11 nov, 2016 - 00:50 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Robert Kagan, um dos mais destacados cientistas políticos neo-conservadores que se tornaram famosos no início do século com a chegada à Casa Branca de George W. Bush, escreveu na Primavera dois artigos no “Washington Post”, a que então aqui fizemos referência.
Um deles tinha por título “É assim que o fascismo chega à América” e o outro “O Frankenstein do GOP” e em ambos arrasava a candidatura de Donald Trump e alertava para os perigos que ela constituía para o país e o mundo. Analisava as suas características populistas, chamava-lhe “egomaníaco” que ignora “as subtilezas da cultura democrática” e cultiva o “ressentimento e desprezo, misturados com medo, ódio e raiva”.
“O seu discurso consiste em atacar ou ridicularizar um vasto espectro de ‘outros’ – muçulmanos, hispânicos, mulheres, chineses, mexicanos, europeus, árabes, imigrantes, refugiados – que representa como ameaças ou como objectos de escárnio”, escrevia Kagan.
Indignado com a opção do seu partido para as presidenciais, este neo-conservador, muito influente na Administração Bush, explicava que Trump não tinha surgido do nada, mas era o resultado da radicalização surgida no GOP (Grand Old Party) sobretudo com a emergência do Tea Party e a recusa constante de compromissos.
“Trump não é nenhum acaso. Nem está a sequestrar o Partido Republicano ou o movimento conservador, se é que isso existe. Ele é uma criação do partido, o seu monstro Frankenstein, trazido à vida pelo partido, alimentado pelo partido e agora suficientemente fortalecido para destruir o seu criador”, escreveu Kagan.
E culpava o “obstrucionismo selvagem” a que o GOP se dedicou nos últimos anos por ter ensinado aos eleitores republicanos que o governo, as instituições, as tradições políticas, as lideranças e os próprios partidos eram coisas para demolir, ignorar, insultar, ridicularizar.
“Não foi Trump” que provocou tudo isto, assegura Kagan, mas sim os intelectuais e comentadores republicanos empenhados em desencadear paixões populistas para impedir qualquer compromisso legislativo com o presidente Obama. Trump limitou-se a aproveitar este ambiente de fúria, xenofobia e fanatismo, motivado também pelo “ódio” a Obama, um “síndrome perturbador tingido de racismo” que assumiu a forma de “inusitada paranóia”.
Relidos agora e com a memória ainda fresca da forma divisiva, agressiva, insultuosa como Trump conduziu toda a campanha eleitoral não podemos deixar de nos interrogar: o Frankenstein chegou à Casa Branca? Ou o Trump que vai exercer o cargo de presidente será necessariamente diferente daquele que vimos na campanha eleitoral?
Integração no sistema
Neste dois dias, houve dois acontecimentos que nos fazem hesitar na resposta. O primeiro foi o discurso de vitória. Ao felicitar Hillary Clinton e agradecer-lhe o contributo que tinha dado ao país, ao dizer que queria sarar as feridas abertas pela campanha eleitoral, ao garantir que vai ser o presidente de todos os americanos e que vai trabalhar para unir a nação, Trump mostrou sentido de Estado e consciência da responsabilidade que passou a ter.
O segundo foi a reunião desta quinta-feira com o presidente Obama, que perante o discurso de vitória de Trump o convidou imediatamente para um encontro na Casa Branca. Os dois homens transmitiram ao país uma mensagem de apaziguamento e transição pacífica do poder. Uma mensagem importante nestes dias em que muitos americanos estão ainda em estado de choque pela vitória de Trump e se manifestam nas ruas, gritando que o magnata não é o seu presidente.
Obama fez questão de dizer que o encontro tinha corrido muito bem e que a sua prioridade nos próximos dois meses será garantir uma transição de administrações o mais eficaz possível, tendo para isso abordado com o presidente eleito questões ligadas ao preenchimento de pessoal, mais do que questões de índole política.
Também Hillary Clinton, na intervenção em que concedeu a derrota, na quarta-feira, felicitou Trump e pediu aos americanos que lhe dêem apoio e o reconheçam como o seu novo líder. E homens prestigiados como o antigo presidente Bush (pai) e o antigo candidato republicano Mitt Romney endereçaram a Trump mensagens de felicitações e manifestaram disponibilidade para o aconselharem.
Conscientes das divisões que a campanha eleitoral cavou no país e sobretudo apreensivos com a personalidade de Trump, estes membros do establishment mostram-se agora empenhados em “integrar” o futuro presidente nos procedimentos democráticos do país. Parece haver aqui um esforço concertado no sentido de convencer Trump que o normal funcionamento das instituições requer um comportamento digno e uma retórica apaziguadora.
O magnata parece ter entrado no jogo. Até agora assumiu uma atitude de estado, contido nas declarações e nos gestos e sobretudo magnânimo com a vitória. É um sinal que contraria a sua personalidade tal como ela surgiu até hoje, mas que não dá ainda quaisquer garantias para futuro, quando a luta política com o Congresso ou com os adversários democratas regressar em pleno. Ou mesmo com líderes internacionais.
Esta é, aliás, a grande incógnita do momento. Como irá Trump exercer a presidência? No seu estilo abrasivo, agressivo, de quem olha para todos aqueles que manifestam divergências com ele como inimigos a abater? Ou respeitando os mecanismos democráticos e as diferenças, escutando pontos de vista diferentes e aceitando os desaires com humildade?
Este já foi um dilema que os seus conselheiros tiveram na campanha e que, a certa altura, se confundiu mesmo com estratégia eleitoral. Havia na sua entourage quem advogasse que para vencer as eleições Trump tinha de ser Trump – isto é, excessivo, desbragado, misógino, xenófobo – e quem defendesse maior contenção e a construção de uma imagem mais presidenciável.
Contrariar a natureza
Mesmo quando houve um entendimento para construir uma imagem presidencial e o candidato era convencido a seguir o guião nos discursos, era difícil cumprir tal desígnio porque e[i]m cima do palco Trump tendia sempre a ser Trump. Era (é?) a sua natureza. Ele próprio o confessou mais do que uma vez.
Agora eleito presidente será que o magnata vai conseguir contrariar a sua natureza? Ou o imenso poder que lhe será conferido vai embriagá-lo ao ponto de se tornar num autoritário sem contenção? Politicamente, Trump chega à presidência numa posição de enorme força porque a vitória eleitoral é dele e só dele. Foi ele que surgiu como um furacão no seio do Partido Republicano, ganhou as primárias e as eleições sem grandes ajudas do partido e até com a oposição de muita gente. Mesmo alguns dos congressistas e senadores republicanos foram agora eleitos ou reeleitos graças à onda de entusiasmo gerada por ele.
Dispõe de maioria nas duas câmaras e não deve nada a ninguém do ponto de vista político. Ou seja, o cenário é propício a atitudes autocráticas, a pressões ilegítimas, a chantagens, a bullying, sobre todos aqueles que no Congresso pretendam, ainda que pontualmente, obstaculizar a sua agenda.
Vai o Trump presidente resistir a estas pulsões contrariando a sua natureza?
Não era essa a previsão de Robert Kagan: “O que esta gente não vê é que Trump, uma vez no poder, não lhes deverá nada a eles nem ao partido. Chegará ao poder apesar do partido, catapultado por uma massa devota”. E perguntava: se conquistar a presidência e passar a controlar o Departamento de Justiça, o FBI, os serviços de espionagem, os militares, “quem ousará opor-se-lhe?”. “Não certamente o Partido Republicano, que se lhe entregou quando ele era comparativamente fraco”.
De facto, não é provável que haja muita gente a ousar opor-se-lhe, apesar de alguns pontos da agenda de Trump colidirem com a tradição republicana, como a oposição aos tratados de comércio livre com a América do Norte e com o Pacífico ou o investimento público que tenciona fazer na renovação das infra-estruturas.
Há, contudo, um factor que pode evitar afrontamentos entre a Casa Branca e a maioria republicana. É o facto de Trump, no fundo, não ter ideologia, ser apenas um businessman pragmático disposto a negociar todos os acordos possíveis desde que lhe tragam lucro. Político neste caso.
Talvez esse pragmatismo seja a chave para construir um presidente que substitua “um vendedor ambulante televisivo, um bilionário falsificado, um egomaníaco primário a abrir a torneira dos ressentimentos e inseguranças populares”, no dizer de Kagan.
Talvez esse pragmatismo seja a resposta necessária à pergunta retórica de Robert Kagan: “Um homem como Trump, com tanto poder nas mãos, tornar-se-á mais humilde, mais sensato, mais generoso, menos vingativo do que é hoje, do que foi toda a vida?”.
A América e o mundo agradeceriam.