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Há um "genocídio medieval" no Iraque e Mossul "está repleta de cabeças cortadas"

17 ago, 2014

Famílias enterradas vivas, decapitações, crucificações. Um cirurgião de guerra em Erbil, a apenas 50 km dos terroristas, diz que nunca viu nenhuma guerra "tão cruel": é o "terror pelo terror".

Há um "genocídio medieval" no Iraque e Mossul "está repleta de cabeças cortadas"
Juan Luis Ney Sotomayor já esteve em mais de uma dezena de missões humanitárias, da Libéria ao Afeganistão, do Sudão ao Mali. Mas o médico cirurgião espanhol, especialista em cirurgia de guerra, nunca viu nada como aquilo a que tem assistido no Iraque.

Está em Erbil, a apenas 50 quilómetros dos jihadistas do Estado Islâmico, que têm espalhado a morte pelo Iraque e pela Síria. Em Erbil estão 100 mil refugiados, uma pequena parte do milhão de iraquianos que tiveram que fugir de suas casas.

Há dias em que o médico de 46 anos, de Barcelona, trabalha 24 horas seguidas tal é a quantidade de iraquianos a precisar de ajuda.

Sotomayor deu o seu testemunho ao "El Mundo". "Esta guerra está-me a afectar mais do que qualquer outra", diz. O artigo, disponível "online", já foi lido por milhares de pessoas.

A Renascença cita alguns excertos:

"Não posso fechar os olhos perante a barbárie. Faz parte do meu trabalho. Aparece diante de mim todos os dias. Não penso voltar-lhe as costas. Se o fizesse trairia os meus princípios e a minha forma de entender a vida. Vejo milhares de corpos quebrados pela dor. Escuto centenas de relatos, cada um mais cruel do que o outro, de sofrimento vivido. Sinto os soluços intermináveis dos meninos. (…) E a aparição constante de grupos de meninos sozinhos. Os meninos e a guerra, um binómio que permanece unido e que, desgraçadamente, já tinha vivido. Mas nunca de uma maneira tão cruel como agora. Esta guerra está-me a afectar mais do que qualquer outra.

É um genocídio medieval. O terror pelo terror. O mais duro tem sido recolher recém-nascidos depois de um ataque jihadista contra uma coluna de refugiados e não poder transportá-los a todos. É uma sensação de impotência brutal. Gostaria de salvá-los a todos. Levá-los para Espanha. Afastá-los deste horror. Não posso. Há-os de todas as idades, recém-nascidos, lactantes, meninos pequenos e adolescentes. O que mais me dói é não poder atendê-los como precisam.

(…)

Tudo começou há apenas dois meses, quando Mossul (a segunda cidade mais importante do Iraque) caiu nas mãos dos jihadistas do Estado Islâmico. (…) Depois apoderaram-se de outras cidades importantes como Kirkuk. Em todas elas houve lugar às mais horríveis matanças: decapitações públicas, fuzilamentos em massa, crucificações de infiéis, mulheres e crianças enterradas vivas.

(…)

O mais espantoso que alguém possa imaginar foi superado pela realidade. Testemunhas directas relataram-me como a cidade de Mossul está repleta de cabeças cortadas pendurados nos fios eléctricos.

(…)

Aos crimes de guerra seguiu-se a catástrofe humanitária. Centenas de milhares de pessoas perdidas no deserto sem comida, sem água, andando descalços, suportando temperaturas de 55 graus centígrados. Não se sabe quantas pessoas morreram assim. Seguramente as mais débeis: anciãos, mulheres, doentes, crianças e os que tinham menos alimentos. Muitas destas colunas de refugiados foram atacadas com fogo de artilharia pelas milícias do Estado Islâmico. Eu denuncio abertamente que está em curso um genocídio contra a população civil do Iraque.

(…)

A dinâmica que os terroristas do Estado Islâmico impuseram consiste num ataque sistemático e sem distinções contra a população civil. Esta é a verdadeira situação que vivemos. Sem dramatismos, nem exageros. Ainda que revistam as suas acções como parte da guerra santa para instaurar um novo califado, a realidade é que usam a religião como instrumento de terror. Não é uma guerra contra os cristãos, nem sequer uma entre sunitas e xiitas. É uma guerra do terrorismo internacional contra todos. São especialmente cruéis. Atacam hospitais, executam famílias inteiras. Fazem crimes massivos que filmam e distribuem pelas redes [sociais]. A propaganda dos seus horrores fá-los mais fortes.

(….)

Aqui, em Erbil, agradece-se a intervenção dos Estados Unidos e a ajuda que prestam França e Inglaterra. Espanha também deveria intervir com ajuda humanitária.

(…)

Não temos muito tempo. É uma questão de semanas. Nós já temos preparados vários planos de evacuação. Todo o pessoal ocidental sabe que é o objectivo principal das milícias do estado Islâmico. (…) A minha intenção é permanecer em Erbil até ao último momento. Mas sei que quando me for embora, atrás de mim ficarão sempre as crianças."

Fonte: El Mundo