18 abr, 2016 - 07:40
O lugar dos casais divorciados na Igreja foi dos temas mais debatidos no sínodo dos bispos que decorreu no ano passado em Roma. Na semana passada, o Papa publicou a exortação apostólica "Amoris Laetitia" ("A Alegria do Amor"), que contém as posições do Papa e que traz várias recomendações para o discernimento das famílias que vivem situações ditas “irregulares”.
A Renascença falou em Outubro com dois casais que vivem esta realidade para conhecer os desafios com os quais se confrontam. Agora, voltámos a convidar estes mesmos casais a reflectirem sobre a exortação.
João Almeida e a sua mulher, Rita, percorreram um longo percurso para conseguirem a nulidade do anterior casamento de Rita. Ao fim de oito anos de um processo muitas vezes difícil, casaram. Estavam expectantes por este documento, e elogiam o modo como o Papa consegue apelar a que a Igreja se aproxime mais de cada pessoa.
“Estivemos a ver isto com muita atenção e achamos que toda esta problemática é, por um lado, não sair fora da linha da Igreja e, por outro, ser um bocadinho elástico, ou seja, como o Papa Francisco diz, chegar à especificidade de cada indivíduo, porque Deus ama a cada um como ele é”, observa João Almeida.
“As fronteiras do campo da Igreja não são como um campo de futebol com fronteiras rijas, são um bocadinho elásticas. O que faz o Papa Francisco é puxar um bocadinho esta elasticidade para chegar a cada um, sem esquecer o fundamento. Este documento está muito equilibrado nesse sentido”, considera.
Se se tiver em conta a variedade inumerável de situações concretas, é compreensível que se não devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que «o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos» as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos. (AL,300)
No documento, o Papa reafirma a indissolubilidade do casamento, mas indica que nem todas as pessoas que se encontram em situações ditas irregulares estão privadas do estado de graça, o que é uma novidade para os casais que se encontram em segundas uniões.
Rita Marques, que está em processos de declarar a nulidade do seu anterior casamento e mantém actualmente uma segunda união, vê no texto do Papa um apelo a uma fé mais madura e um discernimento mais profundo por parte de toda a comunidade cristã.
“Quando o Papa deixou um texto que não é assim tão explícito em relação à abertura ao acesso aos sacramentos, deixa esta margem para que cada um vá levando este texto à prática da forma que lhe parecer mais ajustada”.
A partir do reconhecimento do peso dos condicionamentos concretos, podemos acrescentar que a consciência das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não realizam objectivamente a nossa concepção do matrimónio. É claro que devemos incentivar o amadurecimento duma consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na graça. (AL,303)
Como é que o texto vai ser posto em prática, considera Rita Marques, “vai depender muito da abertura dos párocos, dos bispos, dos próprios casais”.
“Acho que é também um convite a uma fé mais madura, porque cumprir regras é muito fácil, é quase infantil. Entrar numa lógica genuína de discernimento, e neste caso acho que se trata de um apelo mais exigente porque não é apenas individual, vai obrigar a este exercício de discernimento comunitário”, afirma.
João Alves da Cunha, que vive com Rita e que está também a meio de um processo de nulidade, olha para a exortação como um documento que “volta a colocar a Igreja nas suas raízes de misericórdia”.
“É procurar, de todas as formas possíveis, acolher mais e condenar menos. O próprio [Papa] diz que isto não pode ser uma lei para 'atirar pedras', é exactamente o contrário. Não é procurar os que falham e os que estão em pecado e ver o que é que se lhes aplica, mas é uma lógica ao contrário: vamos ver como os podemos integrar, como vamos fazer caminho todos juntos”, aponta.
Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (...) O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...) Por isso, temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações e é necessário estar atentos ao modo em que as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição. (AL,296)
“Antigamente”, lembra João Almeida, as famílias atípicas “eram muito motivo de escárnio: ‘Ai aquele vai casar a segunda vez e vai comungar’, dizia-se. Reparava-se muito nessas coisas. Hoje, nós cristãos temos que ver que talvez haja outra maneira de ver as coisas”, defende.
“Às vezes uma reacção mais conservadora existe porque as pessoas não se apercebem de que se existe este projecto de levar Deus às pessoas, toda nomenclatura, os hábitos, as roupas, os costumes – tudo isso é importante – mas se as pessoas perdem o centro que é Cristo e Cristo no outro… A estrutura tem de estar ao serviço dos outros e ir ao encontro dos outros”, acrescenta João Almeida.
Um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações «irregulares», como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja «para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas».
(…) Por causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas subjectivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja. (AL,305)
“Agradou-me, além das questões dos divorciados propriamente ditas, tudo o que pode ser feito a montante, como a preocupação com a formação e com o acompanhamento às famílias no pós-matrimónio”, diz Rita Marques.
“Também me parece novo, de certa forma, a Igreja a assumir comunitariamente sentir-se responsável e co-responsável pelo bem-estar e pelo sucesso dos casamentos. A comunidade alargada que cuida das comunidades mais pequenas”, acrescenta.
“Gostei muito da repetição da palavra 'discernimento', este olhar para as pessoas e tentar perceber como é que elas são. Perceber que objectivamente os casos não são todos iguais e como diz o Papa, não se pode tratar tudo da mesma maneira. Parece uma verdade de La Palisse, mas para o Papa dizer isto é porque não estava a acontecer”, considera João Alves da Cunha.
“Só consigo imaginar Jesus Cristo a funcionar desta maneira e não preocupado com o artigo 'tal' da lei 'tal' e a pôr as pessoas em gavetinhas”, afirma.
Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objectiva, «não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada».
O próprio Evangelho exige que não julguemos nem condenemos (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Jesus « espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente» (AL,308)
“Como o Papa diz, sabe que há pessoas que gostam das coisas mais definidas, mais seguras e mais balizadas, mas diz que as pessoas têm de confiar mais no Espírito Santo. A Igreja tem de confiar nesta capacidade de discernimento, de acompanhamento, e de integração”, afirma ainda João Alves da Cunha.
Rita acrescenta: dizia no documento "não provocar escândalo". Tem muito a ver com a integração do casal na própria comunidade. Na minha experiência pessoal, muitas vezes a comunidade vive constrangida com o facto de eu não comungar. É a comunidade que reconhece a fidelidade das pessoas. É no meu irmão que expresso também o meu amor a Deus”, observa.
Quanto à aceitação da comunidade, Rita acredita “que alas mais conservadoras da Igreja possam querer continuar a não ter de se confrontar com estas realidades”.
“Se calhar não vai ter o mesmo impacto em toda a gente, mas acredito que no geral vai criar maior abertura”, conclui.
Para João, esta exortação “tem, e deve ter, um impacto na vida das comunidades”. “De certa forma já vai acontecendo e já se vai sentindo de forma mais informal. As pessoas já sentiam a necessidade de acolher casais nestas situações, agora sentir-se-ão reforçadas e mais legitimadas para o fazer.”
Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que quiseram afirmar que «os baptizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo.
A sua participação pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais. Não só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afectuosamente deles e encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho. (AL, 299)