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Nascimentos em Lisboa

Quase metade dos bebés nascidos na Maternidade Alfredo da Costa em 2023 eram filhos de mulheres estrangeiras

17 abr, 2024 - 06:30 • Fábio Monteiro (reportagem) , Diogo Camilo (gráficos) , Rodrigo Machado (ilustração)

Foram realizados 3.837 partos na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, em 2023. Apenas 57% foram de mulheres portuguesas. Dados indiciam mudanças nos fluxos de imigração para Portugal e possível “fuga” das grávidas portuguesas para o setor privado.

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Anabela Morais segura uma alcofa nas mãos, junto à porta das urgências da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa. A portuguesa de 32 anos foi mãe há poucos dias, acabou de ter alta. Resguardada na sombra, aguarda pelo marido, que foi buscar o carro.

O recém-nascido que Anabela ampara, protegendo do sol com uma fralda branca, é já o seu segundo filho. É o primeiro, contudo, a nascer na MAC, a maternidade de referência do Serviço Nacional de Saúde (SNS). “Só comecei a ser seguida aqui mesmo no fim da gravidez, o resto das consultas fiz no privado”, conta.

Como não existiam obstetras “disponíveis”, a grávida optou “por ser acompanhada no privado”. “E depois ser referenciada para aqui, por querer que o parto fosse aqui. Podia ser no privado, mas fiz questão que fosse aqui.” Porquê? “É onde estão os melhores especialistas.”

O número de portuguesas a pensar como Anabela parece estar a diminuir. Quase um em cada dois bebés que nasceram na MAC, em 2023, eram filhos de mulheres estrangeiras: 1647 (43%) de 3837. Trata-se do maior número de que há registo.

Nos últimos anos, a procura da MAC, em Lisboa, por cidadãs estrangeiras – imigrantes estabelecidas legalmente no país, salvo raras exceções – tem vindo a aumentar, indicam dados do período 2015-2023, cedidos à Renascença.

Há nove anos, 83% dos partos na MAC eram de mulheres portuguesas. No ano passado, 57%.

Em 2023 nasceram na MAC – unidade de primeira linha do SNS, que serve maioritariamente o concelho de Lisboa – bebés de mais de vinte nacionalidades diferentes. Ainda assim, Portugal representa de longe a maior fatia (2190 partos), seguido pelo Bangladesh (324) e pelo Brasil (321). Um pouco mais atrás, aparece o Nepal (246) e São Tomé e Príncipe (113).

Os dados da MAC indiciam mudanças nos fluxos de imigração para Portugal (com foco em Lisboa), a “alta qualidade” dos cuidados oferecidos pelo SNS, e ainda uma possível “fuga” das grávidas portuguesas para o setor privado, segundo especialistas ouvidos pela Renascença.

"Grande decréscimo" de portuguesas

Para Ana Fatela, diretora clínica da MAC, os dados do período 2015-2023 contam uma história: houve “um grande decréscimo de mulheres [portuguesas] que têm o parto na MAC em relação às estrangeiras”.

“Realmente tem vindo a diminuir o número de cidadãs nacionais a ter o parto na MAC. Não sei se o mesmo se passará ao nível dos outros hospitais, mas provavelmente connosco passa-se exatamente porque a população que reside na nossa área é essencialmente estrangeira”, diz.

A mudança demográfica na área de influência da MAC é indiscutível. Em 2022, de acordo com o extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), viviam, no concelho de Lisboa, 118540 residentes estrangeiros. Recue-se até 2015 e o mesmo número desce para menos de metade: 51690.

Existe, porém, outra explicação que não pode ser excluída.

Nos últimos anos, com os serviços de Obstetrícia e Ginecologia do SNS sob pressão, muitas portuguesas optaram por fazer o parto no privado. Em 2021, os hospitais privados fizeram quase 30% dos partos na região de Lisboa e Vale do Tejo. No primeiro semestre de 2023, o número de partos no privado em Lisboa subiu 20%, face ao ano anterior.

Os números da MAC mostram, então, uma fuga das mulheres portuguesas para o setor privado? Ana Fatela não exclui a possibilidade. Mas também não tira conclusões taxativas.

“Sinceramente, não sei. Sabemos que, por força das circunstâncias, o SNS ter diminuição das suas capacidades, leva a que algumas pessoas também tenham medo de vir ter o seu bebé à maternidade e ao SNS, e o vão fazer aos hospitais particulares”, afirma.

A diretora clínica da MAC admite que, internamente, nunca foi feita “uma análise muito pormenorizada sobre o assunto”.

A Renascença solicitou a três grupos de saúde privados – Luz Saúde, Lusíadas e CUF –, que têm hospitais que servem o concelho de Lisboa, dados relativos ao número de partos e nacionalidade das mães, nas suas unidades na capital. Nenhum respondeu.

Problemas de tradução

Um dos desafios do aumento de número de grávidas estrangeiras é a comunicação. A MAC conta com equipas multidisciplinares, trabalha com assistentes sociais – que visitam as grávidas em casa – e com uma rede de tradutores, que servem a Unidade Local de Saúde (ULS) de Lisboa.

Mesmo assim, há urgências em que a única solução é recorrer ao Google Tradutor ou qualquer outra aplicação semelhante.

Algumas grávidas “trazem já o seu intérprete. Outras vezes é o marido, que já está em Portugal há mais tempo, e sabe falar mais um bocadinho de inglês ou português. Mas a comunicação é sempre difícil”, conta Ana Fatela.

“Quando não é a própria grávida que expressa as suas necessidades e nem sequer é ela que percebe aquilo que estamos a dizer, às vezes as coisas nestas traduções múltiplas são um bocadinho deturpadas.”

O testemunho de Ana Fatela fica patente quando a Renascença conversa com Marabhou, 42 anos. O imigrante do Bangladesh aguarda na sala de espera da MAC, ao lado da esposa e do filho de oito anos, por uma consulta de obstetrícia. Ela não fala, recusa.

O casal imigrou para Portugal há mais de uma década e o primeiro filho já nasceu na MAC. No parto do segundo, esperado para o final de setembro, deverá acontecer o mesmo. O facto de estarem à espera já há uma hora não os incomoda.

“Nesta maternidade está tudo bem. O Centro de Saúde mandou-nos para aqui, a doutora é boa, por causa disso voltamos outra vez.”

Em Portugal, todos os imigrantes, “com ou sem a respetiva situação legalizada”, têm acesso ao SNS. O mesmo para turistas e refugiados.

Caso possuam autorização de permanência ou residência válida (temporária ou permanente), os imigrantes são registados no Registo Nacional de Utentes (RNU). Posteriormente, é-lhes atribuído um número de utente.

“Uma vez obtido este número, a responsabilidade financeira é previsivelmente assumida pelo SNS, independentemente de benefício por qualquer subsistema público”, dita a lei portuguesa.

Caso se encontrem em situação irregular, os imigrantes têm acesso ao SNS mediante “a apresentação de um documento da junta de freguesia da sua área de residência que certifique que se encontram a residir em Portugal há mais de 90 dias”.

“Estes cidadãos são registados no RNU (…) sendo-lhes exigido o pagamento dos cuidados recebidos segundo as tabelas em vigor”, diz, também, a legislação

Existem, ainda assim, algumas exceções em que os cuidados de saúde são isentos. E uma delas é: “Cuidados no âmbito da saúde materno-infantil e saúde reprodutiva, nomeadamente acesso a consultas de planeamento familiar, interrupção voluntária da gravidez, acompanhamento e vigilância da mulher durante a gravidez, parto e puerpério e cuidados de saúde prestados a recém-nascidos.”

Diferentes níveis de confiança no SNS

Carlos Cortes, bastonário da Ordem dos Médicos (OM), vê o crescimento de partos de mulheres estrangeiras na MAC como um “ponto positivo” para Portugal. E arrisca que tal pode advir de vários fatores. Desde logo, “o acesso gratuito à “qualidade e a segurança que existe em todo o SNS.”

“Tendo em conta a natureza socioeconómica dessas mães [imigrantes legais], faz com que privilegiem muitas vezes o SNS”, diz.

Mesmo assim, o bastonário da OM sublinha que “é aceitável dizer” que as “mães [portuguesas] preferem ir diretamente ao privado, tendo em conta tudo aquilo que tem acontecido nas maternidades do país”.

“Muitas vezes [as maternidades públicas] fecham, muitas vezes as grávidas têm de ser encaminhadas para outros hospitais. E aquilo que uma mãe procura é estabilidade, é alguma tranquilidade, ter a certeza de que será sempre acompanhada da melhor forma, sem nenhuma interrupção. E isso não tem acontecido nas maternidades do SNS”, nota.

No que toca a possíveis explicações para os números da MAC, o entendimento de Nuno Clode, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal (SPOMMF), é muito semelhante ao de Ana Fatela.

“A área de influência da MAC em termos de obstetrícia engloba toda a zona central de Lisboa, onde se radica muita população imigrante. E, portanto, a opção deles será ir para lá. Por outro lado, é uma maternidade que tem prestígio, tem fama, e provavelmente é o nome que corre entre a população imigrante quando pensa em ter o seu bebé. Qual é a maternidade? O nome que vem à cabeça é a Alfredo da Costa”, diz.

De acordo com Nuno Clode, que além de presidente da SPOMMF, é também coordenador do serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital CUF Torres Vedras, o aumento de partos por mulheres imigrantes também se sente no privado.

“A minha experiência é que antes não havia, e agora há. Muitas destas pessoas imigrantes também têm capacidade económica, são nómadas digitais, é gente nova, não é só de uma etnia específica, é de todas as etnias. E elas também optam por ter os seus partos em regime privado, visto que têm seguros que lhes cobrem estes custos”, conta.

"Turismo de natalidade"?

Para além de refletirem a evolução demográfica de Portugal, e em particular de Lisboa, os números da MAC podem ainda abarcar casos pontuais do fenómeno conhecido como “turismo de natalidade”: imigrantes que se deslocam até Portugal com o propósito de fazerem o parto numa maternidade do SNS.

Desde 2022, têm sido noticiados alguns casos suspeitos, com o possível envolvimento de redes criminosas – a maioria relativos a mulheres provenientes de países do Indostão (Nepal, Índia, Bangladesh e Paquistão). Mas, até hoje, nenhum processo avançou ou deu origem a condenações.

No ano passado, os bebés de mulheres dos países do Indostão representaram 18% (695) dos nascimentos na MAC, um aumento de quase 500% (137) face a 2015. No mesmo período, os bebés de mulheres dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) representaram 10% (392) dos nascimentos na MAC, mais do dobro que em 2015 (165).

Recorde-se que, em setembro de 2021, o ex-primeiro ministro António Costa aprovou um acordo de mobilidade na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), passando a facilitar a entrada em Portugal de cidadãos destes países, nos quais se incluem os PALOP. Três meses depois, assinou um acordo com a Índia que facilita a imigração legal de trabalhadores.

Nuno Clode recorda que “os cuidados obstétricos em países de terceiro mundo são tão maus que, provavelmente, as pessoas arriscam a vir para aqui no sentido de terem mais cuidados, quando têm os seus bebés”.

O SNS não está livre de regras e até de taxas para cidadãos estrangeiros, mas “facilita imenso tudo o que seja natalidade.” “As grávidas são bem acolhidas, as grávidas são bem recebidas, não lhes é exigido nada. E, portanto, essa é uma das razões pela qual poderá haver algum ‘turismo de natalidade’”, diz.

Na opinião de Carlos Cortes, este fenómeno é “residual” – mas estará em crescimento.

“Temos cada vez mais casos, em cada vez mais hospitais, em que esse fenómeno, o ‘turismo de saúde’, acontece. Portugal tem esta característica humanística que é permitir pessoas que necessitam de cuidados de saúde, mesmo provenientes de outros países – com sistemas de saúde, mas provavelmente não tão bons como o nosso –, acabem por vir a Portugal, residam em Portugal durante o momento em que têm de usufruir [dos cuidados], e depois voltem ao seu país”, diz.

Na MAC, tal como em qualquer outra maternidade do SNS, não existe um protocolo específico para sinalização de possíveis casos de “turismo de natalidade”. Se algum caso levantar suspeitas, é sinalizado pelas assistentes sociais, explica Ana Fatela.

Para o bastonário da Ordem dos Médicos, é importante medir o “impacto” da procura do SNS por cidadãos estrangeiros que venham em “turismo de saúde”. Sejam partos nas maternidades, sejam outros cuidados médicos.

“Era absolutamente essencial existir um mecanismo que pudesse avaliar estas situações. Portugal está no espaço Schengen, há livre circulação. E tem uma relação com os países da CPLP. Era importante termos a noção destes vários fenómenos, nomeadamente do ‘turismo em saúde’, numa perspetiva de estarmos preparados para as várias necessidades que possam surgir”, diz.

[Texto atualizado às 19h45, 18 de abril.]

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