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Crónicas da América
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​Freitas do Amaral 86: a primeira campanha à americana em Portugal

03 out, 2019 - 23:25 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Em 1986, Freitas do Amaral protagonizou o maior combate político da democracia portuguesa. A sua campanha eleitoral foi a mais eficiente e profissional de sempre. Uma campanha à americana. Atrás dele, alinhava-se uma direita nostálgica que sonhava vingar-se do 25 de Abril, do PREC e da descolonização. Mas esses não eram os objetivos nem os valores do candidato.

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Nunca se tinha visto nada assim em Portugal. A campanha de Freitas do Amaral nas presidenciais de 1986 foi a mais bem organizada, a mais bem planeada, a mais bem financiada e a que teve maior impacto popular no país.

A democracia era ainda jovem - 12 anos - e Freitas surgia como um vencedor antecipado. As sondagens davam-lhe uma vitória esmagadora, possivelmente até na primeira volta. Garantido o apoio do PSD, o fundador do CDS partiu para a estrada com grande confiança e apoiado numa máquina eleitoral arrasadora.

Tudo estava planeado ao pormenor. Os discursos, a segurança, os automóveis que seguiam à frente, aqueles que seguiam atrás com os apoiantes ilustres, as claques itinerantes de jovens, o posicionamento dos apoiantes no palco e a logística eficiente que precedia tudo isto.

Os milhares de bandeiras, autocolantes, canetas, t-shirts, o hino que ficava no ouvido o tempo todo, os slogans, a energia contagiante dos jovens que o acompanhavam por todo o lado, tudo transpirava profissionalismo. Era uma campanha que estava ali para arrasar. Nada se lhe podia comparar. Era uma campanha à americana. Verdadeiramente à americana. Até o sobretudo verde do candidato, um “loden”, fez escola e entrou na moda entre os seus seguidores.

E nunca se tinha visto nada daquilo no país. Hoje, este profissionalismo tornou-se banal, rotineiro, ninguém vai para uma campanha sem o apoio de especialistas de marketing. Mas naquele tempo o improviso era a marca de água das campanhas. Que viviam essencialmente da militância partidária, cuja participação dependia muito da confiança na vitória.

Ora, nas presidenciais de 1986, a campanha de Freitas do Amaral partia para a estrada com a confiança no ponto mais alto, enquanto a esquerda surgia dividida por três candidaturas e outros tantos dramas fratricidas. Os ecos que iam chegando à campanha de Freitas daquilo que se passava nas caravanas dos rivais da esquerda reforçavam essa convicção — a pouca mobilização, descrença, desânimo, que dominavam as campanhas da esquerda contrastava com a força esmagadora da “Prá Frente Portugal”. Nada podia deter aquela direita que se apresentava unida e pujante nas ruas do país.

E fê-lo literalmente de norte a sul. Não escapou à campanha um único concelho. Todos os dias, pelas 9h00, Freitas estava na estrada para “bater" um distrito. Fazia comícios em cada concelho, que ia percorrendo, um após outro, durante todo o dia, até ao comício final à noite na capital de distrito, o ponto alto do dia. Por onde passava, a mobilização ia aumentando e os apelos para o comício noturno na capital do distrito multiplicavam-se.

Salvo raríssimas exceções, as multidões iam engrossando e os atrasos que surgiam na caravana deviam-se apenas ao entusiasmo das multidões que engarrafavam as estradas, não a negligência ou menor profissionalismo. Tudo funcionava como um relógio. O candidato chegava a uma terra, o automóvel aproximava-se o mais possível do palco do comício, saía do carro protegido por seguranças e subia de imediato para a tribuna.

Freitas do Amaral. O último dos "pais" do regime democrático
Freitas do Amaral. O último dos "pais" do regime democrático

Não se misturava com o povo, não perdia tempo com conversas laterais, cumprimentos ou beijinhos aos apoiantes. Cultivava uma distância das massas conveniente a quem queria projetar uma imagem paternalista e se preparava para presidir a um país carente de estabilidade política e autoridade. Uma imagem ajustada para aqueles que ainda se sentiam traumatizados pelo PREC e pela instabilidade política que se lhe seguiu.

E era isso também que a sua mensagem política veiculava. O discurso era sempre o mesmo em todos os comícios. Houve aqui e ali pequenas nuances adaptadas às circunstâncias. Em poucos minutos, Freitas explicava que havia dois tipos de candidatos a correr contra si.

Dois deles (Zenha e Pintasilgo), que não nomeava, queriam o regresso do país aos tempos do PREC, sonhavam ainda com os amanhãs que cantam e com um Portugal algures entre o socialismo utópico e o terceiro-mundismo. O outro (Soares), que também não nomeava, queria manter o país estagnado, prisioneiro de alguns dogmas da esquerda, excesso de estatismo e rigidez laboral.

Ele, Freitas, era o candidato da modernidade, o único que queria desbloquear o país das heranças do PREC, integrá-lo plenamente na Europa próspera onde tínhamos acabado de entrar oficialmente. Simples, claro e direto. Quem queria o país no caminho da modernidade e do progresso não podia hesitar perante os candidatos em presença.

Mas se a mensagem era explicitamente clara, o que estava implícito era-o bem menos. Em torno daquela campanha, que cobri desde o primeiro dia à noite da derrota final para o “Jornal de Notícias”, percebia-se todo um sentimento revanchista da direita portuguesa em relação ao PREC, à descolonização, aos militares de abril, a tudo aquilo em que o país se tinha transformado no pós 25 de Abril.

Foi naquela campanha que a direita vislumbrou a sua grande oportunidade de repor a sua lei e a sua ordem após 12 anos de angústias e frustrações. Era o seu grande momento de vingança, colocar um homem que até vinha do antigo regime a presidir a um país que tinha andado nos caminhos da perdição durante demasiado tempo.

Era um sentimento latente que se transformou em movimento. Cavaco, que liderava o PSD e era primeiro-ministro, estava com eles. Um tecnocrata recém-chegado à política, sem credenciais antifascistas, e que governava com sucesso. Adriano Moreira, que liderava o CDS, estava com eles também. Um ex-ministro de Salazar, exilado após o 25 de Abril, que regressou para ajudar a reverter os caminhos de perdição em que Portugal mergulhara.

A campanha teve alguns afloramentos desse saudosismo. Como aquele em Trancoso, onde o mandatário local percorreu as ruas da vila apelando às pessoas para comparecerem no comício do professor… Oliveira Salazar. Um lapso freudiano de um homem que tinha sido membro da União Nacional, o partido único de Salazar.

Freitas do Amaral, contudo, nunca caucionou tal nostalgia. O seu discurso sempre se pautou por escrupulosos princípios democráticos, nunca cultivou qualquer ambiguidade nessa matéria e até ficou mais incomodado com o discurso de Adriano Moreira no comício do Porto do que com uma invocação feita por Proença de Carvalho do general Humberto Delgado em Castelo Branco.

Um dia, numa das raríssimas conversas que teve com os jornalistas que cobriam a campanha, fez uma referência à república de Weimar num contexto de alerta para a instabilidade política da nossa democracia. Mas quando interrogado sobre se entendia que o país corria um risco idêntico de colapso democrático, corrigiu o tiro e não mais utilizou tal analogia.

Ali estava um candidato numa posição difícil: era olhado por muita esquerda — talvez toda a esquerda — como o agente do regresso a um autoritarismo nostálgico do antigo regime; e por muita direita — seguramente não toda a direita — como o agente que ia abrir caminho a um regime musculado que poria termo definitivo aos desmandos abrilistas.

Freitas do Amaral não era, obviamente, nem uma coisa nem outra. Mas foi vítima das circunstâncias. Nunca o país esteve tão polarizado politicamente como naquele inverno de 1986. A sua campanha assustou todos aqueles que o viram como o novo caudilho que se preparava para enterrar o 25 de Abril. E mobilizou todos aqueles que desejavam isso mesmo.

Na primeira volta, os segundos bateram os primeiros. Quando as urnas lhe deram 46% dos votos, contra os 25% de Soares, os 21% de Zenha e os 16% de Pintasilgo, o caminho parecia definitivamente aberto para a direita. O próprio diretor da campanha, Proença de Carvalho, “aconselhou” Mário Soares a desistir logo ali e abdicar da segunda volta. O jogo estava feito.

Proença estava particularmente orgulhoso porque a “sua” campanha à americana tinha resultado em pleno. O próprio candidato lhe deu os parabéns nessa noite eleitoral. Ao chegar à sede da campanha, Freitas felicitou Proença, antes de receber as felicitações dele. Uma sintomática inversão de papéis.

Mas na segunda volta, os primeiros bateram os segundos. O improviso e a espontaneidade da campanha de Soares acabaram por derrotar a organização e o profissionalismo da campanha de Freitas do Amaral. Por escassos 150 mil votos, uma unha negra.

Dois episódios significativos ilustram como o espírito e as expectativas eram bem diversas entre os apoiantes de Freitas.

No exterior do Altis, em Lisboa, sede da noite da derrota, um ruidoso grupo de jovens indignados com o resultado das urnas, gritava: “Soares presidente, só se for no Intendente!”.

Mas na Bairrada, um grupo de apoiantes de Freitas que, confiante na vitória, tinha encomendado vários leitões para a festa, acabou a oferecê-los aos apoiantes locais de Soares. Que não se fizeram rogados, pois claro!

Freitas do Amaral revia-se seguramente no segundo episódio, nunca no primeiro. A sua vida é testemunho disso mesmo. Mesmo quando protagonizou o maior combate político da democracia portuguesa contra o único homem capaz de o bater, o único que tinha estatura política superior à sua, fê-lo no respeito escrupuloso pelos ideais democráticos, sem agendas escondidas ou revanchismos ocultos.

E, ao fazê-lo, deu uma grande lição à direita portuguesa.

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