Media tradicionais "em declínio" devem "investir mais e melhor no online"

17 abr, 2023 - 23:10 • Marta Pedreira Mixão

Hélder Bastos destaca que as empresas deveriam ter investido mais e melhor nos média online, já que, provavelmente, serão parte fundamental do futuro, perante o declínio dos média tradicionais.

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No balanço do primeiro quarto de século do ciberjornalismo em Portugal, Hélder Bastos, professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, fala de um travo "ligeiramente amargo" devido ao subaproveitamento das potencialidades da Internet por parte da maioria dos meios de comunicação, que poderiam ter feito "mais e melhor", apesar de algumas exceções.

A propósito do lançamento do livro “História do Ciberjornalismo em Portugal: Os primeiros vinte e cinco anos”, a Renascença entrevistou o professor e autor que refere que, perante o declínio dos media tradicionais em Portugal, é fundamental que as empresas do setor invistam de forma mais eficaz nos média online, como uma estratégia para criar condições que garantam a sustentabilidade futura.

O docente falou da falta de investimento e de capacidade para compreender as potencialidades e particularidades do jornalismo digital por parte da maioria dos média, da redução das redações e do ciberjornalismo “low cost” alimentado por estagiários, “feeds” de agência e “corta e cola”, em vez de uma aposta em trabalhos diferenciados. Aponta ainda a dificuldade de encontrar um modelo de negócio funcional, num mundo de “scroll” de audiências que se ficam pela leitura de “um título” ou, “eventualmente, de um lead” e a falta de interação com o público.

No livro, lançado exclusivamente no formato digital e disponível para download, o autor traça a evolução do ciberjornalismo em Portugal desde 1995, ano em que os órgãos de comunicação social portugueses começaram a dar os primeiros passos na “World Wide Web”, até 2020. É um retrato de 25 anos de desafios, sucessos e também fracassos, refletindo um pensamento crítico sobre este período.

25 anos com “um travo ligeiramente amargo”

Fazendo um balanço do primeiro quarto de século da história do ciberjornalismo em Portugal, Hélder Bastos diz que “o que fica é um travo, de certa maneira, ligeiramente amargo”, porque se podia ter feito mais e melhor.

À Renascença, o docente destaca o subaproveitamento das potencialidades da Internet desde o início, com exceção de um breve “período efervescente” no investimento, que correspondeu a uma “febre” à volta das novas tecnologias que fazia “disparar os índices bolsistas das start-ups relacionadas com a internet”.

De acordo com o professor universitário, a maioria dos meios de comunicação nunca investiu fortemente na Internet em termos técnicos e humanos após a expansão inicial. Aponta, porém, alguns “investimentos interessantes” ao longo das primeiras décadas do século XXI.

“Mas, tirando as exceções, a maior parte ficou-se por um aproveitamento mediano e, em alguns casos, medíocre das potencialidades da Internet”

"Alguns meios, em que se conta notavelmente a Rádio Renascença, investiram acima da média, com resultados que se traduziram, por exemplo, na obtenção de vários prémios de ciberjornalismo", exemplifica, referindo ainda alguns “projetos inovadores”, como a introdução de vídeo nos sites da Renascença e o aparecimento da WebTV, “a par de outras tímidas apostas em multimédia”.

“Foram inovações importantes e é curioso que algumas dessas inovações tenham vindo da rádio que é o mundo do som, mas também nos jornais houve inovações interessantes, porque tiveram de dar um passo ainda maior, que foi o passo em direção ao vídeo e aos conteúdos multimédia”, conta, recordando também como, logo “nos primeiros anos, as rádios começaram a tirar algum partido interessante” da internet com transmissões em direto.

“Mas, tirando as exceções, a maior parte ficou-se por um aproveitamento mediano e, em alguns casos, medíocre das potencialidades da Internet”, nota.

Menciona ainda dois projetos de jornalismo independente, a Divergente e o Fumaça, como um exemplo de “uma aragem fresca” nas narrativas produzidas na web e que mostraram como é possível aproveitar ao máximo as potencialidades do digital.

Apesar do investimento em formatos diferenciados e inovadores corresponder a uma minoria, o professor universitário relembra que também “há o outro lado da moeda”.

“Se os media tradicionais estão em declínio, então as empresas teriam de ter feito mais para investir e criar condições para garantir a sua sustentabilidade futura. Como? Investindo talvez mais e melhor nos média online, que, ao que tudo indica, serão boa parte do futuro dos atuais média tradicionais”.

A adaptação ao digital – “uma conjunção de erros”

Com o avanço da tecnologia e a crescente digitalização da sociedade, o jornalismo tradicional foi enfrentando vários desafios na sua adaptação para o meio digital. Para o docente, um dos principais erros foi a falta de compreensão das características deste novo meio.

“Sobretudo, há um pecado inicial, um erro inicial que eu destacaria: começou a oferecer-se na web conteúdos que eram pagos, nomeadamente, no caso dos jornais, e quando as pessoas compravam o serviço e, de repente, podiam ter o mesmo de borla na web... Isso foi um erro inicial que veio a custar caro a algumas empresas, porque, depois, voltar atrás e começar a cobrar, relevou-se um processo muito mais penoso, porque as pessoas não estavam disponíveis para pagar. Isso foi um erro inicial que depois teve repercussões ao longo dos anos”, critica.

Além disso, aponta o subinvestimento crónico na internet e nos projetos online como outro erro crucial, com o digital a ser visto “como uma espécie de apêndice dos media tradicionais” ou apenas como uma “espécie de montra de marketing”, sem se perceber as suas especificidades.

Para Hélder Bastos, não foi apenas um grande erro, mas uma “conjugação de erros, sobretudo erros de cálculo, que depois impediram” que limitaram o desenvolvimento do digital.

O problema de um jornalismo “low cost”

O ciberjornalismo era um novo ramo, que tinha novas potencialidades, mas com a pressa de ‘não perder o comboio’ da internet, a maioria dos meios lançou-se no digital sem encontrar um modelo de negócio que sustentasse os meios online e sem conteúdos diferenciadores.

Sem um modelo de negócio sustentável, como explica o docente, não é possível contratar mais técnicos, mais jornalistas, para produzir mais conteúdos próprios”, para conseguir “fugir ao que de início chamava o ‘shovelware’, que era a transposição quase integral, quase de ‘copy paste’ dos conteúdos produzidos para os meios tradicionais” e que eram depois “depositados” nos sites, quase sem diferenciação.

“Esse é um problema que se mantém. Então, se formos para a imprensa regional e para os media regionais, o drama ainda é maior”, aponta Hélder Bastos.

É muito mais fácil ter equipas pequenas nas redações digitais, com vários estagiários a produzir ‘copy paste’ minuto a minuto, quase. E isso é o que eu chamo de ciberjornalismo ‘low cost’.

“Isto também tem a ver com prioridades das empresas jornalísticas e com uma capacidade de ter mais ou menos visão estratégica para perceber que, nomeadamente, que o futuro passa pelo online e não pelos media tradicionais”, refere, salvaguardando, porém, que não defende que se descuidem os média tradicionais, mas que se poderia ter investido mais neste novo ramo.

“Para as empresas, sobretudo, aquelas que pensam a curto prazo, é muito mais fácil ter equipas pequenas nas redações digitais, com vários estagiários a produzir ‘copy paste’ minuto a minuto, quase. E isso é o que eu chamo de ciberjornalismo ‘low cost’. Isso não custa nada, mas também não tem nenhum valor acrescentado. Não permite aos média online uma afirmação no panorama jornalístico em Portugal”, critica, justificando que é por este motivo que no livro fala de “um longo período de relativa estagnação, com alguns investimentos em contracorrente”.

Apesar de algumas empresas terem investido mais do que a média – o que levou a alguns resultados muito interessantes –, para o autor, “a maioria continua no registo de corta e cola e despejar para fora”, o que “não permite grandes voos, nem presentes nem futuros”.

O desafio das audiências na era da interação online

Os desafios das audiências na era do “online” são muitos e têm impacto no consumo da informação. A maioria das redações entraram no meio digital sem tirar partido do potencial das narrativas e reportagens multimédia, mas também sem explorar plenamente as redes sociais e o envolvimento com as suas audiências.

Um dos problemas, refere Hélder Bastos, à Renascença, é a falta de adaptação às novas formas de consumo de informação online. Com uma audiência, ansiosa por comunicar – que é um dos pontos que distingue o digital dos outros meios, a possibilidade de interação direta com o público –, a maioria dos média adotaram uma postura de unilateralidade: “eu publico e vocês consomem, mas não estamos aqui para responder nem para interagir, sobretudo em tempo real”, critiica.

“Eventualmente, [os utilizadores] mandam para aqui os comentários e ficamos por aí, mas o tipo de envolvimento que as audiências online pedem é muito mais intensivo, instantâneo e interativo. Agora, temos um problema: é que isso exige uma grande disponibilidade por parte de quem está do lado de cá a produzir informação e nem sempre há essa disponibilidade”.

Um dos pontos que prejudica esta comunicação, segundo Hélder Bastos, é a falta de recursos nas redações digitais.

“Têm muito poucos jornalistas e os poucos que têm, na generalidade dos média, estão demasiado ocupados para poderem reservar um espaço para estarem num processo de interação constante com as audiências. Isso consome um tempo brutal. Então, a solução para a disseminação através de redes é publicar umas coisas de vez em quando e, eventualmente, responder a uma outra coisa e pouco mais”.

Embora alguns média tenham contratado gestores de redes sociais dedicados, tal ainda não é uma prática generalizada e um gestor sozinho não pode “fazer milagres”, afirma, assegurando que, por isso, ainda há uma margem de trabalho que “se pode fazer”.

Era do scroll: "ler um título" e seguir

A transformação dos hábitos de consumo da informação online tem sido igualmente uma preocupação para o jornalismo digital. Com a cultura de “instantaneidade”, aumentou a procura por conteúdos rápidos.

“Cada vez mais as pessoas têm menos paciência e menos tempo para consumir jornalismo lento, aprofundado e contextualizado, jornalismo que faça a diferença da ‘comida rápida’ que se dá constantemente nos sites. Por isso, as transformações que estamos a observar nos hábitos de consumo da informação online também não são propriamente estimulantes, porque muita gente se satisfaz com fazer ‘scroll’, parar num título, eventualmente ler um lead e seguir em frente”, exemplifica.

Hélder Bastos identifica esta transformação dos hábitos de consumo como “outro problema colateral à evolução do ciberjornalismo”.

“Se a maior parte das pessoas que consomem informação jornalística online se contentarem com títulos e leads, o jornalista tem um problema”, assume, já que tal pode levar a que os meios se questionem se vale a pena investir tempo e recursos na produção de conteúdos diferenciados e grandes reportagens multimédia, que exigem muito esforço e o envolvimento de web designers e programadores.

Sem uma solução para resolver este problema, defende que é importante encontrar maneiras criativas de envolver os leitores e incentivar um consumo mais aprofundado e reflexivo das notícias, através de novos formatos e estratégias de interação para captar a atenção do público e promover a valorização do jornalismo de qualidade. Encontrar soluções para esse problema é um desafio crucial para garantir a relevância e a sustentabilidade do jornalismo no mundo digital em constante evolução.

Qual o lugar da Inteligência Artificial no futuro do jornalismo?

Para Hélder Bastos, a Inteligência Artificial (IA) começa agora a ganhar mais visibilidade e o seu impacto no ciberjornalismo já começou também a ser discutido.

À Renascença, expressa preocupação de que a má utilização da IA possa ter efeitos negativos nas redações e alerta para o risco de os gestores poderem ver a automação como uma forma de reduzir custos, o que pode afetar ainda mais a qualidade do jornalismo.

“Já vimos ao longo da história tentações dessas: ‘se as máquinas fazem, não precisamos de massa humana’”, argumenta, salientando a dificuldade de antever o impacto que a IA pode vir a ter na produção jornalística.

Sem afastar a possibilidade de um futuro em que a IA seja amplamente utilizada na produção jornalística, destaca a importância de garantir que os jornalistas continuem a dar um toque humano à produção de notícias.

“Já estão a ser feitas notícias com parte de conteúdos gerados por máquinas (...) e se projetarmos isso num futuro não muito longínquo e não tivermos cuidado de assegurar que os jornalistas continuem a dar um cariz humano àquilo que é a produção jornalística, temo o pior.”

Perante o cenário de desinvestimento e de falta de inovação, nos próximos cinco a dez anos, Hélder Bastos antevê que a indústria do jornalismo e ciberjornalismo continue na mesma linha de estagnação e esclarece que será necessário mais do que apenas pequenas mudanças para reverter essa tendência, reiterando a necessidade de adaptação às mudanças nos hábitos de consumo do público e do investimento na produção de conteúdos de qualidade.

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