27 set, 2017 - 20:32
Termina esta quarta-feira, em Lisboa, o 17º Congresso BIEN que debate a introdução de um rendimento básico incondicional. A Renascença falou com Gonçalo Marcelo, da Associação Rendimento Básico Incondicional – Portugal, que organizou o congresso.
Defendem que deve haver um rendimento garantido para todos, mesmo quem tem trabalho e aufere vencimento.
O que é o rendimento básico incondicional?
O rendimento básico incondicional é uma ideia extremamente simples que tem, aliás, longos pergaminhos intelectuais na História, que foi concebida talvez pela primeira vez no século XVI no famoso livro "A Utopia" de Thomas More.
A ideia vai reaparecendo ao longo da História com propostas à esquerda ou à direita, mas com um ponto em comum. Imaginemos que vivíamos numa sociedade na qual pura e simplesmente todas as pessoas de forma incondicional, trabalhadoras ou desempregadas, recebiam todos os meses, durante toda a sua vida, um rendimento fixo, estável. O que é que isso permitiria em termos da liberdade das escolhas pessoais de cada um? O que é que isso permitiria em termos de erradicação de alguns dos problemas mais graves que temos um pouco por todo o lado, mas também em Portugal como a pobreza, como a desigualdade de rendimentos? O que é que mudaria radicalmente na vida das pessoas a partir daí?
A nossa ideia é que isso permitiria, pela segurança económica que providenciaria, libertar as pessoas para escolherem por um lado trabalhar ou não trabalhar e caso trabalhassem - e a nossa convicção é que quem já trabalha continuar esmagadoramente a trabalhar - o fizessem muito mais por vocação e muito menos pela necessidade estrita da mera subsistência.
Ou seja, defendem para todos, mesmo quem tem um trabalho e possa auferir um vencimento normal, seja qual for o valor? Essas pessoas também receberiam esse rendimento básico para além do vencimento que recebem do seu trabalho?
Em princípio sim. Existem vários modelos alternativos, mas, em princípio, aquilo a que nós chamamos rendimento básico incondicional parte dessa ideia. Não tem condição. A diferença por exemplo em relação a prestações sociais existentes como o antigo rendimento mínimo garantido é precisamente essa. É que muitas das pessoas que se encontram em situação de maior fragilidade social acabam por cair na chamada armadilha da pobreza ou na armadilha do desemprego. Isto é, passam por sistemas burocráticos que muitas vezes são humilhantes, pela obrigatoriedade de aceitação do emprego que lhes é disponível mesmo que não corresponda minimamente a um nível de remuneração digno nem àquilo que a pessoa gostaria efetivamente de fazer e isso acaba por ter um efeito até nas próprias estatísticas. Uma pessoa para poder ser considerada desempregada e poder ter acesso às próprias prestações tem que estar obrigatoriamente à procura de emprego. E parece-nos que essa não é a maneira nem mais eficaz de gerir a provisão pública de todas essas situações nem sequer a forma de respeitar e promover mais a dignidade das próprias pessoas.
O facto é que há na sociedade portuguesa, em vários setores, muitas resistências a esse tipo de soluções. Muitos encaram-nas como um travão à produtividade. O facto de muitas pessoas poderem não trabalhar tendo esse rendimento não seria um travão à produtividade?
Tudo depende. Em última instância aquilo que seria desejável seria um plano que permitisse de facto a subsistência. Portanto, estivesse, pelo menos, no limiar da pobreza em Portugal. Se isso acontecesse coloca-se a questão dos incentivos ao trabalho. Uma das coisas que é dita muitas vezes é que isto seria uma espécie de subsídio à preguiça, porque as pessoas não teriam incentivo a fazer o que quer que fosse.
Que é o que muitos dizem também já sobre o rendimento social de inserção...
Precisamente. Existem vários pontos aqui. Um deles tem a ver com a motivação pessoal das pessoas e outro tem a ver com as próprias transformações do mercado de trabalho. Eu vou tentar dizer ambas as coisas muito rapidamente. Isto passa por muita coisa. Passa obviamente pela nossa conceção cultural em que nós associamos muito o direito ao rendimento advindo do dever do trabalho. Podemos chamar a isto uma perspetiva laborista clássica e que tem como pressuposto uma ideia de mérito. Nós não negamos que o mérito exista, mas o que achamos é que faz parte quase em última instância de um direito social ou mesmo de um direito humano que se a pessoa existe a sociedade deve encontrar todos os meios ao seu dispor para que a pessoa possa sobreviver e realizar-se pessoalmente na medida do possível e o melhor possível.
Normalmente, por causa desta conceção que nós temos aquilo que nós dizemos é: se isto fosse atribuído eu desconfio que as pessoas não trabalhariam.
Mas se nos perguntarem "E tu? Deixarias de trabalhar?" Eu creio que a maior parte das pessoas responde que ela pessoalmente continuaria a trabalhar, mas que o problema seriam os outros. Isso também diz qualquer coisa sobre as nossas pré conceções.
Nós estamos a viver um momento estrutural de transformação do mercado de trabalho e da estrutura dos trabalhos disponíveis, dos empregos disponíveis. Vários relatórios mostram que, por exemplo, com aquilo que é a chamada quarta revolução industrial, que passa pela introdução em massa da inteligência artificial, por exemplo, o provável é que num prazo relativamente curto haja uma diminuição mais ou menos acentuada da mão-de-obra necessária a nível mundial.
Nós vivemos num paradigma que nos diz que para podermos sobreviver temos que trabalhar, para que a sociedade consiga produzir empregos para as pessoas temos que crescer economicamente e isso também depende do consumo.
Se, de repente, na maior parte das sociedades altamente industrializadas e desenvolvidas houver cada vez menos empregos disponíveis o que é que vai acontecer. Será que vamos ter níveis de desemprego muito maiores e níveis de pobreza e desigualdade muito maiores? E como é que vamos resolver isso?
Não poderemos entrar aqui num ciclo fechado sem soluções, uma vez que, se não se produz e não se trabalha onde é que se vai buscar o dinheiro para avançar com esse rendimento básico incondicional?
A questão é que em parte e neste cenário optimista do impacto da robotização, da automação, da inteligência artificial na produtividade o que acontece é que as tarefas continuariam a ser feitas. A mais valia continuaria a ser criada, mas seria criada maioritariamente pelas máquinas e não necessariamente pelas pessoas.
Acontece que depois teríamos as pessoas ao lado, sendo previsível que cada vez mais delas não tivessem acesso ao emprego e logo ao rendimento na forma como o concebemos hoje.
Podendo taxar os produtos que resultariam da produtividade das máquinas eventualmente teríamos obviamente dinheiro e rendimento que poderíamos pensar em redistribuir de outra maneira.
Nunca seria, portanto, uma solução de curto prazo. Seria algo do seu ponto de vista a introduzir a longo prazo?
Eu aqui falo pessoalmente. Até porque há diversas posições sobre este assunto. Aquilo que me parece prudente é fazer uma abordagem gradual. Em primeiro lugar é preciso estudar muito bem estas questões e nós conseguimos encontrar, em polos opostos, pessoas que defenderiam um rendimento básico como forma de dar simplesmente uma maior liberdade às pessoas e ela depois que escolhessem de forma não paternalista aquilo que fariam e existem pessoas, nas quais eu me incluo, que veem o rendimento básico como um aprofundamento do próprio Estado Social.
Estas compreendem até que ponto em Portugal as pessoas associam o próprio regime democrático aos direitos sociais avançados pelo Estado Social, compreendem a importância disso na vida das pessoas e, portanto, tentam perceber dentro do Estado Social o que é que é humilhante, o que é que é não é eficiente e é muito burocrático e pensamos numa solução como o rendimento básico como uma possível alternativa.
Não é qualquer coisa para ser introduzida amanhã. Até porque coloca-se muito a questão da exequibilidade e nós não estamos aqui no mundo dos sonhos.
Mas já há projetos piloto em curso como é o caso da Finlândia. Quais são os resultados conhecidos desse projecto?
A Finlândia começou um projeto-piloto este ano e existem muitos outros que estão a ser preparados na Escócia, em Barcelona. Há coisas que já têm acontecido antes. Aquilo que eu lhe diria é que não há resultados. Eles neste momento pretendem simplesmente não interferir demasiado com aquilo que está a ser feito com o grupo em estudo e estabelecem um grupo de controlo ao lado para depois poderem perceber do grupo de indivíduos que selecionaram quais é que são os resultados positivos no final.
Falou-me de um grupo em estudo. Esse grupo é constituído por que tipo de pessoas?
São pessoas que já recebiam prestações sociais na Finlândia e a quem é atribuído um rendimento que neste caso é abaixo daquilo que é considerado o nível de subsistência adequado na Finlândia, portanto, cerca de 560€.
O objetivo é perceber, atribuindo-lhes a incondicionalidade, quais é que são os resultados em termos do próprio incentivo ao trabalho e em termos da melhoria da saúde das pessoas, da melhoria do seu bem-estar psicológico e tentar perceber exatamente que efeitos é que a introdução de um rendimento absolutamente incondicional em que a pessoa não é obrigada a ir procurar trabalho, etc., têm na qualidade de vida dessas pessoas e na forma como elas interagem com o mercado de trabalho.
E já é possível perceber esses efeitos ou ainda estamos numa fase de estudo em que não há de facto conclusões?
Em relação a esse projeto piloto em específico aquilo que se vai sabendo é que eles reportam que, de facto, estão a viver melhor e não cessam de procurar trabalho, ou seja, não tem o efeito que as pessoas às vezes pensam que poderá ter.
Aquilo que reportam em geral é uma espécie de sensação de maior tranquilidade, ou seja, a sensação de que não existe uma pressão tão grande para fazerem aquilo que, em todos os outros tipos de prestações sociais condicionais, lhes é dito que têm obrigatoriamente de fazer. Uma sensação de que agora têm um espaço maior de liberdade para exercer aquilo que verdadeiramente querem fazer.
Tem sido debatida esta questão no XVII Congresso BIEN em Lisboa por onde passaram vários políticos e vários técnicos. Sente que há aceitação ou disponibilidade política para eventualmente Portugal vir a acolher esta proposta?
Eu sinto que existe, antes de mais, um enorme interesse. O ministro Vieira da Silva, por exemplo, é uma pessoa que, desde há muitos anos para cá, conhece esta proposta e tem por ela uma certa simpatia conceptual. É essa a sensação com que eu fique, embora perceba as dificuldades de implementação de uma proposta deste género.
O congresso foi aberto pelo vice-presidente da Assembleia da República e tivemos de forma significativa a presença do doutor José Luís Albuquerque que é o director do gabinete de planeamento e estratégia do Ministério.
Aquilo que aconteceu foi uma reflexão muito curiosa sobre o futuro do trabalho um pouco no sentido daquilo que eu lhe disse e que mostrou disponibilidade e abertura para que a conversa e o debate em torno deste assunto se vão aprofundando cada vez mais.
O nosso objetivo não é defender uma implementação imediata. É um aprofundamento do estudo sobre as diversas modalidades e que eventualmente possa levar à conceção realista de implementação.
Devo-lhe dizer já agora que o PAN, que é um dos coorganizadores institucionais do congresso, apoia esta medida e defende a criação de um grupo de estado para uma implementação de um projeto-piloto em Cascais.
Falou de o PAN estar envolvido. Tem contactos já com outros partidos com assento parlamentar para desenvolver iniciativas nesse sentido e para debater a eventual introdução deste rendimento?
No nosso congresso nós tivemos a presença de várias pessoas ligadas a partidos políticos quer portugueses quer internacionais.
O Livre e o PAN incluem nos seus programas a implementação de um rendimento básico. Os partidos mais tradicionais, com maior representação parlamentar, não têm na maior parte dos casos uma posição muito definida embora existam tendências em todos os partidos de pessoas, algumas mais críticas e outras mais próximas da questão do rendimento básico.
Da nossa parte aquilo que estamos a tentar continuar a fazer é criar as condições para que se possa discutir a implementação de um projeto-piloto, porque existe qualquer coisa de comum a todas estas propostas que é a ideia da universalidade de uma prestação atribuída a toda a gente. No entanto, como é óbvio, cada estado social é diferente e não podemos tentar tirar muitas conclusões de uma implementação de um projeto-piloto qualquer que se passe na Finlândia ou noutro país para o contexto português.
Teríamos que ver quais seriam as medidas ao nosso alcance e os modelos para o caso concreto português.
E imagina um valor para esse rendimento?
Desejavelmente, e fazendo aqui mais uma vez a distinção entre aquilo que é desejável e aquilo que seria possível, estamos a falar das condições mínimas de subsistência digna, o que em Portugal anda à volta dos 400 euros. É claro que isso rebentaria com o Orçamento do Estado e, portanto, não é possível pensar nisso sequer em termos de orçamentação do estado.
Existem muitas possibilidades que têm sido debatidas internacionalmente. Pensemos no quantitative easing feito pelo Banco Central Europeu como medida de resposta à crise. Pense na impressão de moeda que foi feita e no financiamento direto aos bancos que foi feito e no financiamento direto aos bancos que foi feito e depois há muitas pessoas que criticam e que dizem que, eventualmente, não terá chegado totalmente à economia real, porque é feito para aprovisionar os bancos e fazer que eles cumpram as ordens internacionais.
Em última instância, mesmo a nível europeu existe liquidez, existe disponibilidade.
Outras propostas podem ser através de impostos verdes, da criação de um imposto sobre as transações económicas. Existe uma miríade de possibilidades diferentes.
Pessoalmente aquilo que me parece é que é muito pouco prudente numa discussão deste género começar a advogar um rendimento muito ambicioso.
Uma das razões pelas quais a proposta que foi feita na Suíça o ano passado falhou foi que o montante que estava a ser trazido para discussão era muito elevado. Nós no fundo queremos fazer um debate sobre a melhoria e o aprofundamento do estado social português, mas de uma maneira realista.