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Paulo Portas: “Sem migrações não conseguimos garantir o modelo social europeu"

24 abr, 2019 - 07:00 • Eunice Lourenço

No ciclo de entrevistas da Renascença sobre a Europa, Paulo Portas considera que o "Velho Continente" tem vários problemas sérios que não está a resolver: as relações com as suas fronteiras, a demografia e a competitividade. Mas alerta que tem de haver uma saída “porque a alternativa é muito má".

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Paulo Portas: "A Europa está desconfortável com o mundo a fugir-lhe debaixo dos pés"
Paulo Portas: "A Europa está desconfortável com o mundo a fugir-lhe debaixo dos pés"

Ex-líder do CDS, ex-ministro da Defesa, ex-ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Portas passa hoje a maior parte do seu tempo entre a Ásia, a América Latina e o Médio Oriente - ora a dar aulas ora como consultor de empresas ou de governantes.

Nesta entrevista à Renascença sobre questões europeias, Portas elenca os erros da União Europeia e as situações por resolver numa Europa que “sente o mundo a fugir-lhe debaixo dos pés”.

Que erros é que a Europa tem cometido que a trouxeram até este ponto?

A Europa, como comunidade política, foi o que conseguiu garantir a uma Europa onde aconteceram duas guerras mundiais no século XX e onde se sucederam os dois totalitarismos mais ferozes que a história das ideias ocidentais em tempos modernos conheceram, a construção política da Europa com todas as suas dificuldades garantiu aos europeus paz, que antes não tinham tido, e conseguirem levantar-se do chão, das ruínas, das guerras, e construírem um modelo de prosperidade. Disto isto, é evidente que é muito difícil encontrar um período em que haja tantos problemas ao mesmo tempo em aberto na União Europeia e tão pouca luz ao fim do horizonte.

E, tendo isso em conta, estas são as eleições europeias mais importantes desde que votamos para o Parlamento Europeu?

Não me atreveria dizer isso pela simples razão que o número de europeus que não votam nestas eleições é largamente superior ao número de europeus que vão acabar por votar nestas eleições e, portanto, não agravaria em intensidade esse facto. Agora, não me lembro de um momento - exceto crises globais - em que as cinco maiores economias da União Europeia e do euro estivessem todas em revisão em baixa, com um risco de desaceleração sério; não me lembro de, ao mesmo tempo, a Alemanha estar a fazer revisões que a aproximam de 0,8 de crescimento; a França incapaz de encontrar um problema para a sua equação muito difícil que é  divida a mais, gasto publico a mais e impostos a mais e a rever também em baixa; o Reino Unido à beira de se ir embora, a Itália  em recessão e a Espanha, que é muito importante para Portugal por causa da integração das duas economias, já esteve a crescer três por cento e, neste momento está a aproximar-se dos dois por cento. As coisas não estão bem em nenhuma das cinco economias principais. Curiosamente, um dos países mais criticados é onde a economia corre melhor, a Polónia, que é um grande mercado.

Tem sido criticado não por razões económicas, mas por razões políticas, que é outro lado do estado da Europa

É, mas isso também é em si mesmo um paradoxo. As economias que estão a ter melhor desempenho são aquelas que, no Leste da Europa, causam mais problemas políticos com Bruxelas. Isto é verdade para a Polónia, para a Hungria ou para a República Checa. Tomara a Europa do lado de cá estar a crescer o que eles crescem do lado de lá

Mas associa o crescimento às opções políticas?

Não, de todo. Estou apenas a constatar um facto: são contribuintes líquidos para que  a situação económica da Europa não seja tão má. Aquilo a que chamo problemas estruturais, problemas a sério da Europa são, primeiro, a Europa não ter, neste momento, uma política definida, nem coerente, nem unida em relação a todas as suas fronteiras principais. Está por definir uma relação com a Rússia e preocupo-me quando vejo muitos países do Leste da Europa definirem-se mais em função de Moscovo do que de Bruxelas, seja por serem russófobos (por exemplo, a Polónia), seja por serem russófilos (por exemplo, a Hungria).

Depois, a fronteira com a Ásia, ou se quiser a fronteira com o Islão, uma delas, muito problemática para a Europa chamada Turquia. A Turquia tem "guardados" 2,5 milhões de refugiados e a Europa paga à Turquia para que não abra as portas e eles não passem para o continente europeu.

A Europa tem também um problema que ainda está por resolver, atendendo às evoluções previsíveis, que é a sua fronteira com as ilhas britânicas. Ficaram clara pelo menos duas coisas: é possível sair da União Europeia, mas dá o cabo dos trabalhos sair da União Europeia. Acho que os ingleses viveram uma experiencia nova com a qual, provavelmente não conta: serão, seriam, livres, sem constrangimentos, estariam sós, sem a companhia do continente, em era global e sem o Império Britânico. Veremos como é o desenlace.

Mas eles parecem não ter ainda percebido que já não há o Império Britânico, não é?

(Risos) Esta última parte, talvez lhes escape. Depois, a fronteira transatlântica com os Estados Unidos, de que Portugal, aliás, é o porto de abrigo. Uma das razões pelas quais fico preocupado com o Brexit é que a Europa, para  ser equilibrada, precisa da sua fronteira atlântica e, nessa matéria, para Portugal é importante que haja outras potências marítimas atlânticas.

Não confundo o Presidente Trump com os EUA - os  Presidentes chegam, governam e vão embora e o país permanece -, mas a deslocação do sentido estratégico dos EUA para o Pacifico e para a Ásia não começou com Trump. Com Trump apenas começaram os tweets. Mas essa deslocação já vem de Obama e nessa deslocação a Europa sente-se bastante perdedora porque é evidente que o principal desafio estratégico para os EUA chama-se China e uma deslocação do sentido estratégico dos EUA para o Pacifico desampara a aliança e os EUA.

Então a Europa está a ficar só e abandonada?

Não! Permita-se este ponto que também é relevante: a enorme desatenção, que acho que é fruto de pessoas que são do Norte da Europa e que têm uma enorme dificuldade em compreender o que é África, o que é o Magreb, o que é o Mediterrâneo, a enorme desatenção à fronteira sul da Europa, com o Islão e com o Magreb e que levou a que a Europa deixasse completamente abandonada a Itália na crise das migrações. As pessoas admiram-se que haja governos populistas em Itália - mais preocupante que um populista é um governo de dois populistas, que é o caso da Itália -, que está em recessão. Mas tudo aconteceu porque a Itália teve de enfrentar migrações de perto de 600 mil pessoas, em meses, e a Europa não foi capaz de redistribuir solidariamente e gerir esses fluxos migratórios.

A Grécia também teve uma situação parecida.

Teve sim, quando a sra. Merkel em desespero fechou as rotas dos Balcãs com o acordo com a Turquia as migrações deslocaram-se para Itália e quando Salvini fechou os portos de Itália, as migrações deslocaram-se para Espanha e Marrocos. Achar que estes países que têm fronteira marítima a sul com o Magreb e com o Islão que se governem sozinhos com o problema é uma atitude altamente responsável pelo crescimento de populismos. Nas fronteiras fundamentais, as coisas não estão bem.

Indo a algumas dessas fronteiras, na relação com a Rússia o que é que a Europa precisa de perceber?

A Rússia não é a União Soviética. A Rússia  coloca uma série de problemas, mas não coloca os problemas que a União Soviética colocava. O que é um intervalo na história da Rússia é a União Soviética, mas a Rússia é milenar e sempre foi aquilo que é hoje: um Estado centralizado, porque tem quase 90 nacionalidades no seu território imenso; um Estado autocrático, não me lembro de ver dias democráticos no sentido ocidental, a Rússia é, em certo sentido, um país mais habituado a obedecer do que a escolher; um Estado ortodoxo, cristão ortodoxo, com o Islão, nalgumas zonas do interior e da sua periferia; e um Estado que, se tiver os meios para ser imperial, sempre foi imperial. Isto não tem nada de particularmente novo na história das relações entre a Europa e a Rússia, mas há problemas em aberto. A questão da Ucrânia é mais gerível, o problema das interferências russas em eleições em países terceiros é um problema que acho sério, evidentemente, mas, ao mesmo tempo, em matéria de combate ao fundamentalismo e ao sectarismo que carateriza o terroro em nome do Islão, a Rússia não é nosso adversário, pelo contrário pode juntar forças connosco.

Depois, há uma outra questão que se prende com um dos problemas essenciais que a Europa tende a não resolver é que uma grande parte da Europa do centro e do Norte depende da energia da Rússia. Os EUA tornaram-se exportadores líquidos de energia e não compreendem muito bem porque é que os europeus, em particular os alemães, preferem comprar gás à Rússia do que fazer parceria com os americanos. Não se pode ter a voz muito levantada para pedir sanções à Rússia por esta razão ou por aquela - entre as quais esse hábito muito antigo de andarem a envenenar pessoas aqui ou acolá - e depois pretender acrescentar e somar a dependência energética da Rússia.

A tudo isto, acrescentam-se três problemas essenciais que têm a ver com o facto que a Europa estar muito desconfortável com o mundo que lhe está a fugir debaixo dos pés. O mundo hoje é mais do Pacifico do que do Atlântico, mais oriental que ocidental, é evidente que será cada vez mais assim e que nos sentimos desconfortáveis com isso.

A Europa tem um problema demográfico terrível, que a Rússia também tem. A Europa tem um problema de competitividade muito sério na globalização e na digitalização e tem uma mobilidade social relativamente estancada e isso é um problema para o nosso modelo.

E vê soluções para esses problemas?

Fico muito assustado com o populismo radicalizado em relação à questão das migrações, não só por um olhar cristão para este tipo de questões, mas por uma razão absolutamente racional: a Europa, com a taxa de fertilidade que tem, com o aumento da esperança de vida, precisa de migrações e, portanto, o cenário de imigração zero não existe, é uma falsidade andar a falar nisso como anda tanta gente na Europa.

A Europa tem duas opções: ou escolhe a imigração que quer ou é escolhida pela imigração que quer ou não quer. Isso tem de ser feito em cooperação com os países de origem. Não é uma questão de direita nem de esquerda, temos cada vez menos ativos para pagar e cada vez mais a reformados que, felizmente, vivem cada vez mais anos. Podemos estar a dirigirmo-nos contra um muro porque sem migrações não conseguiremos garantir a sustentabilidade do chamado modelo social europeu.

Ainda em relação às migrações e a uma outra fronteira da Europa que também identificou como problema que é a Turquia, como é que a Europa deve resolver essa relação?

Há uma hipocrisia com inércia que não ajuda nas relações com a Turquia.  Supostamente, mantem-se em aberto o processo de adesão da Turquia à UE, mas todos sabemos que isso não acontecerá por duas razões. A primeira razão é a Alemanha, porque a Turquia transformar-se-ia, demograficamente, no mais populoso estado da UE. E por razões culturais e políticas por causa da França que acho que jamais aceitará a entrada da Turquia.

E esse é um problema sem solução?

Esse é um problema sem solução e, portanto, é preferível tentar partir para outra forma e para outro modelo de cooperação e não estar a mentir nem aos turcos, nem a nós próprios. Mas voltando à demografia, é um problema sério e tem muito pouca discussão no espaço público. Depois, o outro problema que é muito sério chama-se competitividade. Os europeus se não tratam do seu futuro não só correm o risco de envelhecer, mas correm também o risco de ficar de fora da economia do futuro. Quando se olha para as maiores dez companhias do mundo tecnológico, seis são americanas, quatro são chinesas e nenhuma é europeia. Quando olha para o numero de patentes, é uma competição entre EUA, a China, que está quase a ultrapassar os EUA em numero de patentes registadas todos os anos, depois o Japão e depois a Alemanha, cá bastante atrás.

Mas essa falta de competitividade, também está ligada ao problema demográfico, não está?

A pior coisa na globalização e na digitalização é ser rígido. Com rigidez mental não nos adaptamos a este mundo. Ora, a Europa - uns países mais, outros menos - está muito prisioneira das suas certezas que, entretanto, perderam densidade. Passo grande parte da minha vida na Ásia, na América Latina e em África e nunca ouvi críticas à globalização nestes três continentes. Esse é um debate intra-europeu e de alguns Estados dos EUA. A ideia de que se nos fecharmos enriquecemos é uma coisa desmentida por qualquer evidência, como alias os portugueses sabem muito bem desde século XV. Se nos abrimos desenvolvemos.

Outra coisa que também não conheço em lado nenhum do mundo é esta ideia de que tudo são direitos adquiridos para toda a gente, em todos os momentos e em quaisquer circunstâncias. Isso é se eu os puder financiar! A Europa tem de criar as condições para financiar os seus direitos e, já agora, ter também uma cultura de deveres. Nas atuais circunstâncias bem se podem fazer protestos contra a globalização e contra a digitalização, mas as pessoas têm de perceber uma coisa: a Europa pode fechar-se, mas o mundo não vai esperar por ela.

Um americano muda de emprego, em média, 11 vezes durante a vida, um europeu muda três a quatro e com dificuldade. Quando falo em flexibilidade é também isto. Precisamos de gente nova, como é evidente, mas também temos de ter uma cultura aberta. A Europa, se se mantiver unida, ainda é o maior bloco comercial, mas esta ideia de que estamos a ficar de fora da economia 4.0 preocupa-me muito porque vai marcar o futuro.

Perante todos estes perigos da Europa, parece que não há saída.

Tem de haver porque a alternativa é muito má.

Comentários
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  • Silvana Baralha
    25 abr, 2019 00:59
    Ah pois não! Mas isso é porque o modelo não é sustentável, isto é, não gera retorno para se sustentar! Fica a pergunta depois como vão resolver o futuro dos tais que agora precisamos para suster o que estão agora no sistema? Importar mais gente ainda? Qualquer pessoa razoavelmente inteligente percebe que nos moldes em que funciona o "modelo social europeu", ou seja, o socialismo, não haverá população do mundo que chegue. É apenas uma questão de tempo...e de fazer as contas!

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