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Gente como nós. Do horror da Síria para a tranquilidade de Vila Nova de Tazem

19 mar, 2018 - 14:30 • Liliana Carona

“Bum! Bum! Assad coming”. Conheça a família numerosa que partiu da Síria, passou pelo drama dos campos de refugiados e, finalmente, encontrou a paz numa freguesia de Gouveia: “I love portugueses.”

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Gente como nós. Reportagem de Liliana Carona

“É preciso fazer zoom para ver a nossa localidade, Vila Nova de Tazem, mas é com muito orgulho que recebemos esta família síria”, declara Laura Costa, a professora de matemática que dirige a Associação Reencontro, responsável por diversos projetos ligados a crianças e jovens.

Foi em outubro de 2015, em Lisboa, que assinaram um protocolo com a Plataforma de Apoio aos Refugiados. “Passou-se este tempo todo, mas eles vêm ao abrigo de um projeto diferente de recolocação, em que o nosso Governo decidiu acolher 1000 refugiados. E é assim que eles aqui chegam", esclarece Laura.

"Nós sempre dissemos que queríamos uma família numerosa, composta essencialmente por crianças. Temos seis crianças cá e as duas filhas adultas ficaram, uma na Turquia e outra na Síria. Uma está grávida. Eles vieram porque o Yasir, o pai, tem problemas de coração e estilhaços nas pernas. A prioridade foi dada a famílias com problemas de saúde”, detalha a activista.

Sobre o protocolo, Laura conta ainda que “a família síria está ao abrigo do protocolo durante dois anos, sendo que a UE e a ONU apoiam financeiramente os refugiados, têm uma bolsa atribuída mensalmente, e a ideia é que se autonomizem durante este período”.

Seis anos passados, por três campos de refugiados diferentes, Yasir Abdulsalam, de 51 anos, e a mulher Roda Aljasem, de 45, juntamente com seis dos oito filhos chegaram a Vila Nova de Tazem, no distrito da Guarda, a 23 de dezembro de 2017. Foram recebidos na Associação Reencontro, por Laura Costa, ao abrigo de um protocolo celebrado com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

Nesse protocolo pode ler-se que “o compromisso do Estado português junto do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) é de reinstalar refugiados e de garantir, nos termos da Constituição e da lei, o direito de proteção internacional aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição em consequência da sua atividade em favor da democracia”.

A família Abdulsalam é composta pelo pai Yasir, de 51 anos, e a mãe Roda Aljasem, de 45. Em Portugal também encontram-se os filhos Yasmin, 17 anos; Nermin, 15 anos; Ammar, 12 anos; os gémeos Asmaa e Abduallah, de 10 anos e Ala, de 8 anos. Amani, 19 anos, e Samar, 23 anos, não viajaram para Portugal.

A história da vinda para Portugal, começa a escrever-se em 2011, quando a família Abdulsalam – a viver em Hama, um dos catorze distritos da Síria – decidiu fugir de uma guerra que lhes ia tirando tudo. Ficaram sem casa e Roda perdeu os pais, vítimas de um conflito sangrento. Yasir escapou por um triz. Ainda hoje tem nas pernas os estilhaços das balas que o atingiram quando ia simplesmente trabalhar.

“Eu não estava armado, quando eles chegaram, eu estava no trabalho e fui atingido” descreve.

Comunicar não é fácil. Não falam português ou inglês, pelo menos, fluentemente. Mas arranjaram forma de dizer o que queriam. “Iogurte, por exemplo, foi uma luta para conseguir perceber o que queria dizer, utilizamos gestos, desenhos e o tradutor do Google, o Mr google”, brinca Laura Costa.

Só mesmo as barreiras da língua separam a família síria dos portugueses, que os acolheram como família. “Quando assinámos o protocolo foi com um intuito. Acompanhámos nas redes sociais, e toda a gente comenta, mas ninguém parte para a ação, há crianças a morrer e nós somos uma associação que trabalha sobretudo para a área da infância e juventude. Aqui somos a família deles”, esclarece a responsável da Associação Reencontro, apressando-se a valorizar o apoio de toda a comunidade local. “No Natal, uma família aqui perto veio trazer filhoses, ofereceram-lhes lenha, galinhas, bicicletas”.

Roda confirma: “português good, Laura, Carlos, Beto, Maria João [não tem palavras], todos good, portugueses good”.

Laura refere que a vinda dos sírios para Portugal quebra o preconceito e o hábito de por rótulos às pessoas. “Não tem nada a ver. Desde o primeiro momento, é uma família que cativa, ninguém se sente estranho”, assegura.

Os seis filhos menores estudam na escola de Vila Nova de Tazem e Abduallah já sabe contar até 40. Asmaa, de 10 anos, aprende o corpo humano e diz que “é muito gira a escola, trabalhar é muito bom”. Para Laura Costa, também a localidade de Vila Nova de Tazem ficou a ganhar com a vinda da família síria, até porque “na Escola Básica de Vila Nova de Tázem ganhámos mais um professor, Vila Nova ganhou uma casa arrendada, são seis crianças que estão na escola. Para uma freguesia que tem perdido população jovem, é muito importante. Agora a luta é tentar que as outras filhas venham para ao pé de nós”, acrescenta.

E quem ensina, é a professora Maria Miguel, a educadora de infância e professora de educação especial, que recebe beijos e abraços. “’I Love you’ Maria Miguel”, diz Yasmin, abraçando com força a docente que sorri e retribui. “Está a correr bem, são muito interessados e motivados”, afiança.

Em Vila Nova de Tazem, a família síria encontrou uma escola e uma casa grande onde podem correr, subir e descer escadas, gritar livremente. Ammar de 12 anos chama pelo pai, em português e a filha Asmaa pede ao pai para cantar em árabe. Todos dizem estar felizes na nova casa. Fazem o pão em casa, o chá com sementes cultivadas no quintal e afagam as galinhas de quem retiram os ovos.

Yasir e Roda recusam ficar de braços cruzados no país que os acolheu. Já têm galinhas, coelhos, galo. Semeiam os legumes e a ideia é cultivar para retribuir a quem os ajudou. Yasir trabalhou em diversas áreas na Síria, foi padeiro, sapateiro, agricultor, e em Portugal quer manter-se ativo, desempenhando os mesmos trabalhos que fazia no país de origem. “As pessoas questionam, uma família tão grande vive de quê? Eles estão há muito pouco tempo cá e já cultivam para partilhar e quando entramos na casa deles, temos sempre que comer pão e beber chá ou café”, elogia Laura.

A saúde é outra das prioridades de Laura Costa e da restante equipa que com ela trabalha na Associação Reencontro. Alberto Pinto acompanha Yasir ao médico. “Vieram também com o objetivo de se tratar. O Yasir quer trabalhar, mas primeiro temos que saber o estado de saúde dele. Já fez análises, eletrocardiogramas, exames às pernas. Ele quer é estar ativo, mas primeiro a saúde”, considera um dos voluntários da Associação Reencontro.

A família Abdulsalam não poupa elogios à forma como foram recebidos em Portugal, mas o coração ficou dividido entre a Síria e a Turquia, onde ficaram as filhas mais velhas. “Seremos muito gratos a quem nos ajudar a trazer as filhas para Portugal”, diz Yasir com a ajuda do google tradutor, que o auxilia no telemóvel. Yasir sonha abraçar novamente as filhas Amani e Samar: “Tenho lá o coração”. É pelas filhas que ainda gostava de voltar à Síria, porque todas as outras memórias são negras. “Carro: não; pão: não; batatas: ‘finish’; ambulâncias: não; doutor: não; sem dinheiro, vivemos num inferno”, recorda.

E não é preciso tradutor para perceber a opinião que Yasir tem de Bashar al-Assad, o presidente sírio. Yasir faz o gesto de cuspir para o chão e diz “‘no good’, ele é conflituoso, racista e sectário, com políticas e líderes que comem o dinheiro das pessoas”.

Roda lembra os longos anos que esteve nos campos na Turquia. Três campos de refugiados diferentes. O último em Kilis, onde 126 mil sírios estão registados (quase equivalente à população local). A mulher de Yasir salienta que não foi maltratada, mas abre o armário da cozinha e retira um pacote de esparguete, para explicar que crianças e adultos todos os dias comiam só massa, “só massa, não pão, sem dinheiro, não há comida”, denuncia.

Yasir conta que para atravessar a fronteira da Síria para a Turquia é o dinheiro que fala mais alto. “Hoje é preciso um milhão de liras para atravessar um 1,5 km e metade é para os polícias das fronteiras. A minha filha que está grávida queria passar porque precisa de apoio médico e mandaram-na para trás e a partir do momento em que estivesse em território turco podia pedir o estatuto de refugiada”.

Mas a Associação Reencontro está decidida em juntar esta família. “Estamos todos preocupados, porque a pessoa que está lá tem rosto. A filha que está na Turquia casou com um turco e, portanto, já não pode entrar em Portugal com o estatuto de refugiada. Mas relativamente à filha, mais velha, que ficou na Síria, estamos a tentar angariar dinheiro para que ela saia do país. É um país em guerra, nada lá está bem”, alerta Laura.

Um trabalho de equipa, onde está a voluntária Maria João. Faz tudo para que a família síria se sinta em casa, em Vila Nova de Tazem. “É o mínimo que se pode fazer, é ajudá-los. Por exemplo, vou às compras com a Roda, porque é difícil encontrar alguns cereais que eles comem, como o bulgur. A minha mãe fez-lhe um vestido, porque aqui não há vestidos árabes”, realça, considerando, contudo, que o mais importante era conseguir trazer as duas filhas para Portugal, porque “eles assim estão muito tristes”.

As crianças sentem-se em casa, dizem elas, tudo como família, entre “I love you” e gosto de ti, contam o que gostam e o que menos gostam em território lusitano. “Chuva, muito frio” diz Ammar, de 12 anos. “Adoro comer sopa”, interrompe Yasmin. “Eu ‘I love you’ português, ‘I love you’ todos”, diz Asmaa.

Asmaa, de 10 anos e Yasmin, de 17, recordam o pesadelo que era viver na Síria. “Bum! Bum! Bum! E chorar, meu pai dormia e ouviam-se as bombas, ‘Assad coming’, gritavam. Muitos problemas, casa destruída pelas bombas”.

Mas é o amor pelo país que a viu nascer e crescer que faz o coração de Yasmin e dos irmãos palpitar pelo regresso. “Queremos muito retorno à Síria, e retornaremos ao nosso país precioso, em que vivemos um dia.” Põem no máximo a música, que dizem ser o som do que sentem.

A guerra na Síria tem mais de 7 anos. Começou como uma vaga de manifestações pacíficas contra o regime sírio e tornou-se numa guerra civil. No interior da Síria, há mais de 6 milhões de pessoas que tiveram de deixar as suas casas e fugir.

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