22 mar, 2013 • José Bastos
Sustenta que, dez anos depois, ainda não são evidentes todas as implicações da guerra do Iraque. Exemplos?
O raio total de consequências está ainda por medir. Por exemplo, o tipo e alcance do sectarismo regional. Ou o posicionamento de novos e importantes actores regionais, novos, no sentido da redefinição dos seus poderes, como a Turquia, o Irão, a Arábia Saudita, os países do Golfo, os próprios Estados Unidos. São redefinições que estão ainda em curso e não penso que estejam já concluídas.
Cita Tocqueville: “O grande privilégio dos americanos é poderem cometer erros reparáveis”. Invadir o Iraque não foi um erro irreparável?
A dez anos de distância, o Iraque é um erro geo-político. Um erro que tem consequências no papel dos Estados Unidos no mundo e, em particular, no Médio Oriente. Hoje, vemos uma retracção no papel dos Estados Unidos na região, fruto do que correu mal no Iraque. Falo da Síria, falo da própria relação com Israel, visível numa certa tentativa dos Estados Unidos só operarem cirurgicamente através do recurso a aviões não-tripulados. Tropas no terreno e grandes operações militares estão afastadas. Para os Estados Unidos, há um “trauma Iraque” como houve um “trauma Vietname”. Já para os aliados europeus, as consequências não são da mesma magnitude que para Washington.
O Iraque foi o ponto mais alto na confrontação de dois modelos de ordem internacional. Resultou na derrota de um desses modelos, o unilateral?
Quando me refiro a modelos, defendo que há um modelo pós-89. O modelo em que a ordem internacional era assente numa única super-potência. Com o 11 de Setembro, essa super-potência foi obrigada a reagir. Numa primeira fase, reagiu de forma legal e correcta, com a grande coligação internacional para o Afeganistão. No caso do Iraque, reagiu erradamente. Foi como acordar um monstro que tem passos certos e errados dentro de uma reacção intempestiva. O Iraque é um passo incorrecto. Dentro dessa perspectiva, a ordem internacional - que considero ser ainda unipolar - tem hoje outras variáveis que obrigam os Estados Unidos a repensar o seu papel no mundo e a considerar outros players como relevantes nas grandes questões, de uma forma que, há dez anos, Washington não ponderava.
No livro, olha para as Lajes a partir de um ângulo português. Escreve que em Portugal ninguém quis aprofundar os bastidores da mais polémica decisão de política externa da nossa democracia...
Eu até vou mais longe: em Portugal, não se quer aprofundar os bastidores de nenhuma decisão política portuguesa. A excepção é o recente livro de David Dinis sobre os últimos meses do governo Sócrates e resgate da troika.
E porquê?
É uma questão cultural. Uma certa reverência face ao establishment. Acho que há um relacionamento excessivo entre todos os sectores da sociedade. Há intimidade a mais entre profissionais de diversas áreas.
Nas centenas de livros publicados sobre a guerra do Iraque, a cimeira não merece mais que um parágrafo. Porque as Lajes foram a cimeira de uma guerra previamente decidida e, nesse sentido, só são relevantes a partir de um olhar português?
É um pouco isso, no sentido em que toda a literatura que tem saído sobre a opção anglo-americana trabalha num contexto de tomada de decisão em que a cimeira constitui um momento secundário. A cimeira foi importante para o mediatismo de Portugal, para o desenlace do processo de Barroso, elementos irrelevantes no processo de decisão norte-americana. Não há, na literatura publicada, mais do que dois ou três parágrafos sobre a cimeira porque, de facto, a decisão estava tomada e, com ou sem cimeira, a guerra teria tido lugar.
A localização nas Lajes foi uma ideia de Aznar. Defende que responder à aproximação de Aznar a Washington se tornou uma obsessão para Barroso...
Sim. Esse é o lado racional da decisão portuguesa. Mas é uma velha questão na diplomacia portuguesa, porque há sectores da esquerda, sobretudo no Partido Socialista, que pensam exactamente o contrário de Durão Barroso e, na altura, também havia uma grande aproximação entre Ferro Rodrigues e Zapatero. Portanto, o “factor espanhol” funcionava tanto para a direita como para a esquerda. Separava completamente as águas. Ou seja, uma parte da esquerda do Partido Socialista vê essa aproximação com a Espanha como uma regra que deve ser combatida na política externa portuguesa. É na diferenciação que nós somos mais fortes. Barroso entendia o contrário. Antecipou um cenário pós-tomada de decisão em como não estando também ao lado dos Estados Unidos, deixaria a Espanha – em crescente fase de protagonismo euro-atlântico – na Península Ibérica, a falar sozinha e directamente com Washington. Portugal ficaria numa terra de ninguém.
Defende que as Lajes serviram para a construção desse perfil internacional de Barroso. Mas isso não aconteceu sem grande ginástica: há aliados europeus que estão contra a guerra. Por exemplo, Chirac, que, depois, não veta Barroso para a Comissão?
O processo de escolha para a Comissão é um pouco como o processo de escolha para secretário-geral da NATO. É uma longa corrida, corrida de fundo em que os candidatos vão sendo sucessivamente eliminados. Quem tem mais estofo para chegar ao fim é quem fica, numa verdade de la Palisse. Foi Barroso. Por experiência própria, ele tem um conhecimento dos meandros. Sabe muito bem como ginasticar as relações diplomáticas. Faz isso de forma exemplar. Nunca faz rupturas.
Sustenta que Barroso sempre mostrou grande orgulho na relação pessoal com Bush. Reproduz mesmo frases de Barroso que terão feito Bush rir. Por exemplo, “os problema é que os aliados têm opinião” ou “temos de colocar o macaco nas costas dos iraquianos”...
Parece que as empatias contam. Aznar também teve. Se recuperarmos os dois livros que Aznar escreve sobre este período, um deles chamado “Perfis”, em que traça vários perfis de líderes internacionais - um deles Guterres com quem grande empatia pessoal -, vê-se perfeitamente esse deslumbramento. Esse deslumbramento era extensível a outros primeiros-ministros. Havia uma certa química com Bush. E muita gente que lidou com Bush de perto acaba por dizer que há uma opinião errada de Bush. Que ele estabelecia uma química invulgar com as pessoas. Isso pode explicar.
E quanto ao “temos de colocar o macaco nas costas dos iraquianos”, de Barroso?...
Essa foi uma estratégia mais ou menos concertada que era colocar o ónus da crise sobre o Iraque. Mas essa situação tem os seus próprios limites e, às tantas, o de perceber que um regime que é pouco transparente não será transparente em 24 horas.
Mas, em público, o reconhecimento de Bush a Aznar foi sempre superior ao reconhecimento a Barroso, não obstante Barroso sair para dois mandatos na Comissão Europeia e Aznar dirigir agora uma fundação...
Olhe que não sei quem tem mais poder.... Contactei os mesmos circuitos de Aznar quando estive em Washington, em 2012 – até porque ele faz parte dos corpos sociais de um Instituto a que tenho ligação –, e Aznar tem muita influência em muitos sectores na capital americana. Quando se quer perceber a América Latina e se quer convidar alguém é Aznar que surge na primeira linha. E vejo hoje a Comissão Europeia num lugar secundário em todo o debate europeu.
No plano interno, o governo é responsável pela política externa, mas o presidente é o comandante supremo das forças armadas. Sampaio estava contra a invasão do Iraque, mas a sua oposição foi mais simbólica que prática...
Foi a posição possível dentro dos poderes constitucionais e da leitura desses poderes feita por Jorge Sampaio. Sendo certo que havia um ponto assente: não tornar o relacionamento institucional inviável a um ponto de se ter de tirar conclusões políticas sobre isso. Penso que Jorge Sampaio e Durão Barroso trabalharam sobre isso.
No livro, é relatado um telefonema da dirigente socialista Ana Gomes a Jorge Sampaio, incrédula com a realização da cimeira nas Lajes, a transmitir uma posição de militantes do PS: aquele era um momento para o Presidente ser Presidente. Sampaio responde que só tinha a bomba atómica. Ferro Rodrigues também pressionou Sampaio. Até onde poderia ter ido o presidente?
Julgo que Sampaio fez aquilo que o texto constitucional lhe permitia. Outra coisa é questionar os limites para o Presidente dos poderes constitucionais em questões tão sensíveis. Podemos também questionar as divisões dentro do Partido Socialista - todos os grandes partidos as terão - numa matéria em que vê a actuação de um Presidente que foi eleito sobretudo com os seus votos
António Vitorino era, na altura, o Comissário Europeu da Justiça, dos Assuntos Internos, responsável pelo “dossier terrorismo”. Deslocava-se regularmente a Washington, mas nunca foi solicitado por Barroso para qualquer esclarecimento sobre o Iraque. Como se explica?
Há aqui várias questões... Este livro terá cumprido o seu papel se servir para questionar alguns mecanismos que podem ser melhorados, se formos confrontados com uma decisão tão sensível num futuro próximo. Um deles é esse: a articulação entre personalidades públicas portuguesas no plano doméstico e em cargos internacionais. Há pouca articulação no plano da nacionalidade. Em segundo lugar, a própria credibilidade das informações do Estado. Nós não termos uma aceitação tão acrítica daquilo que nos é enviado pelos serviços secretos com quem trabalhamos.
No caso português, “elevar a diplomacia a um patamar mais elevado” foi um objectivo conseguido?
Objectivamente, sim. Que proveitos Portugal terá tirado das Lajes? Não penso que as Lajes tenham sido assim tão importantes para a política externa portuguesa. Penso que a cimeira foi mais importante para a construção do perfil internacional de Durão Barroso. Esse aspecto não me surpreendeu, no sentido em que vi todo o processo muito centrado na figura de Barroso, por sua opção, devo dizer...
Ouça a entrevista áudio na íntegra.