Veja também:


Após a campanha divisiva, insultuosa, radical e desrespeitadora que fez durante um ano e meio, Donald Trump começa a sentir na pele a responsabilidade de ser presidente. E começa a dar sinais de que a demagogia que usou imoderadamente durante a campanha não será a força condutora da governação.

Na terça-feira, Trump encontrou-se com o dono e com alguns responsáveis editoriais do “New York Times”, um dos jornais que mais atacou durante a campanha, e fez várias afirmações que deixam perceber que há muita coisa em reavaliação na sua equipa, agora que se completam duas semanas sobre a eleição.

Duas dessas afirmações são particularmente surpreendentes. Uma respeita ao acordo de Paris sobre o clima. Na conversa com o “NYTimes”, Trump recusou-se a repetir a promessa de que vai denunciar o acordo.

Pelo contrário, disse que estava a “examiná-lo com muito cuidado”, que “está de mente aberta” e que “ar limpo e água cristalinamente limpa são vitalmente importantes”.

Isto, apesar de ter escolhido para chefiar a Agência de Protecção Ambiental um homem que nega a relação entre o aquecimento global e a acção humana. Uma relação que agora Trump admitiu existir: “Penso que há alguma ligação. Algo, alguma coisa. Depende de quanto”, respondeu a uma pergunta directa sobre o tema.

Embora, nos próximos quatro anos, a nova administração não possa revogar o acordo de Paris, basta-lhe não o aplicar para que os efeitos no clima e na atitude dos outros países signatários sejam visíveis.

Mas a abertura de espírito que Trump anunciou talvez indicie uma mudança de posição nesta matéria. Pelo menos, afastou-se da célebre afirmação feita há anos, segundo a qual o aquecimento global era um embuste inventado pela China para prejudicar a competitividade da economia americana.

Não ao “waterboarding”

A outra afirmação surpreendente respeita ao uso da tortura nos interrogatórios aos suspeitos de terrorismo, que Trump defendeu inúmeras vezes durante a campanha eleitoral – nomeadamente, o uso do chamado “waterboarding”, simulação de afogamento.

Na conversa com o “NYTimes”, o presidente eleito revelou que tinha mudado de ideias sobre a eficácia deste método depois de ter falado com o general James Mattis, um marine reformado que poderá tornar-se o novo secretário da Defesa.

“Ele disse-me que nunca tinha achado [o waterboarding] útil” e que preferia ganhar a confiança e garantir a cooperação dos suspeitos de terrorismo. “Dê-me um maço de cigarros e algumas cervejas e eu consigo melhor”, terá dito o general.

“Fiquei muito impressionado com esta resposta”, confessou Trump, aparentemente já convencido de que a tortura “não vai fazer o tipo de diferença que muita gente julga”.

James Mattis está a ser considerado “muito seriamente” para ocupar a pasta da Defesa, mas seja ou não nomeado para o lugar conseguiu já uma proeza notável: afastar o presidente eleito de uma promessa que configurava, a ser aplicada, um crime de guerra para os militares que a praticassem.

Além destes dois assuntos, Donald Trump reafirmou a intenção de abandonar qualquer perseguição a Hillary Clinton, contrariando a ameaça que tinha feito no segundo debate com a rival.

Disse não ter qualquer interesse em perseguir Hillary na questão dos e-mails nem da Fundação Clinton. “Não quero ferir os Clinton, não quero mesmo”, salientou, classificando como “bom” o trabalho da fundação e reconhecendo que o casal já sofreu bastante.

Também a crescente actividade de grupos de extrema-direita, corporizados no movimento autodenominado “alt-right” (direita alternativa), que no fim-de-semana reuniu em Washington, foi objecto da conversa.

Trump disse que não queria encorajar tais grupos, que não os queria ver galvanizados e que, se tal suceder, tentará perceber porquê. Na reunião de Washington do Instituto de Política Nacional, houve saudações nazi e apelos a “limpezas étnicas pacíficas”. “Condeno-os, repudio e condeno”, afirmou o magnata.

A escolha de Stephen Bannon para estratega da Casa Branca foi outro dos tópicos abordados com o “NYTimes”. Considerado um radical de direita, líder do blogue Breitbart, onde já apareceram afirmações anti-semitas, Bannon foi defendido por Trump: “Se achasse que ele é racista, nem sequer pensaria em contratá-lo”.

Conflitos de interesses

Os sinais mais preocupantes destas duas semanas de transição parecem vir dos potenciais conflitos de interesse entre o império empresarial do magnata e o exercício da presidência.

Num encontro recente com o líder do Partido da Independência do Reino Unido, Trump admitiu ter pedido a Nigel Farage para se opor a um projecto de construção de eólicas no mar escocês frente a um empreendimento de golfe que ali detém.

E surgiram ainda notícias de que terá aproveitado o telefonema de felicitações feito pelo Presidente argentino para lhe falar de um projecto imobiliário que tem para Buenos Aires e que gostaria de ver avançar.

“Teoricamente, poderia gerir as minhas empresas perfeitamente e gerir o país perfeitamente sem problemas”, admitiu, reiterando a seguir que o seu império empresarial será gerido pelos filhos, porque está fora de questão vender as empresas. E, com os filhos, Trump continuará a conviver como sempre.

Quem parece ter um destino diferente é o genro. Jared Kushner não só se tornou o principal conselheiro de Trump, como deverá trabalhar directamente na Casa Branca. E o presidente deposita nele grandes esperanças, incluindo a de ajudar a resolver o conflito israelo-palestiniano.

Jared é judeu ortodoxo e, segundo Trump, conhece muita gente no Médio Oriente capaz de mobilizar ambas as partes para a paz.

A ida de Trump ao próprio edifício do “New York Times” para conversar com os homens que tão duramente o criticaram durante a campanha eleitoral foi um claro sinal da distensão que quer promover com os media, agora que foi eleito presidente.

O próprio admitiu que lia o jornal, mas acusou a publicação de não ser imparcial durante a campanha e de ter sido demasiado duro consigo. Classificou, contudo, o jornal como “uma pérola americana, uma pérola mundial”, revelando afinal o respeito que continua a ter pela vetusta instituição nova-iorquina.