15 mai, 2024 - 06:03
A história, verídica, é contada por Laurence Rees no seu livro «The Holocaust». Freda Wineman, uma judia francesa de 20 anos, foi deportada para Auschwitz-Birkenau no verão de 1944. Cruzando o portão da morte, o comboio que a levava, com a família e um milhar de outros judeus, deteve-se na “Judenrampe”. O cheiro era nauseabundo. Um “Sonderkommando” ordenou que uma jovem mãe, ao lado de Freda, entregasse o seu filho recém-nascido à mãe de Freda, que tinha 46 anos. Formaram-se duas colunas no cais de pedra e poeira cinzenta: o pai e os três irmãos de Freda de um lado, a sua mãe, carregando ao colo um bebé desconhecido, do outro lado. A jovem judia francesa deu então um passo para se juntar à mãe, mas um médico das SS - muito possivelmente o tenebroso Josef Mengele - indicou-lhe que deveria ir para o lado dos jovens adultos, onde já estava também a jovem mãe apartada do seu bebé. Foi então que David, o irmão mais velho de Freda, disse ao mais novo, Marcel, de 13 anos, para ir ter com a mãe. Josef Mengele não o deteve.
Sem o saberem, aquele milhar de judeus e, entre eles, a família Wineman tinham acabado de passar, num tempo-relâmpago, pelo processo de seleção com que os SS decidiam quem iria viver (para trabalhar até à morte), e quem iria caminhar duzentos metros, passar um portão à direita ou à esquerda e, iludido pela promessa de um banho restaurador, entrar, na verdade, nas câmaras de gás anexas aos crematórios II e III de Birkenau. Freda, o pai e os irmãos tinham sido selecionados para trabalharem. Mas ao dizer para ir ter com a mãe (gesto compreensível), David enviara o irmão para a morte. E ao passar o seu bebé à mãe de Freda, também a anónima mãe entregara o filho à morte. Os bebés eram arrancados do colo de mulheres jovens e dados a mulheres mais velhas, que os saberiam acarinhar no curtíssimo tempo que lhes restava de vida - e a mãe de Freda, com 46 anos, já não servia para trabalhar, tal como Marcel e o recém-nascido. Eram absolutamente inocentes na sua vida; mas absolutamente inúteis naquela infernal engrenagem de morte, montada pelos nazis. Freda Wineman sobreviveu para contar a história. Por acaso, aconteceu-lhe sobreviver; não morreu de exaustão, de fome, de frio ou calor, de violência gratuita ou execução sumária.
Começar a compreender o Holocausto - se é possível compreender o absurdo - passa por juntar os milhares e milhares de histórias por detrás de cada tatuagem-número e de cada fornada de cinzas produzida pela “fábrica da morte”. Como lembra Laurence Rees, aquela é uma História que mostra os abismos da maldade humana, ou seja (e isso é o mais perturbador), o que é que a nossa espécie é capaz de fazer.
Estive em Cracóvia há algumas semanas, talvez como pretexto para visitar Auschwitz-Birkenau - jamais como atração turística, mas como experiência existencial. A visita é muito bem conduzida por guias que percebem e lembram que o que vemos foi real e que o que pisamos é um imenso cemitério de chão sagrado. Sendo historiador, já vi centenas de fotografias e de imagens e já li centenas de páginas sobre a Alemanha nazi e o Holocausto. Nada substitui estar “ali”. Nenhuma imagem vale a experiência “real”. Tenho a veleidade de achar que percebi melhor o terrível alcance do que estava a ver do que os estrangeiros que integravam o nosso (meu e da minha mulher) grupo. O inferno existe(iu) e passou por ali. 80 anos depois dos Wineman e de centenas de milhares de outros, não estava frio, nem neve, a paisagem não era a preto e branco e não se viam farrapos humanos e suásticas vociferantes. Estava um dia de sol, ameno, e na relva verde os dormitórios-prisão quase pareciam camaratas de escuteiros. Pode o inferno ter cor? Sim, se na amnésia presentista esquecermos aquela terrível História.