Vamos imaginar um cenário em que a igreja católica tem o poder para decidir aquilo que a sociedade (isto é, pensadores, escritores, humoristas) pode ou não dizer sobre o catolicismo e a fé; vamos imaginar um cenário em que, através da invocação do direito a não ser "ofendido" com perguntas, críticas e piadas, os cristãos sentem que podem proibir livros, despedir artistas, lançar um anátema de censura e auto-censura sobre tudo o que se diz sobre o cristianismo, que passa a ser assim um totem sagrado acima de qualquer crítica ou piada; vamos imaginar que os cristãos conseguem isto, vamos imaginar que dezenas ou mesmo centenas de autores e actores são despedidos e que dezenas ou centenas de livros, discos e filmes entram num index.

Não, não estou a falar de certos períodos do passado em que os católicos tiveram mesmo este poder. Estou a falar do presente. Sim, do presente. Troquem, por favor, a palavra “católico” pela palavra “gay” ou “negro” e ficam com um retrato do clima de censura que está no ar em 2021. Quando um tradutor branco tem de se demitir porque as brigadas do politicamente correcto não admitem que um poema escrito por uma negra seja traduzido por um homem branco, nós já estamos num lodo nacionalista. Sim, nacionalista. O politicamente correto aplica às minorias a lógica sectária e tribal que os nacionalistas aplicam à nação como um todo. A extrema-esquerda deste politicamente correto e o nacionalismo de extrema-direita negam em igual medida a humanidade partilhada de todos os homens. Em 1930, um nacionalista alemão dizia que só um alemão podia compreender um alemão. Em 2021, os ideólogos do politicamente correto também dizem que só um negro pode compreender um negro.

Neste quadro mental, assume-se - de forma errada - que os limites daquilo que pode ser dito sobre gays são determinados pela própria “comunidade gay”, por exemplo. É um absurdo. Se defendesse que os limites do discurso público sobre o catolicismo só podiam ser determinados pela própria igreja católica, eu seria acusado (e bem) de “ultramontano”, “inimigo da liberdade”, “reaccionário”, etcétera. Mas então porque é que aqueles que dizem que os limites do discurso público sobre gays devem ser determinados pela própria “comunidade gay” são de imediato considerados como “tolerantes” e defensores da “justiça social”? Que absurdo é este? Ninguém tem o direito de ficar acima da crítica e da piada que considera ofensiva. Por esta lógica, os biógrafos bons, aqueles que irritam os biografados, são uma impossibilidade.

Eu, como católico, oiço piada anti-católicas todos os dias; tenho de viver numa cultura que goza todos os dias aquilo que tenho de mais íntimo, a minha fé; tenho de criar um escudo de ironia e auto-ironia para lidar com essa paródia, mas, ao meu lado, um “gay” ou um “negro” já tem o direito sagrado de não ouvir piadas que considera ofensivas? Que igualdade é esta? O princípio do politicamente correto, o direito a não ser “ofendido”, é a maior ameaça à liberdade da literatura, do pensamento, do humor. É uma ameaça superior ao trumpismo, porque tem boa imprensa, porque não é atacada com a veemência que se exige.