António Costa, primeiro-ministro de Portugal, subscreveu a posição do Conselho Europeu que condiciona o recebimento de fundos da “bazuca” ao respeito pelo Estado de Direito. Esta posição viria a ser acordada com o Parlamento Europeu; todos os eurodeputados do PS votaram favoravelmente essa condição.

Inesperadamente, uma investigação do grupo de jornalistas de nove países europeus “Investigate Europe”, ontem revelada pelo “Público”, informa que, afinal, Portugal apoiou no Conselho os países que não querem essa condicionalidade. O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia e agora eurodeputado disse ao "Investigate Europe” que “Portugal jogou do nosso lado (played together with us)”. Nos resumos das discussões, feitos pelos diplomatas alemães no Conselho, Portugal é descrito como “muito crítico” da proposta de criação de um mecanismo de salvaguarda do Estado de Direito.

Ora já em 2018, antes da pandemia e da “bazuca, a então secretária dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias, criticou num conselho em Bruxelas, à porta fechada, a criação de um tal mecanismo de salvaguarda, juntamente com o representante do então governo italiano - o qual, nessa altura, era dominado pelo neofascista e eurocético M. Salvini.

De resto, por ocasião de uma visita ao primeiro-ministro húngaro V. Orbán, em julho, A. Costa manifestou-se publicamente contra ligar a canalização de fundos europeus ao respeito pelo Estado de Direito. O primeiro-ministro português concordou com Orbán: violações de direitos devem ser abordadas como previsto nos tratados e não devem servir para penalizar a Hungria na distribuição de fundos europeus.

Não é fácil conciliar tal posição com a declaração ao “Público” do Ministério dos Negócios Estrangeiros, segundo a qual “o não respeito pelo Estado de Direito sempre foi uma ‘linha vermelha’ para o Governo. O primeiro-ministro já referiu várias vezes publicamente que quem não cumpre os valores fundamentais tem de sair da UE.” A sério?!

O apreço oscilante de A. Costa pela democracia também se nota no facto de ele ter previsto para 8 de maio próximo, no Porto, uma cimeira da UE com a Índia, como “joia da coroa” da presidência portuguesa. Quando, em dezembro do ano passado, o primeiro-ministro português fez uma visita à Índia (que seria seguida, em fevereiro, por uma visita do Presidente Marcelo), aplaudi aqui o reforço das relações entre Portugal e aquele país, que é a democracia mais populosa do mundo. Mas observei: “Infelizmente, a Índia está a atravessar uma fase politicamente preocupante. O primeiro-ministro Narendra Modi é um nacionalista hindu, hostil aos muçulmanos”.

Ora essa fase não democrática na Índia agravou-se muito ao longo do corrente ano. Ao ponto de o semanário britânico “The Economist”, no seu último número, sublinhar que N. Modi “ameaça tornar a Índia um país de partido único”. Ora o que nos conta o “Economist”, que é tudo menos um semanário sensacionalista, não são problemas menores.

Há ali dezenas de jornalistas presos. As liberdades civis e políticas sofrem crescentes ataques, a começar pela liberdade de expressão. E a liberdade religiosa é cada vez mais escassa, sendo a perseguição aos muçulmanos um objetivo claro da atuação do governo de Modi, que dá a primazia ao hinduísmo. O recuo da democracia acelerou desde a tomada de posse de Narendra Modi, em 2014, e a subsequente obtenção da maioria absoluta no parlamento federal pelo partido Janata (ao qual pertence Modi), algo que jamais havia acontecido naquela assembleia.

E é com mais este autocrata que o primeiro-ministro português quer fazer um brilharete em pleno debate europeu sobre o Estado de Direito e a “rule of law”?

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