Hipólito faleceu há oito anos. Natural de Marrocos, residia em Espanha e casara, na terra natal, duas vezes. Vivia com ambas as mulheres. À primeira, foi-lhe concedida uma pensão de viuvez. À segunda, Socorro, não. Socorro avançou para tribunal, pretendia ser reconhecida enquanto legitima mulher de Hipólito – e ter direito à pensão –, mas o Tribunal Superior de Justiça de Madrid rejeitou o pedido.

O caso seguiu depois para o Supremo Tribunal de Espanha, tendo o coletivo de juízes presidido por Jorge Rodriguez-Zapata Perez decido, por unanimidade, que a poligamia não impede o direito à pensão de viuvez “de todas as esposas que, de acordo com a sua lei pessoal, estiveram simultaneamente casadas com o beneficiário de uma pensão do Estado espanhol”.

No entanto, as duas mulheres terão agora que dividir a pensão – à qual, no caso de Socorro, acresce um valor respeitante ao pagamento das pensões em atraso e respetivos juros.

A decisão não é inédita. Em 2018, o Supremo Tribunal espanhol resolveu igualmente atribuir uma pensão de viuvez a uma segunda mulher de um homem polígamo – pese embora, na ocasião, dois juízes tenham votado contra. Assim sendo, este segundo caso, julgado pelo Supremo com igual desfecho, acaba por fazer jurisprudência, ou seja, doravante estes dois casos funcionam como “orientação” para outros juízes em casos similares – e isso é inédito.

O Ministério Público espanhol, contudo, opôs-se ao reconhecimento do direito à pensão por parte de Socorro, argumentando que “a situação de bigamia é contrário à ordem pública, pois é prejudicial aos direitos fundamentais das pessoas, implicando a submissão das mulheres aos homens”.

E acrescenta o Ministério Público que a poligamia não só é contrária à legislação espanhola, “como é repugnante”.

Mas, então, por que razão o Supremo Tribunal de Espanha decidiu assim? O coletivo de juízes baseou-se numa convenção celebrada, na década de 1970, entre Marrocos e Espanha, acordo esse cujo artigo 23 estabelece que "a pensão de viuvez será distribuída, em partes iguais e definitivamente, entre aqueles que, de acordo com a legislação marroquina, são dessa pensão beneficiários".

O Ministério Público argumentou que “em nenhum caso a lei estrangeira se aplica quando for contrária à legislação espanhola", mas os juízes do Supremo valorizaram-na ainda assim: “A existência da Convenção Internacional de natureza bilateral vem provar que no sistema jurídico espanhol existe um efeito concreto e reconhecível nos casamentos polígamos de indivíduos marroquinos", concluem os juízes do Supremo.