Não creio. Acredito mesmo que nunca tenham comido. Mas para quem tem hoje 40, 50 anos, esta foi uma frase que se habituou a ouvir na infância: “Os comunistas comem criancinhas”. Em boa verdade, a culpa é do Estaline e dos que nunca levaram a sério as denúncias de Nikita Khruschev.

A discussão sobre quem deve ou não formar governo surge nas vésperas de uma data simbólica para Portugal: o 25 de Novembro. Vale a pena, por isso, recorrer à memória. Em pleno “Verão Quente”, em Agosto de 1975, era publicado o “Documento dos Nove”, inspirado por Melo Antunes. Nele rejeitava-se a via seguida pelo MFA (Movimento das Forças Armadas), e rompia-se com o então modelo soviético. O país estava no fio da navalha; entre “os amanhãs que cantam” e a guerra civil. A 25 de Novembro, o PC não saiu à rua e Ramalho Eanes e Jaime Neves terminam com as aventuras do gonçalvismo.

Nessa mesma altura, Melo Antunes estica a mão ao PCP e diz o que muitos não lhe perdoaram: o PCP é “imprescindível à democracia portuguesa”.

Para mim, que na altura tinha apenas 12 anos, a questão da legitimidade democrática ficou resolvida (o que só racionalizei na idade adulta). Em democracia, não há partidos bons ou maus, desde que respeitam a própria democracia. Algo que o 25 de Novembro nos clarificou e que a meio do século passado, Churchill já nos tinha ensinado.

E serve isto para quê? Para dizer que estamos a desenterrar memórias com 40 anos que em nada ajudam ao debate. A questão não é o maior ou menor “escândalo” do PC e do Bloco apoiarem de alguma maneira um eventual governo PS.

Em 2015, o confronto esquerda-direita já não pode ser o argumento – serve apenas para algum “bullying” no plano da propaganda, através da simplicidade redutora das linhas vermelhas: até aqui estão os bons, a partir dali estão os maus.

Ou seja: no plano do regime, não há problema em o Bloco e o PC viabilizarem um governo de esquerda liderado pelo PS. Cada um, face às suas opções políticas, pode ou não gostar, mas no plano democrático a questão não se coloca.

Coloca-se então em que plano? No único possível: no plano das ideias, das propostas e dos gestos políticos.

As questões fundamentais são estas: o PC e o Bloco aceitam a economia de mercado? Aceitam o euro? E, a grande questão, aceitam as regras do Tratado Orçamental? Ou seja, aceitam as grandes opções que Portugal sucessivamente tomou no pós-25 de Abril?

Para mim a resposta é clara: não. Logo, o PC e o Bloco, como não obtiveram uma vitória nas eleições de 4 de Outubro, não podem ser governo ou suportar um governo. E não podem, não porque não tenham legitimidade democrática. Não podem porque, no plano das ideias, vão apoiar uma mentira, vão comprometer-se com objectivos que não apoiam e que, na primeira oportunidade, vão fazer romper, mesmo que o acordo de governo seja minimal.

Porque é que, em vez de andarmos distraídos com a tralha ideológica, não ouvimos alguns alertas, como as análises sem emoções de Pedro Magalhães ou os alertas, quarta-feira, do Conselho das Finanças Públicas, através de Teodora Cardoso?

Sobre o regresso a uma política de estímulo ao consumo privado, Teodora Cardoso avisa que é perigoso e pode ter reflexos no défice externo: “Os números demonstram esse risco. É um risco tentador. O consumo privado satisfaz toda a gente, aumenta o emprego e, no curto prazo, aumenta o orçamento, o que não cria é condições de sustentação deste modelo”, para mais à frente acrescentar que 2016 “é o ano mais exigente” no plano da consolidação orçamental.

Estes alertas contrariam a nossa queda para as opiniões de rasgo emocional. Estes alertas obrigam-nos a pensar, obrigam-nos a perceber que os caminhos são estreitos e que, apesar dos sacrifícios, talvez precisemos de continuar com algum tipo de contenção.

Passos, Costa, Portas, Catarina e Jerónimo ouvem estes alertas? Não. Estão nervosos: uns percebem que o poder está a fugir, outros estarão surpreendidos com a perspectiva de acederem a alguma forma de poder.

O problema não é um governo de esquerda ou de direita. O problema é o tipo de compromisso.

A maioria PSD-CDS portou-se de forma errada ao longo dos últimos quatro anos. Ignorou sempre o PS, encostando-o às cordas, e, do alto da sua maioria parlamentar, não estabeleceu pontes com o principal partido da oposição – o Partido Socialista.

António Costa tem agora uma oportunidade de ser magnânimo e fugir das tentações do poder a todo custo. Pode optar por uma coligação à esquerda. Será legítima, mas errada, porque durante a campanha nunca o equacionou e porque, nas questões fundamentais, PC e Bloco não estão próximos do Partido Socialista e acreditar que sim é uma ilusão.

No país, como nas instituições, se a fonte de motivação for o poder e não o bem geral, opta-se sempre por uma árvore – um interesse particular – e esquece-se sempre a floresta – o bem-estar geral. Esta será a decisão grave que António Costa terá que tomar.

Uma última nota para o Presidente da República. Surge hoje claro que Cavaco Silva errou quando ignorou os apelos para antecipar as eleições para antes do período de férias.