O ruído de uma multidão assustada foi gravado num baile de fim-de-ano, numa casa vizinha dos estúdios da
Renascença, no Algarve. As cenas de combate, com a artilharia, em Vila Nova de Gaia, foram recriadas noite dentro, “com um gravador ‘portátil’ de algumas dezenas de quilos”, junto dos emissores da
Renascença em Monsanto, onde se podia gritar à vontade.
Em 1958, os meios de produção radiofónica eram escassos e só a criatividade podia suprir as muitas necessidades dos radialistas. Mas isso era secundário para Matos Maia, um jovem locutor e produtor de rádio, de 27 anos, apaixonado pelo imaginário policial e pela ficção científica. Assim decide, em plena ditadura, adaptar e recriar o teatro radiofónico “A Guerra dos Mundos” numa versão à portuguesa, vinte anos depois do estrondoso sucesso da versão norte-americana encenada por Orson Welles e transmitida na rádio CBS, como “partida” de Haloween, na noite de 30 de Outubro.
Matos Maia, falecido em 2005, havia de recordar ao
site “Clássicos da Rádio” que preparou a produção de “A Invasão dos Marcianos” durante quase um ano, estudou tudo o que havia para estudar sobre a história criada por Wells no final do século XIX, juntou 16 pessoas para interpretar todos os papéis, entre locutores, amigos e conhecidos, produziu de forma quase amadora e a custo zero os muitos sons que compõem os cenários radiofónicos desta peça, que imagina uma invasão de marcianos na Terra.
Escreveu todo o guião, com grande minúcia, e tratou de conseguir a aprovação da
Renascença, onde trabalhava, e dos censores do regime. E "A Invasão dos Marcianos" foi aprovada para transmissão. Até ao dia - “para evitar alarmismos” - os ouvintes são avisados por várias vezes da emissão de uma peça de ficção, recorda Aurélio Carlos Moreira, na altura também um jovem locutor da
Renascença. Mas, “às vezes, os ouvintes ouvem o que querem e não o que devem ouvir”, diz, entre risos, o radialista, antes de recordar o impacto da “Invasão dos Marcianos”. Mas já lá vamos…
Uma ficção que não chegou ao fimÀs 20h40 de 25 de Junho de 1958, um programa de orquestras ligeiras da
Renascença é interrompido para dar conta de fenómenos estranhos no planeta Marte, observados por astrónomos portugueses. As interrupções sucedem-se, por entre as músicas, e logo se relata a queda de um objecto estranho, em chamas, numa quinta em Carcavelos (na versão norte-americana, tudo começava em Nova Jersia). Daí à guerra “em directo”, vão uns minutos. E o cenário não podia ser mais realista. Há repórteres no terreno, testemunhas, especialistas, sons de comunicações da aviação, vozes do governo, notas informativas do estrangeiro, até noticiários em simultâneo com a BBC – ou melhor, BCC, porque todas as referências deviam ser fictícias.
O detalhe é tal que até as interrupções e as chamadas “brancas”, em rádio, a simular cortes de emissão, e muitos ruídos e sons insólitos são definidos no guião e muito realisticamente transpostos para a antena. Aurélio Carlos Moreira, hoje a trabalhar na Rádio Sim, recorda que a qualidade técnica “impressionou” e que o programa foi de um sucesso “estrondoso” tendo, tal como nos Estados Unidos, “causado algum pânico”. “Quando se disse no programa que os discos voadores tinham aterrado na zona da praia de Carcavelos, calcula, aqui na Zona de Lisboa, o que aconteceu…”, lembra o locutor.
Se tinha então passado o crivo da censura, já pelo impacto que teve no ar, “A Invasão dos Marcianos” não havia de chegar ao fim naquela noite de 1958. A PSP entrou nos estúdios da
Renascença, prendeu Matos Maia e interrompeu a emissão, que passou a transmitir música. Matos Maia acabaria por dizer também, mais tarde, que percebeu a histeria da polícia: as 20 linhas do PBX do Governo Civil estavam totalmente bloqueadas com chamadas de pessoas em pânico.
Passou três horas numa cela, e, nos dias seguintes, não é perdoado pelos jornais, que o criticam, e por alguns ouvintes mais incomodados. Uma semana depois, o mentor é interrogado na PIDE. Aurélio Carlos Moreira lembra que os colegas recearam mesmo que Matos Maia fosse “obrigado a passar uns tempos em Caxias”, mas a chamada à polícia política, na António Maria Cardoso, acabou por não ter consequências de maior.
O produtor há-de ficar a saber que foi o próprio Salazar a telefonar à PSP e à PIDE para “dar um puxão de orelhas ao rapazinho”, porque “não se brinca com coisas sérias”.