Durante esta semana, a Renascença olha para Marvila, na zona oriental de Lisboa. Veja também:


Chamavam “chinês” ao bairro. Os casebres de madeira e as chapas de zinco que se encavalitavam uns nos outros lembravam as imagens de outro Oriente que os filmes começavam a trazer a Portugal. Para Maria e Jorge aquilo não era ficção, mas a sua realidade. Na memória ficou-lhes gravado o dia em que o choro do filho mais novo os acordou de madrugada. Não era um choro normal. À volta do colchão, ali aos pés da cama em que dormiam, o menino estava rodeado de todo o tipo de bichos, entre eles um rato enorme que morrera no telhado e tinha entrado em decomposição.

Naquele dia, Maria Rosa tomou uma decisão. Sair dali, custasse o que custasse, o mais rápido possível. Não foi a primeira vez que sentiu isso, nem seria a última. Tinha 21 anos na altura. Tal como a maioria dos que chegaram aos seis hectares da Quinta do Marquês de Abrantes (o nome oficial do Bairro Chinês), na década de 1960, vinha de Cinfães, distrito de Viseu. O marido veio para Lisboa primeiro.

A história é igual a tantas outras: promessa de emprego, mais dinheiro (prometiam-se salários até quatro vezes mais do que os da província), uma vida melhor.

A realidade foi bem diferente. Todos estes anos depois, as palavras tremem e os olhos ficam aquosos quando recorda os primeiros tempos na capital.

“Até me custa dizer, quando aqui cheguei, saí em Braço de Prata [estação ferroviária]. Ao ver a barraquita que ele tinha, encostei-me às tábuas e pensei: ‘Para onde eu vim. Deixei uma casa tão boa, em pedra, para vir para aqui.’ Então, chorei, chorei, chorei...”, relembra.

A meio da década de 1960, na Grande Lisboa, chegaram a ser 115 mil famílias e meio milhão de pessoas a estarem alojadas em barracas, sendo que sete em cada dez não tinham completado sequer os quatro anos de escolaridade obrigatória. No Bairro Chinês, os números variam, porém, calcula-se que fossem cerca de duas mil barracas para dez mil pessoas.

A mesa eram os joelhos

Dentro de cada uma, tudo era em pequena escala, excepto o engenho para ultrapassar as dificuldades. Os casebres tinham no máximo 30 metros quadrados, em muitos residiam cinco pessoas, ou mais, e não dispunham de casa de banho, nem de luz. Como era, então, viver num espaço assim? “A nossa cama estava encostada à parede, a nossa mesa era os joelhos, os bancos eram a cama e para fazer a comida usávamos uma máquina de petróleo”, explica Maria Rosa, agora com 71 anos.

A casa de banho era um foco de problemas. Sessenta pessoas para o mesmo espaço, sendo que, como é frequente em locais comunitários, “uns lavavam e outros não”. Porém, este não foi o maior problema de Maria e Jorge. “Aquilo era só ratas. Só ratas”, enfatizam, com nojo.

Até que chega a notícia há tanto tempo esperada: a promessa de uma casa feita em tijolo, com cimentos, telhas e todas essas coisas que antes eram só uma miragem. Contudo, o sonho veio só pela metade. A mesma metade que a Associação de Produtividade na Auto Construção (PRODAC) deixou de pé. A cooperativa construiu o esqueleto, todavia, o resto não foi concluído devido à falência da mesma.

“Fizemos isto tudo. Só havia as paredes e o telhado. Nós até fomos dos primeiros que para aqui viemos. Tínhamos os filhos pequeninos”, recorda Maria. Jorge seguia do trabalho nas obras para outra obra. A da sua casa. “De noite, vínhamos trabalhar as coisitas para vir para cá mais depressa. Lá adiante [no Bairro Chinês] não se podia estar naquelas barracas”, repete como quem fala do inferno na terra.

A vida não volta para trás

Quando a casa estava finalmente pronta, os braços ergueram-se em direcção ao céu. “Pensei: ‘Graças a Deus estou numa casinha’”. Ali nasceu, primeiramente, o quarto em que todos dormiam. Finalmente a casa de banho, a tão esperada sanita própria e um sítio para tomar banho. Mais tarde, um segundo quarto para os filhos. Já havia um fogão e até a sala foi crescendo. Tudo perfeito, então?

Nada disso. O ditado diz que o que nasce torto tarde ou nunca se endireita, e ali assim foi. A tacanhez e a falta de qualidade dos materiais (o tijolo não chegou a vir) não ajudaram ao final feliz. “Estas casas, comparando com o que há agora, são barracas. Faz muito frio no Inverno e de Verão não se consegue aqui estar com o calor”, pormenoriza Jorge, de 73 anos, que procura nas recordações uma justificação para tantas dificuldades. “Viemos à procura de dinheiro e de trabalho. Estou aqui há 50 anos”.

Maria atropela-o. É ela que lidera sempre a conversa. “Se soubesse... se soubesse... se fosse como agora, nunca aqui tinha posto os pés. Vive-se melhor na nossa terra do que cá. O Governo dá-lhes o dinheirinho para eles lá estarem na boa vida. Se formos daqui para lá e fizermos uma hortinha, sabe o que é que eles diziam? Vêm estes esfomeados de Lisboa para aqui. Vêm cheios de fome, vêm cavar. Ainda gozam”, comenta enfurecida.

E a revolta segue com mais uma olhadela para “os que estão bem”. “Lá em Cinfães vivem da Segurança Social e têm uma reforma boa. Nós estamos com a mínima. Descontei pouco, uns dez anos, mas já estou há muito tempo reformada. Ele [aponta para o marido] descontou 25 anos e está praticamente com a minha reforma”.

Juntos têm pouco mais de 500 euros. Passados 40 anos ainda andam às voltas com a burocracia para legalizar a casa onde que vivem.

“Eu não tenho vergonha… até tenho saudades”

Na outra ponta do bairro, Lurdes está no caminho para casa. É hora de ir fazer o almoço. Quase com 80 anos, percebe-se-lhe uma vida que sai de cada poro. Senta-se num dos bancos colados a uma das mercearias ali existentes. É um dos sítios mais surpreendentes de todo aquele aglomerado. Uma porta onde não cabem duas pessoas abre-se para um espaço que não é mais do que corredor.

Mais de perto, percebe-se que a área não terá mais de 1,5 metros de largura por sete de comprimento. Ali vende-se de tudo, desde umas calças “tigresse” até um pacote de gomas. Não tem nome. Respeitemos o segredo.

Lurdes não quer ocultar que viveu naquelas condições, num sítio em que só as cortinas separavam o que não se conseguia esconder. “Há pessoas que têm vergonha, eu não. Os meus filhos nasceram lá”, relembra. “Houve muita gente a sair de lá e a armar-se em importante”.

Não vê o passado a preto e branco. Encontra-lhe nuances. “Nas barracas a vida era mais familiar, era melhor”, refere, para logo a seguir emendar: “Melhor num sentido, ali havia um ambiente mais familiar.”

O que mudou? “Ao princípio gostei porque a limpeza era outra coisa, era outro asseio. Dantes tínhamos de ir a outra barraca fazer as necessidades, o que é muito diferente”, concretiza. Depois, resume: “Mudou tudo para melhor, menos a convivência”.

Muitos vieram de Viseu, contudo, nem todos ficaram nas barracas

Tal como Jorge e Maria, Esperança veio de Cinfães. Também ela chegou depois do marido. Não gostava do trabalho do campo, a cidade abriu-lhe as portas. Tinha já familiares em Lisboa e conseguiu arranjar um primeiro andar pequenino.

É faladora. Gosta de recuperar memórias e de contar histórias. Lembra-se de nos inícios ter sentido dificuldade em se adaptar à troca da aldeia pela grande cidade; todavia, depressa gostou da agitação. Actualmente, que está tudo mais parado em Marvila, sente falta desses tempos.

Começou a trabalhar numa fábrica têxtil, ali mesmo ao pé de casa. Naquela altura, a saída dos turnos era uma imensidão de cabeças na rua. Uma imensidão de perder de vista. Conhecia imensas pessoas, muitas das quais já se foram embora. Hoje, sente falta de não ter “uma lista de contactos” como outrora.

Como tal, não consegue olhar para trás sem que lhe venha um lamento, não é de tristeza, é de nostalgia: “Tenho muitas, muitas saudades. Tenho saudades desta rua cheia de gente.”

Corrige-se de pronto. “Bom, agora vê-se muita gente, eu é que não conheço as pessoas”. Sai-lhe um longo suspiro, até que chega a resignação: “É tudo diferente, mas é a vida.”

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