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Rússia em força em África

Azeredo Lopes: “África é uma jangada de pedra cada vez mais distante e hostil face à Europa”

13 mai, 2024 - 17:50 • José Pedro Frazão

A missão de treino militar da União Europeia no Mali vai acabar por falta de garantias de segurança. Em entrevista à Renascença, o ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, lamenta que a Europa não entenda o risco de um Sahel desgovernado, dominado cada vez mais por forças russas, avisando para impactos na República Centro-Africana onde Portugal tem 135 militares.

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ENTREVISTA AZEREDO LOPES

José Azeredo Lopes era ministro da Defesa quando as Forças Armadas portuguesas registaram no Mali a sua última vítima mortal em missão no estrangeiro. Quase 7 anos depois da morte do sargento-ajudante Paiva Benido ter morrido num atentado da Al-Qaeda em Bamako, a missão de que fazia parte fecha portas. O professor universitário lamenta a falta de estratégia europeia para o continente africano. A conversa estende-se pela influência crescente de Moscovo em diversos países africanos de língua portuguesa.

Esta decisão da União Europeia de não prorrogar o mandato da sua missão de treino no Mali não é propriamente uma surpresa. Que consequências trará esta decisão?

É uma decisão que era esperada. Primeiro porque França, que teve sempre uma relação muito particular com aquele país, já tinha sido literalmente expulsa do Mali. Em 2013, França lançou a operação militar Serval, que depois se transformou na operação Barkhane, através da qual conseguiu salvar o governo de então, que estava a ver a cavalgada para sul e para a capital Bamako das forças da Al-Qaeda do Magrebe Islâmico. Depois, a missão que foi constituída pelas Nações Unidas, a MINUSMA, também em 2013, literalmente fechou portas no fim de 2023 e terminou a sua retirada do território a 1 de janeiro de 2024.

Agora — algo que não é surpresa nenhuma – termina a missão de treino da União Europeia. De alguma maneira normalmente [estas missões] vêm associadas a missões das Nações Unidas, com uma componente de formação e treino militar. É óbvio que não tinha qualquer hipótese de se manter por uma razão muito simples: não tinha sustentação. Tinha um poder político muito hostil, com uma junta que tomou o poder em 2020 e que tinha anunciado que as eleições seriam algures por esta altura — já foram adiadas por tempo indefinido.

E, sobretudo, esse novo poder político, a exemplo de outros poderes, mais ou menos militares, ou democráticos no Sahel, percebeu as grandes vantagens de se associar à Rússia ou aos seus "proxys", como por exemplo o Grupo Wagner e agora os sucessores deste Grupo. Paga-se-lhes dinheiro, funcionam com uma espécie de guarda pretoriana importante e, por isso, esses poderes não têm de aturar os europeus ou as Nações Unidas a discutir coisas "aborrecidas".

Não há aqui um demérito europeu nessa matéria? Ou era uma inevitabilidade relacionada com esse dinheiro?

É uma excelente pergunta. Há sempre um demérito da nossa parte, quando não conseguimos convencer Estados soberanos de que é sempre melhor a formação e o desenvolvimento do Estado através de princípios básicos de regulação da vida em sociedade. Confesso que o meu medo sempre foi que nós não percebêssemos — como acho que não percebemos — a importância crucial do Sahel para a segurança europeia. Subestimámos esse aspeto, demos tudo por adquirido. Achámos que a simples circunstância de estarmos dispostos a gastar um número elevado de milhões até a perder de vez em quando vidas dos nossos era suficiente.

Não posso deixar de referir – porque é uma coisa que me diz respeito diretamente — a morte no Mali em missão do sargento-ajudante Paiva Benido, que, em junho de 2017, morreu às mãos de um ataque terrorista da Al-Qaeda.

Temos de compreender que todo o Sahel, aliás toda a África, em geral, está hoje a deslocar-se para mais longe da Europa. Basta ver as notícias recentes sobre acordos celebrados por São Tomé ou que podem vir a ser celebrados pela Guiné-Bissau. É como se fosse uma espécie de "jangada de pedra" que começa a olhar cada vez mais com distância, e também com hostilidade, para os seus vizinhos do Norte ou até para os Estados Unidos.

Porquê? Tem a ver com um passado de que também se querem afastar?

Porque nós não conseguimos entender que esses países compreendem hoje, porventura melhor do que nós, o seu próprio valor facial. Se por um custo equivalente, até mais baixo do ponto de vista político, eles tiverem a liberdade para fazerem o que quiserem e para invocarem a exceção africana, eles negoceiam livremente com quem quiserem porque são países soberanos. Se eles defenderem que um acordo com a Rússia, ou a presença de forças russas, ou suas apaniguadas, é melhor para eles do que estar sujeito a estas "alcavalas" jurídicas e políticas, é um pouco paternalistas da nossa parte...

A Europa não percebeu essas soberanias várias que se constroem ali?

Não conseguimos perceber que o tempo da colonização já foi há muito tempo. Eles dizem-nos: "O que é que vocês fazem a não ser usarem-nos por razões da vossa própria segurança e para impedirem, por exemplo, fluxos migratórios para norte? O que é que vocês fazem para o nosso desenvolvimento?"

E o que é que podiam ter feito?

Devíamos ter dado seguimento à ideia de que apoiamos o desenvolvimento, em condições de igualdade, mesmo que seja a fundo perdido. Os números da ajuda ao desenvolvimento colapsaram desde a Covid-19. E quando este acabou, veio a guerra na Ucrânia. Ninguém quer saber de África. Ninguém? A Rússia quer saber.

A Rússia tem investido muitíssimo em África. Se olhar para o que é o Sahel, veja o que aconteceu nos últimos 4 anos. Foi o Níger, a Mauritânia frágil, no Mali basta ver o que está a acontecer, o Burkina Faso. Havia mesmo organizações africanas que, normalmente, bastaria franzirem o sobrolho e esses regimes imediatamente paravam. Veja o que aconteceu no Níger. Disseram que os planos para a intervenção militar já estavam prontos. Viu alguém a ir? Isto é uma mudança de paradigma muito grande que temos de compreender rapidamente no seu alcance e adaptarmo-nos.

Nunca mais me esqueci de algo: discutia-se muito a influência da Rússia pelo mundo, que era preciso contrariá-la, nomeadamente em África. E houve uma reunião do G7, já bem depois da invasão ucraniana, onde se anunciou, com grande pompa e circunstância, que iria haver uma espécie de Plano Marshall para o continente africano, com apoio a infraestruturas. Uma coisa colossal que, por exemplo, neutralizaria, ou, pelo menos, diminuiria muito, do ponto de vista da importância, o apoio que a China dá a vários países no continente africano. Foi feito um anúncio mais ou menos pífio e, desde então, ouviu falar de alguma coisa? Eu não ouvi.

Esta falta de consistência — e não estou a dizer que concordo com essa interpretação — leva muitos países africanos a presumirem sempre: "Estiveram cá centenas de anos e só voltam cá quando sentem que podemos estar interessados por um novo amor."

Esse afastamento estende-se a todo o continente é apenas e só desta região? As relações entre a Europa e África parecem dominadas pela retórica.

O que vejo é aquela expressão muito popular: muito aparato e pouca comida no prato. Dou-lhe outro exemplo, também muito paradigmático e que a que nunca ligamos, ou seja, quando a questão está mais ou menos resolvida, esquecemos e passamos adiante.

Tivemos uma crise muito grave no mercado dos produtos cerealíferos por causa do bloqueio russo, da guerra, etc. Tivemos países africanos a sofrerem muitíssimo, que ficaram sem fertilizantes, alguns dos quais dependiam a 100% de importações da Ucrânia, da Rússia ou de ambos os países. Os países africanos, em média, utilizam 7 vezes menos fertilizantes que os países mais desenvolvidos. Isto explica, porventura, também processos de desertificação, de sobre uso de terreno, etc.

Depois de se resolver a questão, a grande discussão que estamos a ter é se deixamos ou não entrar esses cereais através da Polónia e da Hungria e o boicote que estes países querem fazer a produtos ucranianos. Mas o que choca ainda mais é que, num momento que podia ter sido de cataclismo humanitário, vimos a verificar — embora depois tentássemos dar números muito diferentes — que a grande maioria das exportações não era para os países que mais precisavam, mas para países ocidentais da União Europeia, nomeadamente Espanha e Itália.

Se julgamos que os países africanos continuam distraídos, e estão "pobretes e alegretes" a olhar para nós e a agradecer qualquer ajuda, é bom que comecemos a habituar-nos que eles também são países soberanos. O Mali é um mau exemplo para aquilo que estou a dizer. É um regime dominado por uma junta militar, que não quer saber rigorosamente nada do Estado de direito e da democracia. Mas o Mali, gostemos ou não, é uma peça fundamental no Sahel. E o Sahel é uma peça crucial para a nossa própria segurança. É a última "almofada" antes de uma pressão migratória para norte, que nós não sabemos sequer como poderemos vir a gerir.

O que se passa agora no Mali, com esta instabilidade, é uma ameaça acrescida à nossa segurança?

Não acho que as migrações sejam alguma vez uma ameaça. A ameaça é a incompetência de enfrentar os processos migratórios sempre numa perspetiva punitiva e de muro. A União Europeia já foi capaz muito mais do que agora de enfrentar e ser uma terra de acolhimento. Agora, por razões que não interessa discorrer, é muito menos propensa a isso. Estou a falar sobretudo de questões mesmo ligadas à nossa defesa e não só à segurança, porque os grupos que campeiam no Sahel, sejam formais ou informais, por exemplo, de organizações de caráter terrorista, já estão a espalhar-se pelo continente. Nem quero falar sequer do caso moçambicano. Podemos falar no Mali, o Níger tem desses problemas e não faltam exemplos.

Esta predominância Wagner/ Rússia também instabiliza Moçambique à distância?

Essa é uma excelente pergunta. Acho que desestabiliza o continente africano. Em geral, o diagnóstico que fazemos hoje sobre o continente é muito pior do que há 4 ou 5 anos. O Congo está outra vez a começar a arder. Sudão, Sudão do Sul, nem vale a pena falar, as Nações Unidas já falam de um potencial de genocídio na região. O Mali é o que se sabe. É literalmente o "oeste selvagem norte-americano" transposto para a África do século XXI. As situações de instabilidade começam a ser muito preocupantes. Por razões evidentes, não podemos acolher nem olhar a tudo. Mas se pensarmos no que está a acontecer no Mar Vermelho e no reflexo na Costa Oriental Africana e, até inclusive no próprio Egito, começamos a ver fatores de instabilidade em que penso sinceramente que não estamos a fazer o suficiente.

Nós, pura e simplesmente, não estamos dispostos, por exemplo, a pagar. Não queremos pagar. Agora queremos concentrar-nos nos dois conflitos que nos preocupam mais — e muito bem — mas não queremos enfrentar a questão continental africana numa perspetiva que não seja só de curtíssimo prazo. Houve a crise dos cereais? Já passou, não se pensa mais nisso.

Não querer pagar no sentido de não querer investir?

Não queremos mesmo investir. É isso mesmo que eu quero dizer. A ajuda ao desenvolvimento, com muitos defeitos que tinha, com uns tiques — acredite que não era da nossa parte — por vezes...

Neocoloniais?

Para dizer o menos. Porque muitas vezes não eram só neocoloniais. Era uma ajuda camuflada em contrato, que exigia contrapartidas cada vez piores e dos países de que menos se esperaria. Voltamos hoje a uma situação em que parece que deixámos de saber interpretar África outra vez.

Mas a culpa é muito, ou sobretudo, francesa?

Não, não. Seria um erro grave extrapolarmos tudo o que acontece em África para os franceses. Estão a ser a "bete noir" [besta negra] dos africanos. É difícil de explicar pela extraordinária rapidez com que este processo se desenvolveu. A França literalmente está a ser expulsa, ponto a ponto, de uma região do globo onde tinha interesses, uma matriz e uma ligação histórica, política e económica fortíssima. A França literalmente já não tem presença no Sahel. O Níger expulsou-a e no Mali já sabe o que aconteceu à missão Barkhane, que "teve que dar às de Vila Diogo". A MINUSMA foi posta fora, a EUTM Mali também. Isto significa que é como se tivéssemos cataratas, passámos a ver menos para dentro desta realidade subcontinental.

Ora, quem está a ver muito bem, insidiosamente, continuam a ser países que são nossos adversários, para dizer o menos. A Rússia tem uma capacidade de leitura da realidade africana muito interessante. Não tem capacidade económica para ser nossa concorrente, do ponto de vista da ajuda ao desenvolvimento, mas tem uma coisa que os países africanos adoram: não faz questões. A Rússia não critica regimes internos, faz sempre apelo ao passado colonial, invoca sempre uma coisa que ainda faz muito sentido em algumas sociedades africanas: "Não se esqueçam que quando vocês estavam colonizados, quem é que estava sempre do vosso lado? Quem é que votou sempre do vosso lado?" Se for ver, por exemplo, o discurso de Vladimir Putin quando recebeu agora o Presidente Embaló da Guiné-Bissau a propósito do Dia da Vitória, uma das coisas em que mais insistiu foi "tenham bem presente quem é que vos apoiou na vossa independência e quem é que há 50 anos estava do vosso lado".

A coesão lusófona pode ser afetada?

Tenho dificuldade, atualmente, em falar de coesão lusófona.

Ainda agora os Presidentes estiveram a comemorar juntos os 50 anos do 25 de Abril em Lisboa.

Sim, nesse sentido. Mas acho que a coesão lusófona tem de ser cada vez menos familiar, cada vez menos de afetos, de referências comuns, cada vez menos de língua. Embora a língua seja uma peça crucial nesta nossa identidade comum.

O Mali deixou de ter a língua francesa oficial em 2023.

Eu sei, então não sei? Mas não é só o Mali. Sou muito francófilo, mas o declínio da língua francesa é global e também africano.

Mas voltando à questão lusófona, isto afeta essa coesão? Chamo-lhe assim porque há uma comunidade como a CPLP.

Em primeiro lugar, essa coesão nunca pode pretender ser como os “matrimónios” exclusivos. Portugal não tem o poderio, nem a capacidade de mobilização de recursos suficiente para assumir a relação privilegiada com todos estes países em todos os domínios da vida social e económica.

A nossa cooperação técnico-militar, por exemplo, coexiste há muitos anos com outras, até potencialmente hostis.

Veja-se o caso de Angola. Portugal tem um papel muito importante na cooperação técnico-militar com Angola, mas a Rússia sempre foi tradicionalmente muito forte nesse domínio. Em relação a outros países da Lusofonia, escuso de dizer como é difícil encarar a Guiné-Bissau como um parceiro fiável e previsível. Isto não tem nada a ver com o atual Presidente, não gosto muito de personalizar as coisas. Mas acho que não estou a dar novidade a ninguém se disser que a Guiné-Bissau não se caracteriza propriamente por um índice de estabilidade política muito elevado.

No caso de São Tomé e Príncipe, é bom termos presente que os pequenos países — e muito bem – estão no mercado. Portanto, se houver um parceiro, que não faz grandes questões, que não os "aborrece" com grandes problemas de direitos humanos — coisa que não é o caso, aliás, de São Tomé e Príncipe – e que estejam dispostos a ajudar em troca de vantagens geopolíticas, eles não hesitam. São Tomé e Príncipe era, por exemplo, dos poucos países no mundo que tinha uma relação privilegiada com Taiwan. Taiwan lançou um projeto, aliás espantoso, para atacar o fenómeno da malária no território. Quando esse processo foi concluído, São Tomé e Príncipe – que era um país considerado de risco – passou a ser um país essencialmente tranquilo quanto a esse problema. E São Tomé e Príncipe perguntou a Taiwan se estava disposto a investir num porto de águas profundas. Taiwan achou que o preço pedido era bastante caro e disse que não. E, um mês depois, São Tomé e Príncipe deixou de reconhecer Taiwan e juntou-se à China.

Também temos de ter a humildade de compreender que, em muitos casos, estamos a falar de governos de um poder político frágil e sem dinheiro, sem capacidade de investimento em infraestruturas e em que a diferença entre o apoio de um país, qualquer que seja, para fazer estradas e a ausência desse apoio, é a diferença entre a continuação da miséria e uma esperança de desenvolvimento.

Acho mesmo que devíamos encarar, até do ponto de vista económico, uma atitude completamente diferente da União Europeia relativamente a África. Não é uma ameaça como aquela que vemos todos os dias na televisão, em Kharkiv ou no Donbass, etc. É uma ameaça a longo prazo que devia ser uma nossa preocupação.

Como é que Portugal apareceu nesta missão no Mali? Na altura, havia um contexto de tentar distribuir o peso europeu em várias missões militares.

Portugal aparece a partir de 2013 e com uma colaboração muitíssimo interessante da nossa Força Aérea. Portugal tem uma abordagem que é tendencialmente multilateralista. Depois, uns anos depois, há também um envolvimento muito forte na missão de treino da União Europeia na República Centro-Africana que deu um salto qualitativo muitíssimo interessante a Portugal.

Mas os franceses não podiam chegar a todo o lado.

É um bocadinho diferente. Tem razão quanto ao essencial, mas recordo que, com os atentados de Paris em novembro de 2015, os franceses invocaram a cláusula do artigo 42, número 7 [ de defesa mútua] do Tratado da União Europeia, tentando revigorar uma cláusula algo híbrida, mas que os franceses queriam invocar expressamente para se afastarem gradualmente de exclusividade da NATO. Não deu resultado, como se vê. Os franceses começaram a pedir a diferentes países da União Europeia se os podiam substituir no esforço que estavam a desenvolver no Mali e na República Centro-Africana.

E foi então tomada essa decisão de irmos para a República Centro-Africana. Acho que foi das decisões de política externa associada à defesa mais rentáveis para o Estado português das últimas décadas. Uma força muito mais pequena do que aquela que estava lá, primeiro de comandos, depois paraquedistas, em sistema de rotatividade, fez um papel absolutamente extraordinário. Significou, de alguma maneira, uma presença muito amigável, aquele país – como aliás o próprio Mali – não encarava a intervenção e a ajuda portuguesas como algo que escondesse uma vontade neoimperial.

Portugal sempre teve uma relação muito mais favorável. Às vezes ser pequeno é muito bom, ser pequeno e muito competente. Ninguém pensou que nós quiséssemos substituir os franceses ou ganhar ali uma qualquer frente para um regresso de influência em África. Pelo contrário, Portugal passou a ser solicitado e a perguntarem se não queríamos ir para outras missões. Evidentemente que a "manta" era curta e continua, infelizmente, a ser.

É o caso da República Centro-Africana e da centralidade dessa missão?

Sem desprimor pelo Mali — porque a nossa presença não foi aí tão significativa e impactante — a República Centro-Africana representa, de facto, um momento de viragem na aposta em missões de manutenção de paz, no conceito alargado das Nações Unidas. É um momento de viragem e, sobretudo numa altura em que manifestamente, a partir de 2015/2016 e daí em diante, há um agravamento sistemático e constante da situação de segurança e de paz no continente africano. Tivemos uma altura muito eufórica e positiva, em que houve uma diminuição dramática das situações de golpe de Estado e golpes militares. Hoje, infelizmente, diria que voltámos outra vez atrás em África e não só. Vivemos hoje num mundo muito mais inseguro e instável e muitas vezes literalmente deitámos fora algumas ferramentas que nós passamos a considerar como vetustas.

A situação na República Centro-Africana não vai instabilizar-se também com este cenário aqui descrito no Mali?

A situação na República Centro-Africana já tinha ficado muitíssimo pior, desde logo pela presença da Rússia no território — que não é de agora, de ontem ou sequer de anteontem — se não estivesse ainda lá a missão das Nações Unidas. Não tenho a menor dúvida sobre isso.

Ai de nós se aquela peça também cai! Até pela sua centralidade, passe a redundância óbvia, a República Centro-Africana irradia segurança ou insegurança consoante a sua situação interna. Até ver, é mesmo assim: vai-se vendo e vai-se andando. Tem-se aguentado aquela situação.

Mas tem um risco acrescido.

Tem. Concordo consigo. O "varrimento" do Sahel é muito contagiante. Tecnicamente a República Centro-Africana está um pouco abaixo, na fronteira sul do Sahel. Aquela ideia de que podíamos fazer fronteiras entre violência e segurança, fluxos de organizações pouco recomendáveis que evidentemente não reconhecem fronteiras, mas territórios...

Se começa a correr mal ou pior ainda do que está a correr no Sahel, não tenho a menor dúvida que se vai irradiar primeiro para cima e, depois, para baixo. Há uma coisa muito importante que teremos de aprender. Há muitos anos que a União Europeia, por proposta aliás da França, anunciou a sua intenção de criar uma brigada de reação rápida para o Sahel, com uma capacidade inicialmente de cinco mil homens. Até hoje ainda não demos nenhum passo significativo para concretizar isso. A "Bússola Estratégica" da União Europeia, adotada imediatamente a seguir à invasão da Ucrânia pela Rússia, falava justamente na centralidade deste projeto. Estamos já a aproximar-nos de meados de 2024 e eu não vi nada.

Estes sinais são lidos com muita crueldade pelos nossos adversários. A Ucrânia discute agora uma lei da mobilização que se estiver abaixo de 150 mil homens é um desastre. A Rússia fala em 300 mil por ano, conscritos e mobilizados. E nós estamos a discutir o sexo dos anjos a propósito de uma força europeia de cinco mil homens, que ainda está muito longe de ver a luz do dia.

São sinais de uma grande tradição, mas também de uma grande fragilidade europeia, do ponto de vista da indissociabilidade entre as questões de segurança e defesa e as questões da relevância política. Nunca como desde a Segunda Guerra Mundial, este “casamento” foi tão importante e as questões da defesa foram tão parte integrante natural da política externa de um país. Quebrando-se a asa do lado direito, é evidente que a asa do lado esquerdo vai funcionar menos bem e o pássaro não vai voar com facilidade. É um dilema que vamos ter de enfrentar mais tarde ou mais cedo. Porventura, a invasão da Rússia foi demasiado disruptiva para nos ter permitido até agora recuperar um pouco o pensamento sobre esta matéria.

Mas infelizmente não consigo esquecer que a defesa europeia, como realidade própria, teve um salto conceptual e político muito grande por causa do Brexit. Nunca é por boas razões. A partir do momento em que percebemos que realmente quem ia pagar o preço maior pela saída não éramos nós, mas era o Reino Unido, as questões da autonomia estratégica, da produção em matéria de defesa e da capacitação de forças passou de um dia para o outro a ser secundária. Chegou o dia 24 de fevereiro de 2022 e “ai Jesus que nós não preparámos o mau tempo e temos de ir comprar do outro lado do Atlântico".

É esta situação que depois reflete também a forma como nos veem. A forma como o Mali nos vê, como considera que não precisa das Nações Unidas para nada, não precisa da missão de treino da União Europeia, que é uma maçada. Infelizmente fecha-se o círculo com o termo da missão, invocando nós razões de segurança no terreno, etc. Vamos ser francos: não nos querem mais lá, pronto.

E, se calhar, temos de servir-nos deste exemplo não muito agradável para repensarmos com grande urgência qual é a nossa política africana, no bom sentido. Falamos muito da Europa e África, cimeiras para trás e para a frente, mas quando chega o fim do dia os países africanos, um a um, vão perguntar: "Qual é a vantagem que tenho em estar consigo ou com o seu adversário?" Se as contas forem desfavoráveis para nós, essa é a grande modificação. Já não dependem e já não precisam das referências históricas que estão associadas à colonização, à descolonização, às relações afetivas que resultaram no processo de independência, nem sempre muito bons nem muito felizes.

Morrendo essa tessitura, é perfeitamente compreensível — e temos de ser nós a adaptar-nos — que nos perguntem onde estão as infraestruturas onde nos prometeram que iam investir. Se não virem, começam sempre pela primeira dependência: "O que é que eu posso fazer para ficar protegido de ataques ou de bandidos ou de terroristas ou dos meus opositores?" Resolvendo essa questão, compreenderá que a Rússia seja um cliente e um parceiro muito fiável. A Rússia quer influência e presença e sabe que, olhando para o Sahel, pode dizer: Burkina Faso 1-0, Níger 2-0, Mali 3-0. E podemos continuar por aqui adiante.

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