“Confesso que o que nos atraiu foi o preço. O prédio fica debaixo da ponte e a senhoria partilhou connosco que era barulhento. Alcântara é uma zona central e, por isso, normalmente os preços são mais altos. Ficámos por razões económicas”, sublinha Katarzyna Mendes.
Pedro revela que já tinham estado em duas casas antes desta em Alcântara. Iam de pé atrás por ser onde era, mas visitaram o apartamento e não sentiram “nada de anormal”. A mulher, polaca, adianta que, quando viram aquele espaço, gostaram logo. Depois, o lado racional identificou "mais barulho", que podia ser “cansativo”, e que havia “muito pó e muita poluição”. “Mas, olhando para o apartamento, ficámos convencidos o suficiente para ficar cá”, resume Katarzyna.
“Com o decorrer do tempo, os barulhos de facto existem, mas vamo-nos habituando e passam a fazer parte do dia-a-dia e das nossas noites. Durmo em qualquer circunstância, seja com luz com muito ruído, mas nunca pensei que fosse tão intenso”, sintetiza Pedro.
Katarzyna acha graça ao local em que vive. E conta um episódio daqueles que não se esquecem: “Um amigo veio cá e publicou uma foto com a frase: 'Amigos debaixo de ponte'."
A resposta nas redes sociais não se fez esperar: “Se calhar precisam de crédito. Se quiserem, entrem em contacto connosco”, graceja Katarzyna, a quem apenas a areia em cima da roupa e os pássaros que sujam camisas e calças a aborrecem.
Ainda assim, o marido, Pedro, revela que vão abandonar a casa no final do contrato. Já em Dezembro. “Precisamos de descanso, e com este barulho não conseguimos”, argumenta.
“Queremos a nossa paz e, de vez em quando, acordar em silêncio. Alcântara é uma zona de circulação de transportes, não há essa paz. Não me faz confusão, mas quero mais qualidade de vida”, remata Pedro.
Tapadinha russa
No meio das portas destes dois prédios sobressaem as letras garrafais do restaurante Tapadinha. Nada faz supor que se trata de um restaurante russo, mas é. A filha de Maria Nolasco, de 80 anos, estudou na ex-URSS e trouxe de lá o conhecimento gastronómico. Maria vive ali há mais de quatro décadas.
A localização, garante, não lhe retira clientela. Apenas a queda de objectos nos automóveis no parque de estacionamento ali em frente pode prejudicar o negócio. “O problema é que caem tintas e cimentos em cima dos carros quando andam a pintar a ponte”, refere. E acrescenta que antes de a concessionária da ponte pôr bandas laterais “caíam coisas mesmo grandes. Até um pneu ali no quintal”.
Maria já viu muitos chegarem e outros partirem. A maioria permanece, não larga as casas que comprou ou arrendou. Então, a ponte não afasta as pessoas? “Agora já ninguém liga a isso. Ao início houve apreensão. Depois, houve uma senhora que queria pôr a casa à venda por vir o comboio. Mas acabou por não vender e continua lá. Ou se habituou ou pôs vidros mais fortes”, avança.
Ainda se queixa da areia que vem da ponte, do som dos carros, no entanto, é um imposto que lhe ensurdece a vida. “O [aumento do] IVA deu cabo de tudo. Se não baixa rebenta com tudo. Faz mais barulho do que a ponte”, finaliza.
Uma roda que foi um trauma… e quase era uma tragédia
Uns metros abaixo fica o restaurante Mercado do Peixe. O sócio-gerente José Teixeira está ali há 25 anos. Desde sempre se habituou às coisas que caíam da ponte. Todavia, houve uma que lhe está gravada.
A filha, agora com 21 anos, esteva quase no local errado à hora errada. “Não morreu por segundos. No segundo a seguir a ela meter o pé no restaurante, uma roda completa caiu. Isso traumatizou-me”, enfatiza.
O início de actividade no mercado de Alcântara foi mais complicado do que previa. “Até cá dentro caiam parafusos, corríamos risco de vida. Estava longe de saber que seria tão perigoso. Mas é uma questão de hábito”, considera.
No outro extremo do eixo de casas cobertas pela ponte, na Rua 1º de Maio, mora Bruno Santos de 39 anos. É professor de música no Hot Clube ali em Alcântara. A particularidade de a 25 de Abril estar por cima do tecto não foi parcela na equação de decidir pela casa. Estar mobilada e disponível foram argumentos bem mais fortes.
A sinfonia da ponte nem faz muita confusão ao músico. "Eu vivi em Belém e tinha o eléctrico a passar mesmo à porta, nunca me fez muita mossa. Estava familiarizado com o barulho. Também não durmo muito, passo a vida a deitar-me fora de horas."
Já a nível estético, a avaliação não é tão positiva. “Aqui da sala não é uma visão muito bonita olhar para cima e ver uma data de betão. Mas, de resto, não me faz muita diferença”. No fim de contas, são 74 mil quilómetros de fios de aço galvanizados.
Tudo mudou
Com muitas histórias que cruzam cada recanto de uma vasta memória, senta-se no café A Ilha Cecília Lajes. Tem 73 anos e quase meio século a morar mesmo junto à ponte. Começa a recuperar memórias e em poucas frases faz um resumo sociológico da evolução local.
“Naquela época era tudo diferente. As senhoras não eram empregadas, abriam a janela só para sacudir o paninho do pó. Mudou tudo. Aqui estava tudo cheio de garotitos e agora já nem garotos há. Ia tudo jogar à carica e ao pião”, revive.
Também fala dos primeiros pulos na cama que deu por causa do ruído dos automóveis. Era tudo muito diferente do mundo rural de que chegara há pouco tempo.
Conhecida nas redondezas pela alcunha “Correio da Manhã”, diz aos amigos que faz das paragens de autocarro o escritório. E foi ali perto que aconteceu a história que lhe ficou gravada nos olhos. Um homem atira-se.
“Quase que ia caindo em cima de mim. Foi por pouco”, comenta. Na altura, não ganhou para o susto, mas ficou com os pormenores todos apontados na cabeça: os adereços, a profissão e o que o levou ao acto limite. Tudo.
Com tantos anos a viver ali, será que as coisas são melhores agora ou na época em que se mudou para Alcântara? Cecília reponde de forma salomónica: por um lado, assume que está melhor; por outro, a realidade é suficiente para que a lamúria se solte.
“O pior disto tudo é estar debaixo da ponte e pagarmos impostos enormes, caríssimos, e as casas sujarem-se muito. Devia haver um desconto”, apela.
Porém, enquanto a benesse não chega, se é que um dia chegará, lá se conforma: “A gente tem de viver.”