Como se explica o facto de haver tantas polémicas com o VAR?

É normal que assim seja. Estamos um pouco isolados naquela que é a nossa realidade, mas de facto se tivermos em atenção o que se passa nas outras competições que aderiram a esta ferramenta, as polémicas são iguais ou maiores, acreditem.

Eu chamaria dores de crescimento, embora tenhamos que ser algo exigentes em relação à fase em que estamos. E de facto o VAR já arrancou há duas épocas, e tem havido alguns erros que devem servir para refletir, porque a este nível do campeonato não se justificam.

Que balanço é que faz do VAR até agora?

Eu tenho de fazer um balanço francamente positivo. Sei que pode ferir o adepto mais fervoroso com a sua equipa e com as suas dores clubísticas, mas a verdade é que de uma forma mais distante e pragmática, foram muitas dezenas as decisões bem revistas e o jogo de ontem, felizmente – porque se fosse ao contrário era caótico – foi um bom exemplo disso.

A intervenção do VAR aconteceu várias vezes, todas para repor situações relevantes no jogo e todas bem conseguidas. Portanto foquemos o que é importante focar, que são as boas decisões, e aprendamos a corrigir as que não têm corrido tão bem, o que também tem acontecido.

Não corremos o risco de o árbitro em campo deixar de exercer a sua autoridade, por saber que está respaldado pelo VAR?

É um risco.

No plano teórico o árbitro é sempre quem tem a decisão final, e o VAR surge como um árbitro assistente, que o vai coadjuvar e ajudar a tomar a melhor decisão.

No entanto, no processo subconsciente, o árbitro sabe que nas decisões maiores pode permitir-se ao erro porque pode haver uma correção da sua decisão pelo VAR.

No caso concreto do golo anulado a João Félix, o árbitro está a dois metros, manda seguir, e depois acaba por anular.

E fez muito bem. Primeiro tem uma interpretação de que não há falta, é uma interpretação errada, como as imagens mostraram, e tem um assistente que o retificou, e bem, e fez prevalecer a verdade desportiva.

O árbitro no estádio só consulta as imagens quando é aconselhado para isso pelo VAR? Não devia ser ele a tomar mais vezes a iniciativa?

Temos o sentido prático e o teórico. Aquilo que o protocolo diz é que o árbitro deve fazê-lo pela sua iniciativa, e pode fazê-lo. A primeira premissa do protocolo é o árbitro verificar a sua própria decisão.

Mas não é isso que acontece em Portugal...

Não é só em Portugal. Normalmente quando um árbitro toma uma decisão, toma-a em consciência, portanto na prática muito raramente vai pôr em causa a sua própria decisão, a menos que seja alertado para isso.

Nós estamos de facto a tentar perceber porque é que isso acontece tão poucas vezes e a conclusão a que se chegou foi essa. O árbitro parte do princípio que acertou.

Nesta altura temos uma realidade em que os árbitros estão no campo num dia e podem estar no VAR no dia seguinte. Não devia haver uma equipa fixa só de vídeo-árbitros?

Estamos no segundo ano da ferramenta. E nesta fase, também para árbitros e seus dirigentes, é tudo uma espécie de mundo novo. Vamos testando e vendo como funciona. O próprio protocolo, que está neste momento muito restrito a quatro situações e, mesmo assim, quando elas são evidentes aos olhos do vídeo-árbitro, também será revisto com o tempo.

Havia algum receio com as quebras de tempo, à dinâmica e às emoções do jogo e tudo isso fez com que se afunilasse muito a questão do protocolo e do rigor com que é aplicado.

Estou em crer que isto irá evoluir para um patamar em que teremos vídeo-árbitros especializados. Penso que esse é o caminho e é inequívoco.

Alinharia na ideia de dois vídeo-árbitros, como aconteceu na final da Taça da Liga?

Em relação à primeira questão, acho que dois homens, se forem competentes, e se tiverem boa sensibilidade para a função, podem sempre decidir melhor do que só um. Tenho algum receio, na prática, até porque este é um jogo de muitas situações subjetivas, de muita interpretação, que muita gente possa ser sinónimo de muita confusão. Ou seja, quanto mais pessoas, mais opiniões distintas, e isso em vez de ajudar pode confundir.

Se houver um equilíbrio nessa premissa pode ser válido, como foi nesse jogo. É importante também perceber quais são os recursos humanos e financeiros que existem para suportar esse tipo de opção, ou seja, nesse caso em Portugal haveria condições para haver dois vídeo-árbitros, que são dois árbitros de primeira categoria, e um em campo? Temos possibilidade de fazer isso em termos de recursos humanos? Penso que ainda não, mas é uma questão de se ver no futuro.

Já se deparou com algum caso em que esteja a ver o jogo pela televisão e pergunta como é possível uma decisão destas?

Já, enquanto adepto, que tento também ser agora que posso usufruir do futebol quando não estou noutras funções. É normal que isso aconteça. E são essas perguntas que o adepto faz que devem também fazer refletir a classe e quem está a dirigir a arbitragem.

Porque existindo erros que até podemos compreender, que são aqueles que ficam no limite da dúvida com a questão inequívoca e que podemos perceber, tem havido um conjunto de falhas que têm posto a nu algumas questões que devem ser trabalhadas. O foco, o escrutínio da imagem que é feito por quem tem de ver as imagens. Tem havido erros porque de facto não tem sido feita a análise melhor das melhores imagens, e também a determinação e a coragem de quem está por detrás do ecrã e eventualmente a competência para a função.

Nós estamos a começar a perceber – e digo nós porque estou agora do ponto de fora da estrutura – que há pessoas com mais e menos competência para a função. Portanto agora é afunilar esse caminho e deixar que ela seja exercida por quem tem mais capacidade.


O ex-árbitro Duarte Gomes, que esteve ligado ao processo de adoção do VAR em Portugal, foi um dos convidados no dia de estreia do programa “As Três da Manhã”, da Renascença.