António Guterres apresenta-se com "uma agenda positiva" na corrida a secretário-geral das Nações Unidas, o que o transforma "numa espécie de Jacques Delors" e isso pode assustar alguns membros ocidentais do Conselho de Segurança, considera Francisco Seixas da Costa.

"Sabemos que os secretários-gerais [da ONU] - ou os presidentes da Comissão Europeia - com uma agenda forte, personalizada e com vontade de mudar, às vezes são incómodos", acrescentou o antigo embaixador português junto das Nações Unidas em entrevista à agência Lusa na antecipação da presença esta segunda-feira da vice-presidente da Comissão Europeia Kristalina Georgieva, na Assembleia Geral (AG) das Nações Unidas para defender a sua candidatura à liderança da ONU.

Sobre Georgieva - que se submete, como sucedeu com os restantes candidatos, às perguntas da AG durante aproximadamente duas horas - Seixas da Costa considera-a "uma mulher-de-mão dos alemães".

"Representou claramente a mobilização dos alemães junto de alguns parceiros, nomeadamente do centro e leste europeu, no sentido de garantirem um nome que pudesse representar os seus interesses", acrescenta o antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

Caso venha a vencer a corrida à liderança da ONU, Kristalina Georgieva será, por isso, uma secretária-geral "muito marcada pelo modo como surgiu", aspecto que também "condicionará a sua acção".

"É evidente que o facto de ter aparecido uma candidata da direita europeia é algo que será visto por alguns países com o relativismo que isto significa".

Isto não retira, porém, força à segunda candidatura búlgara nesta corrida. Kristalina Georgieva tem "fortes" hipóteses de chegar ao cargo hoje ocupado pelo sul-coreano Ban Ki-moon, na opinião de Seixas da Costa, que, ainda assim, não quer arriscar um palpite definitivo.

"Não faço ideia" de quem pode vencer esta corrida. "Sempre fui muito prudente nesta questão", diz o ex-governante, hoje professor universitário. "Acho que as Nações Unidas são uma organização muito fria, em que o factor qualidade, experiência e tudo isso pode não prevalecer sobre os jogos de poder. Portanto, a probabilidade de Georgieva vir a ganhar existe e é forte", avisa Seixas da Costa.

E se acontecer, diz também, "não há espaços para grandes surpresas", assim como "não deve haver espaço - a não ser numa lógica nacional - para grandes indignações".

"As Nações Unidas são assim, os jogos geopolíticos são assim, e todos sabemos que, mais cedo ou mais tarde, acabariam por se impor as determinantes de uma luta de natureza política", diz Seixas da Costa.

"Nas Nações Unidas, e nestas áreas internacionais, há uns acordos que passam por outros dossiers que não aqueles que estão em cima da mesa e que podem ser interessantes para alguns países, e, em particular, para os membros permanentes do Conselho de Segurança (CS)", acusa.

"Uma decisão destas não se esgota no processo específico de selecção e eleição de um secretário-geral. Há um conjunto de dossiers paralelos que não deixarão de estar presentes. Se calhar, não em cima da mesa, mas talvez nos corredores", acrescenta.

Daí que, a Guterres lhe reste a "probabilidade" de "ter conseguido, pela sua performance e pelo modo como se impôs em todas as votações e também nas audições, tornar difícil reverter essa tendência" ganhadora.

Esse é o principal trunfo do antigo primeiro-ministro português e ex-Alto Representante das Nações Unidas para os Refugiados, na opinião de Seixas da Costa.

A candidatura de Guterres "não se faz para ninguém" e, sobretudo, "não aparece em cima da mesa num momento tardio da votação". Ele está lá desde o início", diz Seixas da Costa.

Mas Guterres "é um candidato que pode assustar algumas pessoas, em particular, pode assustar alguns membros permanentes do CS, diria mesmo, alguns membros ocidentais do CS", sublinha porém o ex-embaixador junto da ONU.

E isto funciona a desfavor do ex-chefe do Governo português? Talvez, mas não necessariamente. "Estou ainda confiante que as Nações Unidas tenham um mínimo de vergonha", diz Seixas da Costa.

Próximo secretário-geral da ONU será escolhido por EUA e Rússia

A vice-presidente da Comissão Europeia Kristalina Georgieva vai esta segunda-feira defender a sua candidatura à liderança da ONU na Assembleia Geral das Nações Unidas, mas a decisão caberá aos Estados Unidos e à Rússia, diz Francisco Seixas da Costa.

A escolha do sucessor de Ban Ki-moon entrará, por isso, na sua fase decisiva na próxima quarta-feira, quando Georgieva for ouvida pela primeira vez no Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas e a Assembleia Geral só voltará a pronunciar-se sobre o próximo secretário-geral quando houver um - e apenas um - candidato, sublinha o antigo embaixador português junto das Nações Unidas.

"Nunca haverá impasses nesta decisão - que será do CS - e nunca a Assembleia Geral (AG) terá a última palavra", diz Seixas da Costa.

"Estou a dizer CS para utilizar uma fórmula muito normativa, porque na realidade, quem decide é um acordo entre os Estados Unidos e a Rússia", acrescenta Seixas da Costa.

"Sobre isso, não há a mais pequena dúvida. No passado foi sempre assim. O candidato escolhido é sempre alguém que o ocidente propõe e a quem a Rússia diz que sim", afirma taxativo. "A AG terá formalmente a última palavra, mas será só sobre um candidato, que é o que o CS vai produzir. E não há nenhuma dúvida de que o CS acabará por produzir um candidato, que, neste momento, e olhando para os equilíbrios em cima da mesa, será Georgieva ou Guterres", acrescenta o antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus, para quem, como dizem os franceses, "les jeux sont faits".

Ainda que lançados, porém, os dados não pararam de rolar. Quando se apresentar ao CS, no dia 5, a vice-presidente da União Europeia vai ser sujeita aos mesmos votos que qualquer outro candidato. Precisará de ter um mínimo de nove votos no conjunto global dos quinze membros do CS.

"Poderá não ter -- admite Seixas da Costa -, mas há seguramente nesta candidatura tardia uma jogada que deve ter tido algumas garantias. Ou, pelo menos, a garantia da não-oposição de princípio de qualquer Estado ou membro permanente e, em particular, da Rússia".

"Como é que é possível esta candidatura [de Georgieva] ter surgido sem um mínimo de concertação com a Rússia?", interroga. Ainda que não vá ao ponto de afirmar que "os EUA estejam envolvidos nesta fase do campeonato nessa negociação", o ex-governante acredita não apenas que terá acontecido essa concertação, como, pelo menos, houve "da parte da Rússia um 'nihil obstat', uma indicação de que não colocarão obstáculos a Georgieva desde o início. Porque um veto russo, obviamente, inviabilizaria essa situação", afirma.

"Enfim, alguns perguntam porque razão ela só teve um mês de licença sem vencimento. Mas a Rússia, provavelmente, deve ter dado algum sinal de que deixaria o processo avançar no quadro do CS com Georgieva lá dentro sem, pelo menos no início, lhe criar um veto", acrescenta.

Por outro lado, sublinha Seixas da Costa, é difícil conceber que "esta candidatura se tivesse feito num pressuposto da posição que os russos assumiram ao colocarem reticências ao modo como [a chanceler alemã] Angela Merkel, à margem da reunião do G20 [em Hangzhou, na China, em 4 e 5 de Setembro último], tentou promover a candidatura de Georgieva".

"Os russos reagiram, na altura, contra isso, mas se essa reação significasse que, perante o surgimento da candidatura de Georgieva, a vetariam, então, seguramente, ela não teria avançado", considera o ex-embaixador.

"A questão a saber -- e para mim é a grande questão para a qual não tenho resposta -- é em que medida uma candidata que surge de um conjunto de países que tem atrás de si nos últimos meses um histórico de tensões com a Rússia pode, ao mesmo tempo, satisfazer a Rússia. Não sei como é que esta quadratura do círculo pode ser ultrapassada", acrescenta Francisco Seixas da Costa.

Mas já não falta muito para que se saiba se Georgieva avançou com as garantias de que nenhum membro do Conselho de Segurança a vai vetar.

Quanto a António Guterres, Seixas da Costa acredita que "será difícil para um país como a França ou como o Reino Unido, ou mesmo como os Estados Unidos, darem um voto negativo", que o afaste.

"Seria um gesto que é pouco compatível com aquilo que foi o sentido de algumas conversas de natureza político-diplomática que se tem vindo a ter ao longo dos últimos meses", diz.

"A grande incógnita é a posição da China ou da Rússia. Não temos qualquer indicação de que o candidato António Guterres possa ter uma objecção de fundo de qualquer destes dois países", acrescenta.

Daí que - Seixas da Costa volta ao seu ponto - "vamos saber qual é o candidato que mais convém à Rússia, dentro do leque daqueles que lhe são apresentados pelo ocidente. É esta a regra".

Quando aos membros não permanentes do CS, o ex-embaixador considera ser "um pouco complicado" perceber como vão votar. "No passado, na sucessão das várias votações, já houve cambalhotas, mudanças de posição. Não podemos excluir em absoluto que haja até ao final algumas mudanças de posição", avisa.

A vice-presidente da Comissão Europeia Kristalina Georgieva defende esta segunda-feira a sua candidatura à liderança da ONU perante a Assembleia Geral das Nações Unidas.

Georgieva, que se junta agora à corrida pela liderança das Nações Unidas, submete-se, como sucedeu com os restantes candidatos, às perguntas da Assembleia Geral durante aproximadamente duas horas.

A Bulgária anunciou no dia 28 de Outubro a mudança da sua candidata ao cargo de secretário-geral da ONU, substituindo Irina Bokova por Kristalina Georgieva.

Dos 12 candidatos iniciais, três já renunciaram, pelo que com a entrada de Kristalina Georgieva são dez os aspirantes ao cargo.

A próxima votação do Conselho de Segurança é a 5 de Outubro, na qual se ficará a conhecer a posição dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU - Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido -, com poder de veto.