Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

Entrevista a Joseph Muscat

Malta defende acordo com a Líbia para evitar Primavera trágica no Mediterrâneo

02 fev, 2017 - 20:20 • Catarina Santos

É preciso fazer na Líbia o que se fez na Turquia: "destruir" o negócio dos traficantes, defende o primeiro-ministro de Malta. Em entrevista à Renascença, critica a solidariedade "a la carte" e diz que é preciso responder às "questões legítimas" que encontram respostas fáceis no populismo.

A+ / A-
Malta defende acordo com a Líbia para evitar Primavera trágica no Mediterrâneo
Malta defende acordo com a Líbia para evitar Primavera trágica no Mediterrâneo

A vista do hotel mostrava o Aqueduto das Águas Livres e o manto verde de Monsanto, num sábado de sol que fazia Lisboa parecer um postal. Joseph Muscat semicerrava os olhos em direcção à janela, lamentando a passagem demasiado fugaz pela cidade. Chegou na sexta-feira para se reunir com o homólogo António Costa, partiu no sábado depois de participar na cimeira que reuniu os líderes dos sete países do Sul do Europa.

Malta assume actualmente a presidência da União Europeia (UE) e o primeiro-ministro tem em mãos “demasiados problemas desafiantes”. Como a questão dos refugiados e da segurança, que promete dominar as discussões entre os chefes de estado e de governo que se reúnem esta sexta-feira em Valeta.

Por inevitabilidade geográfica, o mais pequeno estado-membro começou a lidar com os migrantes vindos do Norte de África muito antes de a expressão “crise migratória” ter qualquer significado para o continente. Joseph Muscat reivindica, por isso, legitimidade acrescida para exigir que a solidariedade não seja “à la carte”. Nesta entrevista à Renascença, explica porque defende um acordo com a Líbia semelhante ao que a UE assinou com a Turquia – uma proposta que caiu mal nos corredores das instituições europeias.

Malta assume pela primeira vez a presidência da UE, com algumas batatas quentes nas mãos. Qual é o seu principal desafio?

Temos demasiados problemas desafiantes para escolher apenas um. Há o contexto geopolítico, uma nova realidade global, na qual estamos a viver, não só enquanto país – somos o estado-membro mais pequeno da União Europeia –, mas enquanto Europa. E o mundo como um todo. Há uma mudança na paisagem, que temos de compreender melhor, temos de pensar qual deve ser a nossa reacção.

Mais perto de casa, temos o assunto da migração e do Brexit. Mas o mais importante é que a Europa não pode tornar-se vítima de crises sucessivas, tem de continuar a desenvolver-se da melhor forma possível, mas de uma forma que beneficie os cidadãos. É óbvio que há um afastamento entre as pessoas e este projecto. Creio que o projecto tem de se reconciliar com as pessoas e regressar às suas raízes, que nos últimos 60 anos trouxeram não só paz mas também prosperidade. Fazendo um balanço, tem sido um bom projecto.

Depois da crise económica, a Europa parece estar agora a enfrentar desafios de outra ordem e talvez um pouco mais difíceis de resolver. Diria que o populismo é a maior ameaça que a UE enfrenta?

Começaria por perguntar o que queremos dizer com populismo. Eu acredito que as pessoas têm direito a fazer perguntas. Se há famílias e trabalhadores que estão preocupados com a ideia de os seus empregos serem ocupados por estrangeiros, de os seus padrões de vida se estarem a deteriorar, pessoas que podem estar preocupadas com a sua segurança... Creio que são questões legítimas. Acredito que o problema, até agora, tem sido que os partidos políticos mais populares, que construíram países durante anos, têm evitado responder a essas perguntas. Alguns ignoraram pessoas que expressam preocupações genuínas, considerando-as simplesmente racistas. Talvez sejam pessoas que não vêem o quadro todo, mas apenas pensam no seu emprego, no seu bairro. Acho que isto está muito errado. Deixámos bastante espaço vago para os extremistas, que estão prontos para responder a essas perguntas com as respostas erradas. São erradas, mas são as únicas que estão disponíveis neste momento.

Eu defendo que devemos encarar esses problemas frontalmente, começando por aceitar algumas verdades desconfortáveis, e conseguir explicar às pessoas por que é que uma sociedade aberta é melhor do que uma sociedade fechada. Explicar por que razão é benéfico para as pessoas ter uma política de comércio livre, em vez de uma política proteccionista. E tentar não confundir protecção e proteccionismo. Acredito que as pessoas têm direito a esperar serem protegidas, em termos de segurança, economicamente, socialmente, mas isso é protecção, não deve resultar em proteccionismo, rodeando-nos de guerras psicológicas e físicas que nos dão a impressão de que estamos seguros até percebermos que estamos a viver numa prisão. Creio que esses são os problemas fundamentais que a Europa tem de debater.

Esse diálogo pode demorar e teremos em breve eleições na Holanda e em França, que colocarão esses problemas em evidência. Vamos a tempo?

Claro que não. Mas devemos ter uma abordagem múltipla. Devemos perceber que enfrentamos uma nova realidade, adoptando uma abordagem abrangente. Mas também tentar responder aos problemas de curto-prazo. Todos sabemos que há problemas com o acordo que a Europa assinou com a Turquia sobre os migrantes, mas até agora foi a única solução de curto prazo – que deve ser vista num contexto holístico – que teve algum tipo de efeito. Temos de ver essas soluções de curto prazo. Será a tempo das eleições? Não sei. Definitivamente, sendo o estado-membro mais pequeno, estamos a tentar fazer o nosso melhor para abanar o sistema e mostrar que algumas coisas podem ser feitas.

A Comissão Europeia apresentou propostas que quer ver discutidas na reunião de Valeta, esta sexta-feira. Um dos pontos-chave é a luta contra as redes de tráfico de seres humanos, que parece ser também um dos objectivos mais difíceis. A UE triplicou a presença de meios no Mediterrâneo, mas não está a conseguir avanços neste campo. Que estratégia defende?

Muito directamente: aprecio o que a Comissão está a tentar fazer e a apresentação destas propostas, mas acho que não é suficiente. Talvez este seja o momento, na minha vida, em que mais desejo estar muito errado, mas penso que na Primavera veremos o início de uma enorme crise migratória, novamente, no Mediterrâneo. O que tem sido proposto até agora não é suficiente. Apoio as iniciativas de estados-membros como a Itália, que tentam chegar a acordos sustentáveis com países do sul do Mediterrâneo. Sei que são problemáticos, não podem ser simplistas, mas, a menos que algo deste género seja feito para destruir o modelo de negócio dos traficantes – o que não está a ser feito, apesar de a Comissão estar a apontar nessa direcção –, enfrentaremos uma nova crise de grandes proporções.

Creio que as pessoas nos perdoam por não termos estado preparados, enquanto Europa, da primeira vez que aconteceu, há meses, mas se virem que a Europa está a perceber o que aí vem e está apenas parada a olhar para o problema, terão razão para ficarem muito desiludidas.

Defendeu um acordo com a Líbia semelhante ao que foi feito com a Turquia, mas a Líbia é um país muito diferente...

A Líbia é um país muito diferente. Eu disse que gostaria de ver replicado o acordo com a Turquia na sua essência: destruir o modelo de negócio dos traficantes. Reconhecendo a realidade da Líbia, temos de romper o ciclo que permite que as pessoas estejam à mercê de organizações criminosas. Há estimativas que indicam que alguns destes grupos facturam pelo menos 5 milhões de euros por semana com o tráfico de pessoas. Eu quero acabar com este modelo de negócio. Assim que o fizermos, é possível gerir melhor a situação. Sabemos que as pessoas que vêm pela rota do Mediterrâneo central é diferente, há menos sírios, mais migrantes económicos. Eu gostaria que isto se resolvesse com corredores humanitários, para que as pessoas elegíveis para terem asilo e protecção não tenham de arriscar a vida no mar. Deveríamos ter corredores humanitários para transferir essas pessoas em segurança para países europeus, de uma maneira gerível e em números geríveis, em vez de o fazermos de forma irregular gerida por criminosos.

Parece ser algo que demoraria algum tempo...

O acordo com a Turquia não demorou muito tempo.

Sim, mas era mais simples. Criar corredores é algo que tem de ser feito nas fronteiras a sul da Líbia...

Não sou muito pessimista. Se houver vontade política... O acordo com a Turquia materializou-se em poucas semanas, porque havia vontade política para o fazer. Creio que pode haver vontade política para fazer este acordo, reconhecendo a situação na Líbia e encontrando formas de trabalhar na região.

Focando-nos nos outros países africanos, nos países de trânsito?

Acredito que temos de nos focar, não só nos países de trânsito, mas no povo líbio. As tribos líbias, por necessidade, estão envolvidas no tráfico humano, porque é a única forma de terem dinheiro para se sustentarem. Devemos abordar essas tribos não de forma beligerante, não atacando-as, mas dando-lhes alternativas económicas, mostrando-lhes que estamos dispostos a investir nas suas comunidades. Isso não significa demorar anos, significa tratar do básico – saneamento, saúde – de comunidades que não têm sequer clínicas básicas para tratar as suas crianças. A única forma de conseguirem dinheiro suficiente para salvar as suas crianças é cooperando com os criminosos no tráfico de pessoas.

Eu acredito que há uma abordagem de senso comum que pode e deve ser feita.

Para isso seria necessário ajudar a estabilizar o país também. Nada acontecerá se isso não for feito.

Claro que sim. Mas temos de ver que existe um governo reconhecido internacionalmente. Que tem problemas, mas que a comunidade internacional decidiu reconhecer. Para mim, simplesmente reconhecer e não fazer nada não é suficiente.

Quanto ao acordo com a Turquia, referiu-o como uma solução de curto prazo que funcionou, mas o Presidente Recep Tayyip Erdogan ameaça constantemente rompê-lo. Acha que o acordo se manterá sólido por muito tempo, apesar de tudo?

Se será sólido por muito tempo não sei, disse que era uma solução de curto prazo, até porque aconteceu no contexto de uma situação de curto prazo. Não é um acordo com final aberto, funciona com base num quadro definido. Não vou especular sobre o que o governo turco pretende fazer ou porquê. Direi apenas que temos de tratar a Turquia como um parceiro valioso, apesar de todos os problemas que conhecemos. Fechar as pessoas com quem dialogamos fora da nossa porta... A história diz-nos que é a forma errada de abordagem. Sou um forte apoiante de um diálogo contínuo com a Turquia.

Outro tema que a Comissão Europeia quer ver discutido nesta reunião é o controlo de fronteiras, que continua a ser um grande problema. Foi proposto que se prolonguem por mais três meses os controlos internos na Áustria, Alemanha, Dinamarca, Suécia e Noruega. Até que ponto esta ideia de insegurança ameaça o espaço Schengen?

É uma ameaça, é um problema. Acredito que a Comissão está a ser muito sensível neste plano das fronteiras inteligentes – que são fundamentalmente soluções tecnológicas, mas não só. Permitirão que as pessoas continuem a viajar livremente entre países, mas há informação que é partilhada sobre pessoas que os serviços acreditam que são perigosas. Onde as pessoas vêem o lado mau… Por exemplo, o facto de o terrorista que levou a cabo o ataque na Alemanha só ter sido apanhado em Itália. Eu vejo aqui também o lado bom. Se tivéssemos controlo de fronteiras e a nossa principal preocupação fosse apenas que as pessoas não saíssem ou não entrassem, tendo o terrorista conseguido sair da Alemanha, talvez nunca mais fosse apanhado. Por termos um sistema interno, quando conseguiu sair de um país foi apanhado noutro. Creio que esse é um aspecto positivo da cooperação.

Temos de dar protecção, não proteccionismo. As pessoas têm razão quando esperam ser protegidas, é um dever do estado protegê-las, mas talvez a pessoa mais segura da Terra seja alguém que está fechado num quarto, sem nada nem ninguém. É bastante seguro, mas também bastante desolador. Creio que isso seria algo que iria no sentido contrário de todo o progresso do projecto europeu.

De reunião em reunião, os estados-membros têm concordado que é necessária mais solidariedade entre todos, mas depois voltam para casa e nada acontece. A recolocação de migrantes é um exemplo deste problema. Diria que há um limite para pedir gentilmente mais solidariedade?

Posso apenas dizer-lhe o que nós estamos a fazer, sendo o estado-membro mais pequeno. Há cerca de 15 anos começámos a lidar com a crise migratória no nosso país. E na altura estávamos praticamente por nossa conta. Dissemos "atenção, há mil ou duas mil pessoas em Malta", o que para uma população de menos de meio milhão de pessoas é muito. É equivalente a centenas de milhares em Portugal. E ninguém se preocupou. Com o tempo, conseguimos gerir melhor a situação, sobretudo colaborando com os nossos colegas italianos. Quando se falou no mecanismo de recolocação, tinha no meu país pessoas a dizer-me "ninguém nos ajudou, ou não ajudaram quase nada quando precisámos. Deixa-os cozer. Por que deveríamos ajudar os outros?". Mas fizemos o oposto. As estatísticas mostram que Malta é um dos países que, em termos de percentagem, acolheram uma parte mais substancial de refugiados do programa de recolocação. Porque acreditamos que a solidariedade não é "à la carte". Não é algo que se reclame quando se precisa e se ignore quando outros precisam. O país que levou primeiro com esta onda de migração vinda de África foi o país que mais depressa ajudou outros quando precisaram. Creio que isso nos dá muita credibilidade, quer dizer que falamos a sério.

Não vou julgar outros países pelo que eles deveriam fazer. Percebo as pressões e percebo que, quando se tomam decisões, elas devem ser implementadas. Respeito mais quem diz não à partida do que pessoas que dizem sim e, na verdade, queriam dizer não.

Elegeu como objectivo maior da presidência maltesa da UE a "reconciliação" dos estados-membros. Como pretende fazer isso?

Trata-se de estabelecer prioridades. As reuniões que eu tive com os meus colegas evidenciaram a preocupação de uma minoria de estados-membros, que nos perguntam como podemos discutir a distribuição de pessoas quando nem sequer temos controlo das nossas fronteiras externas, sobretudo as fronteiras marítimas. Em Portugal têm fronteiras terrestres e marítimas, podem compreender isto. Nas fronteiras terrestres, se um governo quiser pode construir um muro. Podemos debater a moralidade dessa decisão, mas é uma decisão política que se pode tomar. Mas não se pode construir um muro no mar. No mar, quando há pessoas a chegar, só há uma decisão a tomar: salvá-las ou deixá-las morrer. Creio que a decisão natural de qualquer um quando há pessoas a afogar-se no mar é salvá-las.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+