08 mai, 2024 - 06:00 • João Cunha
Puxa com força a porta de entrada do edifício, para dele conseguir sair, depois de ali ter passado a noite. Está ali há pouco tempo, garante.
"Durmo aqui há dois ou três dias", começa por dizer para, segundos depois, garantir que não dorme ali, mas noutro sítio.
Não sabe quantas pessoas ali dormem. "Não sei, não sei. Cinco ou seis, talvez mais, não sei", diz, enquanto pede ajuda para correr o fecho do casaco, para se proteger da chuva que começa a cair. Tem um ferimento num braço, que está ao peito, e mal o pode mover.
Quando chegou da Índia foi trabalhar para Torres Vedras, para a agricultura. Mas há duas semanas, o patrão avisou-o de que, "como agora não há tanto trabalho", teria de o dispensar "até nova oportunidade".
Tamil (nome fictício) admite que dormiu alguns dias em bancos de jardim ou em arcadas de edifícios, por ali, nas redondezas. Até que um amigo lhe falou do edifício de onde acaba de sair, na Rua Maria da Fonte, zona dos Anjos, em Lisboa.
No troço entre a Rua da Bombarda e o Mercado do Forno do Tijolo só há luzes acesas num hostel, de onde sai, também, um cheiro agradável a café acabado de fazer. Paredes meias está um edifício devoluto - rés-do-chão e dois andares -, que, desde setembro de 2021, aguarda por licenciamento da Câmara para execução de obras: o tal de onde Tamil saiu.
Mesmo com a porta de entrada fechada a correntes e cadeado, houve quem conseguisse forçar a passagem e pernoitar no interior. A falta de eletricidade levou a que se fizesse uma fogueira e o descuido ou desleixo originou um incêndio, há uns dias.
À chegada, os bombeiros cortaram o cadeado e as correntes para poderem entrar. Depois de apagadas as chamas, deixaram a responsabilidade de encerrar de novo a porta com cadeados ao proprietário do edifício. Mas a porta principal permaneceu aberta, permitindo o acesso a qualquer um.
Há já algum tempo que Alzira Santos está na rua a falar com uma vizinha. Nem parece ter 80 anos. Há mais de 50 que vive ao lado daquele prédio devoluto e, um destes dias, apanhou um susto.
"Era meia-noite quando viemos para a janela ver o aparato. Havia muitos polícias e bombeiros", que acudiram a um princípio de incêndio no tal edifício. "Eu não vi labaredas, mas vi muito fumo, que até entrou por minha casa". Assume que vive preocupada.
"Tenho medo. Cada vez que vou à janela, vejo-os a entrar e sair. Cada vez que saio, deixo as janelas interiores fechadas, porque não sei até que ponto podem passar da varanda para a minha janela, que é mesmo ao lado. E penso sempre que pode haver um outro incêndio, de maiores dimensões", partilha.
A subir a Rua Maria da Fonte, a caminho do mercado, está Maria Luciano. O que a mais incomoda é o cheiro, sempre que passa à porta daquele edifício.
"Fazem as necessidades lá dentro, que é um cheiro que não se pode. Metem-se ali sem-abrigo, toxicodependentes e imigrantes. E há uns dias houve ali um incêndio, perto da meia-noite. Podia ter sido mais forte e alastrar ao prédio ali ao lado".
"Tenho medo. Cada vez que vou à janela, vejo-os a entrar e sair.
Antes do incêndio, lembra-se de ver a porta principal com corrente e cadeado. Só que depois do incidente, "é um corrupio".
"Entram e saem quando querem. Muitos."
Contactada pela Renascença, a autarquia de Lisboa explica que o imóvel em causa é um prédio particular, do séc. XIX, desabitado e classificado como totalmente devoluto, com estado de conservação “péssimo”.
Tem um histórico de dois processos de licenciamento, um de 2019 outro de 2021, que foram indeferidos por incumprimentos de regras urbanísticas.
Em setembro de 2021, foi submetido um novo pedido de licenciamento que resolveu os incumprimentos anteriores e, dessa forma, o projeto de arquitetura foi aprovado pelo Urbanismo, em janeiro do ano passado. Seguiu os trâmites normais e, a 16 de abril último, foi deferido pelo diretor municipal de Urbanismo.
O requerente - no caso a Luxgal Imobiliária, S.A., com sede em Pombal - foi notificado nesse mesmo dia para pagamento de taxas e para emissão de alvará, o que, segundo o município, ainda não se verificou.
O imóvel tem associado um processo de intimação para obras, ao qual a intervenção aprovada dá resposta. Assim, haverá a reabilitação com obras de reconstrução e ampliação, com um programa exclusivamente habitacional, logo que sejam pagas as taxas em dívida.
Depois das questões da Renascença, a Junta de Freguesia de Arroios colocou uma corrente com cadeado para impedir o acesso ao edifício.