas semanas por entregar. Ainda hoje, um colega da Costa da Caparica contou-me de uma caixa que está parada há mais de 15 dias”, diz.

O caso da agressão no bairro da Açucena deu origem a um processo judicial, que ainda está a decorrer. A queixa foi apresentada pelo próprio trabalhador, não pela entidade patronal.

Após receber tratamento médico e ir à farmácia, o carteiro foi à GNR fazer participação do sucedido. De seguida, deu conhecimento à sua chefia na operadora e apresentou faturas dos gastos. Passados seis meses, os valores ainda não foram devolvidos.

Inquiridos pela Renascença, os CTT confirmaram o caso da agressão e admitiram a falha no retorno das despesas. Houve “um atraso no pagamento de uma despesa, estando a situação a ser regularizada”, assumiu fonte oficial, numa declaração por escrito.

Quanto ao envolvimento no processo judicial, os CTT garantiram apoiar a queixa apresentada pelo carteiro, não estando “envolvidos formalmente” no processo devido à ação ter sido apresentada “a título individual pelo carteiro”.

Assim que a empresa teve conhecimento das agressões, “prestou de imediato toda a assistência ao carteiro, com intervenção direta junto da comunidade onde se integra o agressor”. “Não satisfeitos com essa medida, garantimos o acompanhamento do carteiro em causa no exercício das suas funções nas duas semanas subsequentes, até termos tido todas as garantias que a situação estava totalmente regularizada”, explicou a mesma fonte.

Uma empresa (privatizada)

Funcionário há mais de 30 anos dos CTT, Vítor Narciso vê com desgosto o acumular de polémicas em torno da operadora. “Não há comparação possível” com o que a empresa era há duas décadas, quando nas grandes cidades, leia-se Porto e Lisboa, existiam “duas distribuições diárias de correio, por causa do comércio e da indústria”. “Mandávamos uma carta hoje de manhã para o Porto e no dia seguinte era entrega. Uma carta normal. Agora não”, conta.

Mas os tempos mudaram, assim como o negócio dos CTT. Se no início dos anos 2000, a operadora fazia circular mais de 6 milhões de cartas diariamente, neste momento o volume é de cerca de 2 milhões. No final do primeiro trimestre de 2019, a entrega de correspondência representava 70% dos proveitos dos CTT. Já no final de 2021, pela primeira vez na sua história, foram apenas 49%.

Dito isto, os CTT – empresa fundada por D. Manuel I, a 6 de novembro de 1520 - nunca deram prejuízo quer antes, quer depois de serem privatizados em 2013, pelo executivo de Passos Coelho. Nunca, em quase 500 anos, o Estado (ou a Coroa) teve de abrir os cordões à bolsa, nunca a correspondência dos portugueses esteve de alguma forma sob ameaça.

Há nove anos, com o país sob o olhar atento da Troika, o Conselho de Ministros justificou a alienação como “tendo em vista o desenvolvido estratégico da empresa”. A venda, concluída a 5 de setembro de 2014, rendeu aos cofres do Estado 909,2 milhões de euros. Um “bom preço”, defendeu o primeiro-ministro social-democrata.

O debate em torno da escolha do governo de Passos, todavia, nunca cessou. Em particular, junto dos partidos à esquerda. No caso do Bloco, a ideia de reverter a privatização dos CTT constou do programa eleitoral para as legislativas, tanto em 2019 como 2022. (O de 2015, não fazia menção.) No PCP, ipsis verbis. “Reconstituição da rede pública postal, a partir da recuperação da propriedade pública dos CTT, com a reabertura de estações dos correios e centros de distribuição em todo o território”, lia-se no programa comunista.

Nas fileiras do Partido Socialista, nos últimos anos, foram também já muitas as vozes pedir a nacionalização. Ou, pelo menos, a entrada do Estado na estrutura acionista. Em 2019, o ex-deputado socialista Artur Penedos escreveu, num texto de opinião no “Público”, que “à semelhança da TAP, é urgente proceder à reversão da privatização dos CTT”, defendendo ainda a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para “apurar desvarios e prejuízos causados ao país”.

No mesmo ano, antes da ida às urnas para as legislativas, Manuel Pizarro, atual ministro da Saúde, disse ao “Público” que a privatização dos CTT era “um escândalo”. O governante prometeu que iria bater-se dentro do PS para que a renacionalização viesse a constar do programa eleitoral. Mas spoiler: nunca chegou a acontecer.

A 12 de março de 2020, o deputado socialista Hugo Costa afirmou no Parlamento que a privatização dos CTT fora um “manifesto erro”, escrito em “letras gordas”. No mesmo debate, o ministro Pedro Nuno Santos, responsável pela tutela, não se coibiu de dizer que a privatização dos CTT havia sido “um erro que não acautelou o interesse do povo", e deixou no ar a possibilidade de o Estado entrar na estrutura acionista da empresa ou renacionalizá-la mesmo.

Em gaveta, o ministro das Infraestruturas tinha uma auditoria da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) aos CTT – que viria a público dias depois – que apontava para uma degradação da “qualidade do serviço postal” desde a privatização dos CTT.

A auditoria da IGF sinalizava outro problema ainda maior: o contrato de concessão assinado pelo Governo de Passos Coelho fizera com que a empresa, agora privada, fosse a única, no futuro, em condições para assegurar o Serviço Postal Universal no país – criando um “monopólio natural” e “inviabilizando, na prática a entrada de outros operadores, incluindo o Estado, e a liberalização do mercado”.

O alerta da IGF é fácil de compreender. No momento da privatização dos CTT em 2013, o Estado vendeu em conjunto todos os imóveis do serviço postal. Ora, em 2022, que outras empresas têm infraestruturas necessárias e implementação nacional para que possa concorrer com os atuais donos dos CTT? Nenhuma.

“Não existe qualquer outra empresa dotada de rede com capilaridade equivalente à da CTT, à qual seja exequível adjudicar todas ou sequer qualquer parcela relevante das prestações que constituem o SPU, com qualidade de serviço e com uma relação de proximidade às populações, designadamente as populações dos territórios de baixa densidade, do interior e das regiões autónomas”, lê-se na resolução do Conselho de Ministros, de 3 de novembro de 2021, data em que foi anunciada a renovação do contrato de concessão.

Um membro do Governo de António Costa disse à Renascença que o contrato de concessão, inviabilizou, na prática, que o Estado lançasse um concurso. “Uma coisa é quando o Estado pode lançar um concurso e há mais empresas que podem concorrer em pé de igualdade. Aí, consegue-se algo mais razoável. Quando é uma empresa só, é mais difícil. O Estado pode ficar na mão dessa empresa.”

Entre 2020 e 2021, o Executivo socialista chegou a pensar entrar na estrutura acionistas dos CTT, de modo a ganhar “influência” dentro da empresa. “Agradava à geringonça e o Estado deixava de estar numa posição tão frágil”, explicou a mesma fonte.

No final de 2020, a entrada na estrutura acionista foi negociada e debatida entre o executivo de António Costa e o PCP, em sede de Orçamento de Estado para 2021, mas não chegou a ser incluída na versão final. Ao “ECO”, o socialista João Paulo Correia chegou a dizer a medida não teria “um grande impacto orçamental”. Então, porque é que não se concretizou?”

“A questão da geringonça acabou, não é? A concessão foi avançando e as coisas foram-se resolvendo”, disse a mesma fonte.

A continuação da concessão

Em fevereiro deste ano, o Governo assinou o novo contrato de prestação do Serviço Universal Postal entre os CTT e o Estado, por um período de sete anos. Esta opção, tomada ainda no meio do barulho pós-legislativas, recebeu pouca atenção mediática. E, tudo indica, foi uma decisão exclusivamente política.

A Renascença questionou a ANACOM, tento em conta que num passado recente havia levantado dúvidas sobre a qualidade do serviço da operadora, se havia sido inquirida ou consultada durante processo de decisão. A resposta foi não. “A ANACOM não foi inquirida ou consultada sobre a decisão do Governo. “A decisão sobre a designação dos CTT como concessionária do serviço postal universal, bem como sobre o procedimento de designação, coube ao Governo”, esclareceu fonte oficial.

Inquirida sobre o mesmo ponto, a Inspeção-Geral de Finanças – autora da auditoria que sinalizou o problema da concorrência no contrato de concessão - remeteu explicações para o Ministério das Finanças. No dia 12 de outubro, a Renascença enviou questões, por email, para a tutela de Fernando Medina. Até à hora de publicação desta reportagem, não obteve resposta.

O esclarecimento do Governo não alteraria nada. Até 31 de dezembro de 2028, o SPU está entregue aos CTT. Data que, para Vítor Narciso, não é um problema.

Como muitos funcionários dos CTT, o sindicalista tem ainda esperança de que a empresa volte um dia à esfera do Estado português. A luta não foi “abandonada ou perdida”, diz.

Durante o mês de agosto e setembro, representantes do SNTCT andaram por vários dos distritos nacionais a fazer distribuição de “documentos à população”, defendo a reversão da privatização. Vitor garante: “Nós vamos continuar a malhar em ferro frio.”

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