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Relatório de grupo criado pelo Governo deteta limpeza de doentes de listas de espera

18 abr, 2019 - 00:45 • Redação com Lusa

Ministério esperou mais de seis meses para divulgar relatório sobre gestão de listas de espera. Critérios de tempos de resposta penalizam SNS e remetem mais doentes para privado.

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A Administração do Sistema de Saúde “limpou” doentes das listas de espera para consultas, numa altura em que era presidida pela atual ministra, e foram usados indevidamente mecanismos para alterar datas de inscrição de utentes para cirurgia.

Estas são conclusões do relatório do grupo técnico independente criado pelo Governo em outubro de 2017 para avaliar os sistemas de gestão das listas de espera para consultas e cirurgias, após um relatório do Tribunal de Contas que apontava para a “eliminação administrativa” de utentes, “falseando os indicadores” que são divulgados.

O grupo, que foi coordenado pelo bastonário da Ordem dos Médicos, avaliou os sistemas de acesso a cuidados de saúde no SNS, como os sistemas das listas de espera para consultas e cirurgias no triénio 2014-2016, concretamente a atuação da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que em 2016 era presidida pela atual ministra Marta Temido.

Segundo o relatório foram tomadas medidas de limpeza ou expurgo de listas de espera de consultas, sem que tenha sido, contudo, possível perceber o real impacto que “o expurgo” teve sobre a redução efetiva do tempo médio de espera.

A dificuldade de ter o impacto real dessa limpeza de listas acontece, segundo o documento, porque a ACSS não forneceu elementos que permitissem avaliar algumas questões fundamentais, como por exemplo quantos doentes em concreto foram “simplesmente eliminados das listas de espera”.

Em 2017 o Tribunal de Contas já tinha apontado para a “limpeza das listas de espera para primeiras consultas de especialidade hospitalar do universo das unidades hospitalares do SNS”, que incluía “a eliminação administrativa de pedidos com elevada antiguidade, falseando os indicadores de desempenho reportados".

Em relação ao cumprimento dos tempos máximos de resposta para cirurgias, o grupo independente identificou situações “em que os tempos de espera são superiores ao registado”.

O relatório aponta como “especialmente preocupante” o uso “indevido” de mecanismos para suspender os tempos máximos de resposta nas listas de espera para cirurgias.

O documento refere-se ao uso “indevido do expediente de pendência de inscrição” dos doentes para cirurgias “como forma de suspender os tempos máximos de resposta garantidos aplicáveis”.

Refere também a “utilização abusiva do expediente de não inscrição imediata em lista de inscritos para cirurgia, na data da consulta” em que foi identificada a necessidade de operação.

Em algumas unidades de saúde verificou-se mesmo um “lapso de tempo anormal entre a última consulta e a data de inscrição para cirurgia”.

Em resposta à Lusa, fonte oficial da ACSS explica que o expurgo da lista de utentes para consultas “é um processo administrativo de correção de erros” e que não tem impacto no utente.

“Não é uma limpeza, não são apagados ou varridos para debaixo do tapete. Desenvolveram-se até procedimentos para ficar mais claro e transparente como funciona esse expurgo, que no fundo é um processo de correção de erros”, explicou fonte oficial da ACSS.

Quanto ao uso de expediente na colocação de doentes em lista de espera para cirurgia, a ACSS indica que essa gestão respeita aos hospitais.

A mesma fonte explica que há um mecanismo para que o doente fique pendente na lista de espera, não contando logo o tempo em que espera para cirurgia, mas que esse mecanismo tem a ver com questões clínicas, sendo essas questões identificadas nos hospitais.

Contudo, o relatório aponta para um uso abusivo deste mecanismo no triénio 2014/2016. Em resposta, a ACSS garante que foi melhorada a monitorização e o controlo para “evitar o uso abusivo de um mecanismo que, em si, é legítimo”.

No conjunto de 45 recomendações que deixa ao Ministério da Saúde, o grupo técnico sugere que sejam adotadas medidas que garantam que a informação sobre o acesso a cuidados de saúde “não seja resultado de medidas de limpeza ou expurgo de listas de espera, das quais resulte, como aconteceu no passado, a eliminação de doentes/utentes das listas de espera”.

É também sugerido que seja avaliado, periodicamente, por entidade externa a qualidade dos indicadores de acesso.

As conclusões do grupo técnico criado pelo Governo vêm assim corroborar algumas das conclusões do relatório divulgado pelo Tribunal de Contas em outubro de 2017 e que punha em causa a fiabilidade de dados sobre as listas de espera e contrariava os números oficiais que apontavam para menos tempo de espera nas consultas hospitalares nos hospitais públicos.

Mais tempo de espera para uma consulta hospitalar e mais utentes a aguardarem por uma cirurgia entre 2014 e 2016 foram alguns dos aspetos identificados na altura pelo Tribunal.

Ministério esperou mais de seis meses para divulgar relatório sobre gestão de listas de espera

O Ministério da Saúde esteve mais de seis meses sem divulgar o relatório do grupo independente que analisou a gestão das listas de espera e que concluiu que houve limpeza de doentes e mecanismos indevidos para marcar datas de cirurgias.

O grupo técnico independente foi criado em outubro de 2017 na sequência de um relatório do Tribunal de Contas que apontava várias falhas na gestão dos dados dos tempos de espera, incluindo a eliminação administrativa de doentes à espera de consulta.

Em resposta à Lusa, o Ministério da Saúde explica que o relatório foi entregue em agosto de 2018 ao então secretário de Estado Adjunto, Fernando Araújo, e recorda que a atual equipa ministerial entrou em funções a 15 de outubro.

“Relembrando a complexidade inerente a matérias que envolvem sistemas de informação, destaca-se a indispensável apreciação e análise do relatório, elaboração de um plano de ação com os organismos envolvidos e a implementação de uma série de medidas e respetiva monitorização”, refere o gabinete da ministra Marta Temido.

A Lusa pediu por diversas vezes acesso ao documento, quer à atual equipa ministerial quer à equipa anterior liderava por Adalberto Campos Fernandes, que Marta Temido substitui na pasta da Saúde.

Segundo fonte oficial, o Ministério da Saúde decidiu que vai disponibilizar o relatório no portal do SNS, “numa lógica de transparência que regula a intervenção governativa”.

O relatório do grupo técnico independente visa a gestão dos sistemas de listas de espera e em grande medida a atuação da Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS) nos anos de 2014 a 2016, sendo que nesse último ano o organismo era liderado pela atual ministra da Saúde.

O Ministério adianta que as recomendações do grupo técnico independente se encontram em curso e que foi desenvolvido “um plano global” para aplicar essas recomendações.

Esse plano pretende “agregar uma série de medidas que permitem harmonizar as práticas a nível nacional, otimizar os sistemas de informação e introduzir cada vez maior eficácia nos procedimentos associados à gestão do acesso ao SNS”.

O grupo técnico foi coordenado pelo bastonário da Ordem dos Médicos e integrou representantes dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, da Direção-Geral da Saúde, da Inspeção-geral das Atividades em Saúde, da Entidade Reguladora da Saúde, da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, de associações de doentes e da comunidade académica.

O representante da Associação dos Administradores Hospitalares era Francisco Ramos, atual secretário de Estado Adjunto e da Saúde.

Critérios de tempos de resposta penalizam SNS e remetem mais doentes para privado

Os critérios “políticos” para definir os tempos máximos de resposta em consultas e cirurgias podem penalizar os hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), com um aumento de envio de doentes para o setor privado e social.

O relatório entende que a definição dos tempos máximos de resposta garantidos (tempos limite em que os doentes devem ter consulta ou cirurgia) “terá sido política” e não com base em critérios clínicos, sem que tenha havido um “aumento proporcional na capacidade de resposta dos vários hospitais do SNS”.

A diminuição dos tempos máximos de resposta garantidos (TMRG) não correspondeu a um aumento da capacidade dos hospitais e a estratégia terá passado, refere o relatório, apenas pelo aumento da emissão de vales de cirurgias ou notas de transferência, que permitem aos utentes ser atendidos numa unidade privada ou do social quando é ultrapassado o tempo definido.

Quando uma consulta ou cirurgia ultrapassa o tempo máximo de resposta o utente recebe um vale ou uma nota de transferência e pode recorrer a um privado ou a uma unidade do setor social com convenção com o Estado.

“Esta é uma política de saúde centrada na circulação do doente entre o setor público e o setor privado e social convencionado”, entende o grupo técnico independente, coordenado pelo bastonário da Ordem dos Médicos e que era também integrado pelo atual secretário de Estado Adjunto e da Saúde, na altura enquanto representante da Associação dos Administradores Hospitalares.

O grupo conclui ainda que a redução dos tempos máximos de resposta sem que antes fosse aumentada a capacidade do SNS origina um aumento do incumprimento que só pode ser atenuado com recurso ao setor convencionado, no caso de os doentes aceitarem realizar as suas cirurgias, por exemplo, no privado ou no setor social.

“Esta situação poderá penalizar financeiramente os hospitais do SNS no que aparenta ser uma subversão do sistema”.

Nas recomendações, o relatório sugere que os tempos máximos de resposta sejam baseados em critérios clínicos e que possam ser introduzidos “mais níveis de estratificação de prioridades nos TMRG”, baseados em mais critérios qualitativos.

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