Não gosto de ver Marcelo, todas as noites, debaixo do fogo das câmaras da CMTV entre pessoas sem abrigo, que ora estão na estação do Rossio e lhe oferecem cachorrinhos, ora dormem na rua para os lados de Santa Apolónia e lhe merecem a designação de heróis da pátria. Porque “no esforço pela busca de meios de sobrevivência” salvam recém-nascidos descartados como se se tratassem de jornais velhos.

Não sei se o senhor Manuel (seria este o seu nome?) abraçado ao Presidente gera a empatia pretendida pela sua situação de excluído ou, pelo contrário, acentua a simples rejeição da política “show-off”. Dito isto, a verdade é que, pesados os prós e os contras, acho que o apelo de consciência de um Marcelo cristão Presidente de um país laico não tem como fugir à situação, pelo menos se quiser manter na agenda mediático-política a luta contra a exclusão e a indiferença como uma prioridade cívica nacional. Mesmo sujeitando-se a críticas “extremamente desagradáveis”, como, aqui mesmo na Renascença, a Joana Marques não o poupou.

Não me ocorre melhor ideia para nos cobrir diariamente a todos de vergonha. Tem o seu quê de patético ver a jovem ministra do Trabalho ao lado do Presidente, a anotar demoras de processos burocráticos, que se arrastam meses ou anos e visam tirar menos de 400 pessoas das ruas de Lisboa (já foram milhares!). A cena parece uma demonstração da incapacidade de ação dos poderes públicos. Ou, pior ainda, demonstra uma quase compulsão assistencialista do exercício das políticas de combate à pobreza e à exclusão, mas vale como arma de combate à indiferença.

Não devia ser assim. Mas o país é o que é. Esta jangada bipolar, onde se juntam, no mesmo dia, a escassos metros de distância, centenas de jovens ambiciosos fascinados por um boneco de peluche em forma de unicórnio e “penthouses” onde instalarão os seus gabinetes de gestores de empresas, avaliadas em mais de mil milhões – tudo de preferência antes de deixar os 'vintes' – e, ao lado, gente que dorme na rua em estado de alerta permanente e anda "aos papéis” antes dos 40.

Não somos caso único. Em todo o mundo dito “civilizado” se vive a mesma duplicidade. Esta semana, em Paris, às cinco da manhã, mais de 500 polícias avançaram para um acampamento improvisado de migrantes das mais variadas nacionalidades, com vista a levar homens, mulheres e crianças para centros de acolhimento em locais discretos e menos suscetíveis de embaciar o brilho da cidade-luz em época natalícia. Tudo para diminuir o pânico securitário da classe média.

Gente vinda de todo o mundo, como na nossa Web Summit, mas sem ténis de marca e sem aquele ar deliciosamente “negligée” dos rapazes e raparigas que invadiram a nova FIL. Como dizia o velho ator norte-americano Danny Glover, no Rivoli no Porto, enquanto participante no Fórum do Futuro: “Não me lembro de outro tempo com tanta desigualdade.”

Vale a pena dizer que desigualdade é sempre sinónimo de pobreza. Esta só existe por oposição à não-pobreza. As duas violam os Direitos Humanos mas a pobreza pode ser vista também como um problema grave de saúde pública. Em Portugal, no caso das pessoas sem abrigo, as doenças psiquiátricas e os casos de dependência do álcool e das drogas são muitas vezes prevalecentes. Mas mesmo nesse grupo os sinais exteriores são sintomas perturbadores, mas não são a génese da doença.

A pobreza mais grave e endémica é a pobreza com teto e até com trabalho (entre o salário mínimo e a linha de pobreza vão só 150 euros). É preciso combatê-la, mas sobretudo é preciso reforçar a sua deteção precoce. Como qualquer “doença” que se apresente como hereditária, crónica, debilitante e facilmente transmissível.

Sabemos até que ponto são quase sempre filhos de pobres, muitas vezes até à quinta geração, e perante a ineficiência do funcionamento dos elevadores sociais (condições de habitação, alimentação e acompanhamento que permitam e facilitem o sucesso escolar, o acesso ao Ensino Superior e à qualificação profissional, a ocupação de postos de trabalho bem remunerados, progressão meritocrática na carreira etc…). A pobreza facilmente assume características de autêntica doença contagiosa em contexto familiar.

O diagnóstico está feito. Economistas, sociólogos, psicólogos, e outros cientistas sociais investiram anos de investigação e descobriram as vacinas. Estão aí, ao serviço dos políticos, suficientemente testadas e disponíveis. Só falta sensibilizarmo-nos a todos para a prioridade da sua inclusão no Plano Nacional de Vacinação. Tendo clara uma ideia: não há terapêutica que resulte se visar apenas “os pobres”. Só pode resultar com a colaboração ativa do doente, quebrando o mito de que a pobreza é coisa do “destino” e de que quem nasce pobre, pobre morrerá.

É por isso que a Comissão Nacional Justiça e Paz vai amanhã promover no Centro Cultural Franciscano um dia inteiro de reflexão subordinado ao tema “Com os pobres”. Ali, além do arcebispo de Barcelona vir explicar o que significa hoje na Europa a proposta da “opção preferencial pelos pobres”, a economista Joana Duarte Silvada (UCP) falará da perspetiva económica e Pedro Góis (UC) vai tratar a pobreza na ótica do desenvolvimento e das migrações. Os três falarão das várias vacinas anti-pobreza. E de como podem ser eficazes se ministradas em tomas repetidas e na dose certa. Não é só mais um fórum anual. Quer-se que seja O Fórum.

Vale a pena passar por lá. Porque os cristãos não podem continuar a fugir. Aproveitemos a difícil digestão de uma estória tão tenebrosa que leva uma jovem mulher, ela própria sem abrigo, a dar à luz em plena rua, despejando o filho num contentor como quem se livra de um cartão velho desnecessário.

Agora que o seu bebé está salvo, falta salvar também essa mulher, como nos lembra o Henrique Raposo. Mas isso não passa por fingir que a culpa é sempre e só do sistema que a pode ter levado a um ato de loucura monstruosa. As pessoas sem abrigo são gente como nós e só por o serem não são inimputáveis.

O senhor Manuel (?) que vive na rua é um herói? Não sei. Só sei que viu naquele bebé um semelhante.

Este ano o menino Jesus não chegou a Belém. Nasceu antecipadamente, um bocadinho antes, ali em Santa Apolónia. Foi encontrado nu, meio-morto entre papéis, ainda mais pobre e rejeitado do que a história nos diz. Por ironia, o primeiro a dar-lhe colo foi um sem-abrigo, como Ele.