No ano passado chegaram mais de 360 mil migrantes e refugiados à Europa. Muito menos do que a vaga de mais de um milhão que entrou em 2015, mas registou-se um número que é o pior de sempre: 5 mil mortes na travessia.

Desde o início deste ano, já entraram mais de 10 mil pessoas e há registo de mais de 250 mortes. Destes, mais de 8 mil vieram pelo Mediterrâneo central e foi aí também que ocorreu a esmagadora maioria das mortes.

Antevendo que a melhoria das condições meteorológicas nos próximos meses fará aumentar exponencialmente estes números, a União Europeia (UE) virou o foco para a Líbia para tentar travar o fluxo. O plano não é pacífico. Vamos por partes para tentar perceber o que está em causa.

O que fez alterar as rotas mais usadas?

Actualmente, é pelo Mediterrâneo central que chegam mais migrantes e refugiados à Europa. É assim desde meados de 2016, depois de a rota Este, que culminava na travessia do mar Egeu rumo às ilhas gregas, ter sido praticamente estancada. Uma consequência, em grande parte, do acordo que a UE assinou com a Turquia, em Março do ano passado. O aumento de controlo de fronteiras nos Balcãs ocidentais também contribuiu para a diminuição do número de chegadas.

A Grécia foi porta de entrada para mais de 850 mil migrantes e refugiados em 2015. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), no ano passado o número de entradas baixou 80%, para cerca de 173 mil pessoas. Simultaneamente, o número de chegadas a Itália subiu cerca de um quinto, para 181 mil pessoas – o mais alto valor de sempre.

A rota pelo Egeu transferiu-se para o Mediterrâneo central?

Não há dados que indiquem uma transferência significativa de migrantes de uma rota para outra. Os perfis são, na esmagadora maioria, completamente diferentes.

Os que seguem pela Turquia são maioritariamente sírios, afegãos e iraquianos e os que tentam chegar a Itália partindo das costas do Norte de África são sobretudo oriundos de países da África subsaariana, como a Nigéria, a Eritreia ou Guiné-Conacri.

No fundo, Itália regressa a uma situação que conhece bem e que, na verdade, nunca deixou de experimentar. Só que, durante algum tempo, as chegadas à Grécia foram tão avassaladoras que ofuscaram o que acontecia no Mediterrâneo central.

Aquela zona tornou-se a rota mais procurada para chegar à Europa depois da Primavera Árabe (foi usada por 60 mil pessoas em 2011), mas o fenómeno bateu todos os recordes em 2014, com um total de 170 mil chegadas a Itália – um drama retratado na reportagem “A sul da sorte”, da Renascença.

Por que é que a UE decidiu apostar na Líbia para travar os migrantes?

A UE triplicou a presença no Mediterrâneo desde 2015 e começou a destruir as embarcações usadas pelas redes de traficantes para transportar os migrantes e refugiados. Mas o negócio readaptou-se e passaram a ser usadas embarcações muito mais frágeis que frequentemente cedem antes de serem localizadas pelas missões da UE ou de organizações não-governamentais (ONG).

O resultado foram mais de 5 mil mortes naquelas águas em 2016 – o número mais alto de sempre, apesar de terem entrado na Europa menos de metade das pessoas face ao ano anterior. A UE quer travar o fluxo e destruir as redes de traficantes de seres humanos.

O que vai fazer em concreto na cooperação com a Líbia?

Os líderes da União Europeia, reunidos em Malta a 3 de Fevereiro, decidiram apostar na Líbia, o principal ponto de partida de migrantes e refugiados para a Europa.

As propostas aprovadas passam por investir no treino, formação e capacitação da guarda-costeira líbia e de outras agências relevantes no terreno para desmantelar o negócio do tráfico ilegal de pessoas e salvar mais vidas no mar. Comprometem-se a apoiar o desenvolvimento das comunidades locais, sobretudo na zona costeira – o negócio das redes de tráfico é, por vezes, a única forma de sustento para as populações líbias.


Veja também:


As instituições europeias comprometeram-se também a melhorar as condições de acolhimento dos migrantes que estão na Líbia, trabalhando em conjunto com as autoridades locais e com os países vizinhos.

Um acordo com a Líbia semelhante ao da Turquia seria boa ideia?

“Não” é a resposta peremptória de alguns líderes europeus (incluindo a chanceler alemã Angela Merkel) e de várias organizações humanitárias no terreno, que lembram os riscos e abusos sofridos pelos migrantes que estão na Líbia.

"Sim" é a resposta do governo de Malta, que actualmente assume a presidência da União Europeia, e que defende esta solução. Contudo, a proposta não colheu apoios junto da Comissão Europeia. A Alta Representante da UE para Política Externa e Segurança, Federica Mogherini, sublinhou que a situação nos dois países é “completamente diferente”.

A Líbia vive mergulhada num caos político, social e de violência desde a morte, em 2011, do coronel Muammar Kadhafi. Há uma série de milícias a lutarem pelo poder no país do Norte de África, que também vive sob a ameaça de grupos radicais.

Sob a égide da ONU, foi assinado na cidade marroquina de Skhirat, em Dezembro de 2015, um acordo político entre dois governos na Líbia. Um governo de unidade nacional foi formado em Trípoli, no final de Março de 2016, por um período de transição de dois anos. Contudo, o frágil governo de Fayez al-Sarraj luta para impor a sua autoridade sobre a totalidade do país e continua impotente face às principais dificuldades com que os líbios se deparam no dia-a-dia, como elevados preços, falta de serviços e bens essenciais e sobretudo insegurança. No meio deste caos instalado, as redes de traficantes actuam com impunidade no terreno.

Os direitos humanos de migrantes e refugiados são respeitados na Líbia?

Não. Os centros de acolhimento existentes na Líbia são, em rigor, centros de detenção e muitos estão sob controlo de grupos armados que se aproveitam do caos instalado no país. O plano levanta, por isso, reservas do ACNUR. A porta-voz Carlotta Sami afirmou que “gerir campos na Líbia significaria manter os migrantes e refugiados em condições desumanas, aumentando os riscos que já correm”.

Também Arjan Hehenkamp dos Médicos sem Fronteiras sublinha que “a Líbia não é um país seguro” e considera que esta “não é uma abordagem humana da gestão da migração”.

Num relatório de Dezembro passado, o comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas afirmava que “a lista de violações e abusos enfrentados pelos migrantes na Líbia é tão longa quanto horrível”. Zeid Ra’ad Al Hussein descrevia a situação como “uma crise de direitos humanos que afecta dezenas de milhares de pessoas”, que enfrentaram “abusos inimagináveis e que, nalguns casos, se tornaram vítimas do desprezível tráfico de vidas humanas”.

O acordo com a Turquia é um bom exemplo?

É certo que, até ao momento, conseguiu travar o fluxo de pessoas que chegava pelo mar Egeu, mas levanta muitas questões de respeito pelos direitos humanos.


Veja também:


A declaração assinada entre a UE e Ancara estipulou que, a partir de 20 de Março de 2016, são devolvidos à Turquia todos os migrantes que cheguem às ilhas gregas e que não peçam asilo ou cujos pedidos sejam indeferidos. Uma medida "temporária e extraordinária", afirmou a Comissão Europeia na altura, concebida para "pôr termo ao sofrimento humano", mostrando que "não há vantagem em seguir a via oferecida pelos passadores".

Várias organizações humanitárias discordaram desde o primeiro momento, afirmando que o acordo atropela preceitos da lei internacional e que representa um virar de costas da Europa ao drama dos refugiados, pagando à Turquia para os manter fora do território europeu.

Relatórios da Amnistia Internacional defendem que a Turquia não é um país seguro para refugiados, sustentando que há casos que não recebem assistência das autoridades turcas e que o trabalho infantil está disseminado no país.

A Turquia é o país com a maior população de refugiados no mundo – acolhe actualmente mais de 3 milhões de pessoas, sobretudo sírios. De acordo com a Direcção‑Geral de Ajuda Humanitária e Protecção Civil (ECHO), da Comissão Europeia, 90% destas pessoas vulneráveis estão a viver fora de campos oficiais.

Os requerentes de asilo registados deveriam ter acesso garantido a educação e serviços de saúde, mas “para muitos, o acesso a serviços básicos está limitado por várias razões, incluindo problemas no registo junto das autoridades locais e pela barreira da língua”, lê-se num relatório recente do ECHO.

Quais são os pontos principais do acordo com a Turquia?

  • Mecanismo de "um por um": por cada cidadão sírio deportado para a Turquia, outro sírio actualmente na Turquia é reinstalado num país europeu. A UE compromete-se a acolher até 72 mil sírios;
  • Grécia e Turquia são responsáveis pela aplicação do acordo. UE apoia com recursos humanos, logísticos e financiamento;
  • Turquia fica responsável por evitar a abertura de novas rotas migratórias;
  • UE dá 6 mil milhões de euros de ajuda financeira à Turquia, para os refugiados sírios;
  • Relançar negociações com vista a uma futura integração da Turquia na UE;
  • Revisão da obrigação de visto para os cidadãos da Turquia entrarem no espaço Schengen.

Este último ponto deu já origem a desentendimentos. A Turquia não aceita algumas condições apresentadas por Bruxelas, como a reforma das actuais leis antiterroristas turcas. Múltiplas vezes o Presidente turco tem ameaçado romper o acordo.

Vão mesmo ser recolocadas as 160 mil pessoas prometidas em 2015?

Não. A Comissão Europeia diz que a recolocação a partir de Itália e da Grécia estará completa “até ao fim do ano”, mas já não serão 160 mil pessoas. Serão menos de 100 mil, na verdade.

Em Setembro de 2015, os líderes europeus tinham acordado recolocar 160 mil pessoas em dois anos, a partir da Grécia e de Itália, mas até Fevereiro deste ano menos de 11 mil foram efectivamente transferidas para Estados-membros europeus. Mais de 62 mil pessoas continuam bloqueadas na Grécia – um tema desenvolvido na reportagem multimédia “Encalhados no quintal da Europa”.

Em declarações à Renascença recentemente, a porta-voz da Comissão Natasha Bertaud admitia que “a recolocação demorou muito a começar a funcionar, devido a vários problemas estruturais”, mas defendia que “os números têm subido significativamente” e “será perfeitamente possível, até ao fim de 2017, recolocar todos os que são elegíveis."

Mas importa sublinhar que os números mudaram. Natasha Bertaud sustenta que “o compromisso inicial era apenas para recolocar 120 mil, porque 54 mil nunca foram atribuídos” – estes deveriam ter sido recolocados a partir da Hungria, mas como o país de Viktor Orbán nunca quis participar no esquema, o número ficou congelado até agora. A porta-voz garante que esse valor foi agora mudado “para a reinstalação directamente a partir da Turquia”.

Dentro dos 120 mil, continua a porta-voz, “não há realmente esse número de pessoas elegíveis na Grécia ou em Itália. Na Grécia há cerca de 24 mil pessoas de nacionalidades que podem entrar no esquema de recolocação e ao ritmo que estamos a ir agora, será possível recolocarmos todos”.

O mecanismo só está acessível para requerentes com elevada hipótese de verem o pedido de asilo aceite (mais de 75% de taxa média de reconhecimento nos países da UE). A lista de nacionalidades elegíveis é revista todos os trimestres de acordo com os dados do Eurostat. Desde Dezembro, podem candidatar-se os nacionais do Burundi, Eritreia, Maldivas, Omã, Qatar, Síria e Iémen.