TikTok. De danças virais a instrumento de guerra

O TikTok é um assunto sério. Mais sério se tornou com o início do conflito armado na Ucrânia. As mudanças são palpáveis, acredita o moderador de conteúdos que a Renascença entrevistou. Depois de fevereiro, a plataforma jamais seria a mesma.

12 set, 2022 - 06:50 • Daniela Espírito Santo



Ilustração: Rodrigo Machado/RR
Ilustração: Rodrigo Machado/RR

Esta é a quarta de cinco partes do especial "Nos bastidores do TikTok. O trabalho traumático dos moderadores". Clique para ver todos os artigos.


Como acontece com todos os assuntos “que impactam a sociedade”, a guerra na Ucrânia também mudou o ecossistema do TikTok, pelo menos nas primeiras semanas.

“Mudaram os alinhamentos, o tipo de conteúdo que recebemos”, admite Manuel, moderador de conteúdos numa empresa que trabalha para aquela rede social, que a Renascença entrevistou. “Foi um grande acontecimento, tivemos um pico de comentários”, assegura. Esse pico de comentários sujeitos a moderação aconteceu logo na madrugada de 23 para 24 de fevereiro, data em que o exército de Putin entrou em território ucraniano.

Nessas horas, registou-se um incremento de três mil comentários a moderar face aos valores normalmente registados num dia dito normal. “Foi um grande, grande aumento”, diz Manuel. Para contexto, o anterior pico tinha sido registado no Dia dos Namorados.

As primeiras imagens da guerra também não tardaram a chegar. O pico da rede foi atingido três dias depois, no domingo seguinte, com as primeiras imagens do que se passava no terreno.

O conteúdo que inundou a rede social nessa altura era “bastante gráfico”, garante o moderador, que nos pinta um cenário caótico. Ouvimos na rádio, vimos no TikTok. “Pessoas mortas, a serem enterradas… mísseis a caírem em prédios, tanques a explodirem, pessoas a fazer cocktails molotov, a agarrarem em cãezinhos e a fugir…”, descreve.

Da Covid à guerra - contra informação no TikTok

Com o TikTok a servir de palco para todo o tipo de teorias da conspiração, a guerra está a dar trabalho aos moderadores que lidam todos os dias com aquilo a que chamam de “dangerous misinformation” (desinformação perigosa). Há muito disso: informações sobre a iminente invasão da Finlândia, da Moldávia e até uma declaração de guerra russa ao Canadá, com mísseis disparados à mistura.

A guerra que mudou o TikTok…

A mudança já se esperava: a aplicação, muito utilizada pelos mais jovens, é cada vez mais um veículo de partilha de informação rápida e já tinha dado mostras da sua versatilidade em episódios como o ataque ao Capitólio, nos EUA. Agora, no entanto, a app enfrenta o seu maior desafio. Ou não fosse esta “a guerra do TikTok”.

…que já tinha sido mudado pela pandemia

Manuel é perentório. A guerra mudou a rede social, mas a pandemia “afetou-nos mais”.

“A guerra está lá longe. A pandemia afetou-nos aqui, o nosso bolso, as nossas vidas”, relembra. Tal também se refletiu na rede social: há muito conteúdo relacionado com guerra, mas houve mais produção na pandemia, até porque “as pessoas estavam fechadas em casa e usavam bastante o TikTok”.

Apesar disso, a pandemia deu menos trabalho aos moderadores. “Em termos de conteúdo banido, áudios, comentários e vídeos…tudo aumentou” com a chegada da guerra, assegura. Os números dão-lhe razão.

A comunidade ucraniana em Portugal também usou a plataforma para manifestar apreensão com o que se passa no seu país. “Houve muito conteúdo de pessoas que tinham família na Ucrânia, preocupadas. Algumas que não conseguiram contactar a família, algumas a explicar o que aconteceu e a contar um pouco da história da Ucrânia”, diz. “Aprendi muito”, admite Manuel. Os russos anti-guerra também se manifestaram. “Não foi só guerra pura, imagens da guerra”.

Com as primeiras imagens surge também a desinformação. Em Portugal, tal levou a uma “trend paralela”, de pendor nacionalista, em que se exaltava Salazar. A invasão foi usada para muitos defenderem, na rede social, a necessidade de “sermos machos outra vez, de voltarmos a ser homens”.

Sempre que acontece “alguma coisa deste género” a linguagem usada na rede muda. “Muito nacionalismo, muito extremismo, muita xenofobia nos comentários”, explica Manuel.

“Nunca uma vala comum foi uma coisa tão banal”

Para Rui Lourenço, especialista em redes sociais, o termo “guerra do TikTok” até faz sentido. Mas extrapola: “Esta é a primeira guerra do Tiktok e das outras plataformas todas, como esta foi a primeira pandemia das redes sociais”.

Como acontece com outras plataformas similares, a rede tem sido e vai continuar a ser usada “para difundir conteúdos”. “Nem sempre verdadeiros, nem sempre corretos”, salienta, pois a rede social é “uma daquelas plataformas” em que, “mais importante do que contar a verdade”, “é ter visualizações, ter likes e partilhas”. “É isso que dá aos utilizadores a dopamina necessária para eles irem vivendo”.

É possível explicar uma guerra em vídeos rápidos? Rui Lourenço acredita que não. “A guerra serve, para algumas pessoas e em algumas plataformas, pura e simplesmente para terem likes. Nunca uma vala comum foi uma coisa tão banal”, exemplifica. “A forma como a guerra está a ser apresentada é quase como se fosse uma espécie de filme. E isso não dá uma consciência verdadeira às pessoas daquilo que devia ser a guerra. Este não é o caminho”, remata o especialista.

De imagens de gatinhos ao conflito iminente

Antes ainda da invasão do território ucraniano, a 24 de fevereiro, a plataforma já estava a mudar: de vídeos engraçados, danças virais e imagens de gatinhos, o feed principal do TikTok passou a ser povoado por conteúdos relacionados com o conflito iminente: informação sobre o dia-a-dia de influenciadores ucranianos a braços com a realidade da guerra, mensagens a favor e contra Vladimir Putin e apelos à ajuda internacional.

Imagens de mísseis a rebentar, edifícios destruídos e abrigos improvisados em estações de metro passaram a ser a realidade daquela rede social nos primeiros meses da guerra, sob o constante escrutínio dos moderadores de conteúdos.

Gradualmente, o tom mais humorístico e “light” voltou a dominar o algoritmo do TikTok, ainda que em piadas relacionadas com a guerra (a brasileira Globo chama-lhes os “influencers de guerra”), mas o discurso político e a informação mais séria e inflamada “Rússia vs Ucrânia” já faz, agora, parte do ecossistema.

TikTok como arma política

Quem governa não ficou indiferente ao poder da app: Zelensky apelou à ajuda dos tiktokers num discurso inflamado e Joe Biden reuniu com um grupo de “influencers” da plataforma para lhes explicar o conflito, em março.

Do outro lado da “barricada”, a Rússia introduziu uma lei “anti-fake news” que levou a plataforma a restringir a sua atividade naquele país a uma escala nunca antes vista: “é a primeira vez que uma plataforma social global restringe acesso a conteúdo nesta escala”, revela um estudo da organização europeia Tracking Exposed, que assegura que 95% do conteúdo da app simplesmente não aparece aos utilizadores em território russo. Basicamente, todas as contas não-russas ficaram indisponíveis, incluindo, ironicamente, a própria conta do Tiktok. O estudo mostra ainda que um conjunto de contas pró-guerra encontraram uma “brecha” para conseguir publicar propaganda, apesar de a plataforma ter bloqueado a possibilidade de criação de novo conteúdo na Rússia.

É aqui que a plataforma se torna num terreno fértil para desinformação, com informação falsa e vídeos retirados de contexto e/ou antigos a correrem pela rede social com demasiada rapidez, umas vezes por pura propaganda, outras para ganhar “gostos”.

Os números da guerra no TikTok

A 12 de abril, a plataforma revelou alguns números sobre o que andou a fazer desde 24 de fevereiro até 31 de março: uma equipa de segurança focada apenas na guerra na Ucrânia eliminou 41 191 vídeos, 87% por desinformação. Iniciativas globais de fact-checking analisaram mais de 13 mil vídeos, que levaram à inclusão de avisos em 5600 vídeos por falta de provas que corroborem a sua veracidade.

49 contas russas foram rotuladas como “controladas pelo Estado”. Seis redes e 204 contas internacionais foram identificadas e removidas por estarem a “coordenar esforços para influenciar a opinião pública” e a enganar os utilizadores quanto às suas identidades.

Centenas de milhares de contas falsas foram eliminadas de 24 de fevereiro a 31 de março na Rússia e 46 mil na Ucrânia. No entanto, a rede social diz que estes números se referem a todas as contas falsas eliminadas nesse período e não são todas necessariamente relacionadas com a guerra na Ucrânia.

Mas afinal… quem ganha a guerra no TikTok?

Esta guerra, do TikTok ou não, também é uma guerra informativa, mas está a ser vivida em tempo real a nível global e de forma muito visual… E, por isso, é importante perguntar: quem ganha esta guerra da narrativa rápida e da imagem fácil? Até ver, os ucranianos. “No TikTok, os ucranianos aparecem a quem vê não como vítimas distantes, mas como colegas cidadãos da web que usam as mesmas referências, ouvem as mesmas músicas e usam as mesmas redes sociais. O conteúdo dos vídeos e os espaços digitais onde são consumidos criam um sentimento de intimidade”, escreve a New Yorker.

A plataforma digital “The Media Manipulation Casebook”, do Shorenstein Center on Media da Universidade de Harvard, produziu um relatório onde indicava que, até 9 de março, os vídeos de TikTok com a hashtag #Ukraine (Ucrânia) na plataforma já acumulavam mais de 26,8 mil milhões de visualizações. A mesma hashtag no Instagram tinha 33 milhões de publicações associadas.

No final, uma coisa permanece constante nesta plataforma: aqui, a arma é o dedo que passa rapidamente para o vídeo seguinte. O conteúdo mais cativante vence este concurso de popularidade, quer seja uma dança viral, um gatinho a brincar ou uma guerra em direto.


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