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Francisco: Um reformador radical movido a misericórdia

09 jun, 2015 • Filipe d’Avillez

Austen Ivereigh descreve o Papa como um “missionário da misericórdia” que acordou nos fiéis ocidentais a memória de um Cristo que, subconscientemente todos recordam, mas que entretanto se perdeu.  

Francisco: Um reformador radical movido a misericórdia
Ninguém tinha escrito uma biografia assim do Papa Francisco.

Ao longo de dois anos o jornalista britânico Austen Ivereigh esteve na Argentina, falou com conhecidos, amigos e até antigos inimigos de Jorge Maria Bergoglio e leu tudo o que ele escreveu enquanto jesuíta.

O resultado é uma obra que ajuda a compreender de onde vem o Papa e, mais importante, para onde vai. Ivereigh não hesita em descrevê-lo como um “reformador radical”, mas explica o que quer dizer por isso.

“Eu descrevo-o como um Papa radical porque quero demonstrar que ele pertence a uma tradição de reforma católica radical que começa na Idade Média, com são Francisco de Assis. Mas sendo um reformador, não é Lutero, e sendo um radical, não é Che Guevara.”

“A tradição a que ele pertence tem a ver com a recuperação da missão original da Igreja, que lhe foi encarregada por Jesus Cristo, que é de anunciar Deus e a misericórdia de Deus ao mundo”, explica.

“A grande reforma em que ele está envolvido é um novo enfoque das prioridades da Igreja e uma tentativa deliberada de remover todas as coisas que impedem a Igreja de levar Cristo ao mundo. Por outras palavras, a Igreja não deve depender do ego, nem do poder, das coisas do mundo, mas sim daquilo a que ele chama ‘kerygma’, o dom essencial da Igreja, a boa nova do amor salvífico de Deus através de Jesus Cristo.”

Para o jornalista, cuja tese de doutoramento, feita há mais de 25 anos, foi precisamente sobre a influência da Igreja na política da argentina nos tempos de Perón, uma das grandes chaves para compreender o Papa Francisco é a evangelização através da misericórdia.

“Esta é uma ideia nova para a Igreja – já familiar na América Latina, mas não tanto na Europa e na América – que a forma como se converte as pessoas não é através da argumentação, mas sim através de uma experiência com o amor e a misericórdia de Deus. Essa é a chave da nova evangelização de Francisco. Como é que apresentamos o Evangelho às sociedades que parecem tê-lo rejeitado? É através da misericórdia”.

Esta é também a chave para compreender o sucesso mediático e a popularidade de Francisco: “Como é que este Papa, que afinal de contas é um católico tradicional, que não mudou nada na doutrina da Igreja nem pretende fazê-lo, conseguiu que o mundo liberal e secular olhasse de novo para a Igreja e goste do que vê?”

“Eu acho que a resposta é que ele compreendeu o poder da misericórdia. É um jesuíta que está a restaurar, enquanto missionário, a ideia da experiência do amor e da misericórdia de Deus como principal mensagem da Igreja e porque incorpora isso e o comunica tão bem, está a acordar na consciência ocidental a memória de um Cristo que, subconscientemente, todos recordamos mas que entretanto perdemos”, diz.

Este não é de maneira nenhuma um caminho fácil, explica Austen Ivereigh. Pelo contrário, trata-se de viver numa permanente tensão e isso é algo que é aparente no que diz respeito aos temas mais fracturantes do Sínodo da Família, como por exemplo o acesso aos sacramentos por parte de pessoas em uniões irregulares.

“A tensão que o Papa está a convidar a Igreja a habitar passa por esta questão: Como é que abrimos caminhos para as pessoas voltarem à Igreja, defendendo ao mesmo tempo o valor absolutamente essencial da indissolubilidade do casamento?”

“A Igreja sempre aprendeu a evangelizar de formas novas. Não passa por mudar a doutrina, passa por viver na tensão entre a verdade da doutrina e as necessidades pastorais das pessoas, que é o que Jesus faz. Jesus deixou a Igreja nessa tensão. Ele não se importa de permanecer nessa tensão e o sínodo passa precisamente por viver aí e deixar que o Espírito Santo actue através disso”, explica Austen Ivereigh, que a par do seu trabalho como jornalista é também o fundador de um grupo que prepara leigos católicos para poderem falar com a imprensa sempre que for preciso, e que se está a lançar também em Portugal.

A profunda investigação e as entrevistas feitas com pessoas que conviveram de perto com Bergoglio na Argentina, permitem ao autor concluir que nada disto é novo. “Tornou-se claro, ao ler os seus escritos enquanto jesuíta, que ele tem uma concepção, desde os seus trinta anos, de si mesmo como um reformador. Claramente cresceu e as suas ideias desenvolveram-se, mas é impressionante como há uma continuidade entre o Bergoglio dos primeiros anos e o Papa que agora conhecemos, passando pelo Cardeal Arcebispo de Buenos Aires”.

Parte desta investigação envolveu falar também com pessoas com quem o agora Papa viveu desavindo durante décadas. Austen Ivereigh realça que houve uma geração mais velha de jesuítas que não gostavam do estilo de Bergoglio e que pediram aos superiores da ordem, em Roma, para o removerem da liderança da província na Argentina. Contudo, esta é uma história de inimizade que termina da melhor maneira. “Na Argentina falei com uma série de jesuítas muito velhos, com 80 e 90 e tal anos, num lar de jesuítas idosos. Sabia que alguns deles tinham sido seus inimigos e eles mostraram-me cartas que ele lhes tinha escrito. Estavam com lágrimas nos olhos, eram cartas belíssimas de reconciliação”.

Austen Ivereigh está em Portugal para o lançamento do seu livro, editado pela Vogais. A obra é lançada no auditório da Feira do Livro de Lisboa, quarta-feira dia 10 de Junho, às 15h00, num evento que conta com a presença também de Aura Miguel, autora do prefácio, e do jornalista Octávio Carmo.