Nova geringonça? "Ou o PS é o partido mais votado ou não há Governo de esquerda"

Eis o segredo mais mal guardado da política nacional: os partidos à esquerda do PS estão abertos a uma nova geringonça. Acontece que os protagonistas mudaram e os problemas do país também. O socialista Ivan Gonçalves defende que é pouco provável que exista uma maioria de esquerda se o PS não ficar à frente da AD. Jorge Costa, dirigente do Bloco de Esquerda, diz que “é necessário que os partidos iniciem um diálogo, um confronto de ideias, para apurar possibilidades de entendimento com que as pessoas podem contar”. João Oliveira, antigo deputado do PCP, levanta dúvidas quanto à inclusão do Livre e do PAN numa solução.

16 fev, 2024 - 06:30 • Fábio Monteiro , Susana Madureira Martins



Montagem: Rodrigo Machado/RR
Montagem: Rodrigo Machado/RR

É raro acontecer algo de inédito em democracia; as regras e alianças (formais e informais) do tabuleiro político estão, por norma, estabelecidas e, com o passar dos anos, tendem a cristalizar. Por isso mesmo, aquilo que aconteceu, em novembro de 2015, em Portugal, ainda causa espanto – até a alguns socialistas.

Passados 41 anos da queda do Estado Novo, António Costa rompeu com a “assimetria” de soluções governativas em Portugal: urdiu uma solução governativa à esquerda. Em 54 dias, com o apoio e consentimento do PCP, dos Verdes e do Bloco de Esquerda, transformou um segundo lugar nas urnas numa maioria de esquerda, e afastou Pedro Passos Coelho e Paulo Portas do poder.

Nasceu – a primeira e, até à data, única – “geringonça”: uma solução sem precedentes e com o cunho pessoal de António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa.

Volvidos quase nove anos, os protagonistas mudaram. Chegou o tempo de Pedro Nuno Santos, Mariana Mortágua e Paulo Raimundo. E a possibilidade de uma nova geringonça (porventura até com o Livre de Rui Tavares e o PAN de Inês Sousa Real), após a ida às urnas de 10 de março, está novamente em cima da mesa.

Com o intuito de antecipar uma reedição da solução de 2015 e analisar as circunstâncias que deram origem à solução original, a Renascença conversou com Ivan Gonçalves, deputado do PS e antigo líder da JS; Jorge Costa, ex-deputado e dirigente do Bloco de Esquerda; e João Oliveira, ex-deputado do PCP e cabeça de lista da CDU nas próximas eleições europeias.

Nenhum dos três afastou a possibilidade de um novo acordo à esquerda – mas deixaram recados e alguns encargos para futuro.


Foto: Mário Cruz/Lusa
Foto: Mário Cruz/Lusa

Estava escrito – e dito

Muito já foi escrito, desde 2015, sobre o nascimento da geringonça original. Na época, os partidos da coligação Portugal à Frente (PaF), que unia o PSD e o CDS-PP, queixaram-se de desonestidade. De que essa possibilidade nunca havia sido comunicada aos portugueses. No entanto, é justo dizer existiam sinais no ar.

A ideia de um acordo dos partidos de esquerda foi lançada para a praça pública por Rui Tavares, muito antes da ida às urnas, e António Costa nunca a rejeitou publicamente. (Há nove anos, o deputado e líder do Livre não conseguiu ser eleito – mas reteve os créditos da iniciativa).

Num debate televisivo, Catarina Martins foi direta: se o PS desistisse de três pontos do seu programa - congelamento de pensões, cortes na Taxa Social Única (TSU) e regime de despedimento conciliatório -, o Bloco veria nisso "um início de conversa" para viabilizar um Governo alternativo ao de Passos Coelho.

E já na noite eleitoral de 4 de outubro de 2015, depois de ser que claro que a coligação Portugal à Frente (PaF) vencera as eleições, mas sem maioria absoluta, Jerónimo de Sousa disse sem rodeios: “O PS só não forma Governo se não quiser.”

Ivan Gonçalves foi eleito deputado pelo PS, pela primeira vez, precisamente em 2015. E o socialista confessa à Renascença que, a princípio, pensou que a geringonça “não iria acontecer”, porque “a tradição” era de os partidos à esquerda do PS “darem sinal de que até podiam estar disponíveis para um entendimento, mas depois, na prática, seria sempre muito difícil, para não dizer impossível”.

O deputado do PS e antigo líder da Juventude Socialista, eleito por Setúbal, aponta como fator essencial da mudança a geometria política excecional de 2015, uma "coisa de que se fala muito pouco”. “Nunca tinha acontecido num passado recente que a área política do partido mais votado não tivesse uma maioria para governar.”

A geringonça original foi uma experiência “muito positiva”, “uma solução virtuosa”, e um período em que o Parlamento “teve uma centralidade acrescida”, defende.

“Não era possível a um partido, nem sequer a dois, fazer passar lei nenhuma, começando pela maior: o Orçamento do Estado. Isso exigia uma negociação permanente. Um aceitar de posições permanente. Mas é facto que também foi uma altura em que paradoxalmente se conseguiu muita estabilidade, foi a única legislatura destas últimas três que chegou até ao fim. E foi aquela em que se conseguiram grandes avanços sociais.”

À união ajudou, claro, que entre os partidos da esquerda parlamentar existisse um adversário comum: o Governo de Passos Coelho, “um Governo de muita austeridade”.

Algo que o dirigente do Bloco de Esquerda Jorge Costa (um dos negociadores da geringonça na época) também evidencia: “A geringonça foi a resposta dada para interromper um ciclo de devastação que era o da Troika, que era o do Governo de Passos Coelho e Paulo Portas, e repor níveis de dignidade na vida coletiva, no rendimento do trabalho, e terminar uma expolição das pessoas que estava a decorrer há demasiado tempo.”

Os protagonistas mudaram. E são mais

Uma afinidade pessoal não é, necessariamente, uma afinidade política. Mas por vezes ajuda.

Em 2015, António Costa (coadjuvado por Pedro Nuno Santos e Mariana Vieira da Silva) negociou a criação da geringonça com Catarina Martins e Jerónimo de Sousa.

Ora, o primeiro-ministro demissionário, é conhecido dos portugueses, sempre teve uma boa relação com Jerónimo de Sousa (“o parceiro fiável”). O facto de o pai, Orlando Costa, ter sido militante comunista terá, pelo menos, terá facilitado a empatia.

Quando Jerónimo saiu de cena no final de 2022, Costa fez mesmo questão de recordar: “Foi ele [Jerónimo] que deu o primeiro corajoso e decisivo passo que, em novembro de 2015, abriu as portas a uma nova relação na esquerda portuguesa”.

Com Catarina Martins, por comparação, a relação nunca foi tão forte. Ao longo da última década no Parlamento não faltaram alguns momentos de picardia política. Mas isso não boicotou a geringonça original.

Os protagonistas políticos, entretanto, mudaram – assim como os laços que os unem. Agora é Pedro Nuno Santos (mais próximo do BE que do PCP) que está no leme do PS. É Mariana Mortágua nos comandos do BE. E é Paulo Raimundo na frente do PCP.

Mais: o PAN de Inês Sousa Real e o Livre de Rui Tavares também dão sinais de abertura a uma futura geringonça.

Um facto que muitas vezes é esquecido e fica de fora da discussão é que a geringonça original nunca foi um acordo tripartidário. A geringonça consistiu em três acordos bilaterais do PS – com o BE, com o PCP e com os Verdes.

Numa futura geringonça, nos mesmos moldes de 2015, podemos, pois, estar a falar de cinco acordos bilaterais.

Jorge Costa, dirigente do BE, não antecipa nenhuma mudança substancial no entendimento dos partidos da esquerda parlamentar devido à mudança de líderes. “Mal estaríamos se as decisões políticas e a consciência das necessidades variassem consoante a maior ou menor proximidade entre pessoas e as relações individuais.”

Em todo o caso, admite que o BE sempre teve “uma relação de trabalho muito positiva com Pedro Nuno Santos”, enquanto o agora secretário-geral do PS teve a responsabilidade de servir de elo de ligação com os partidos da geringonça. “Foi sempre possível ter uma relação de cordialidade, de trabalho e frontalidade com Pedro Nunos Santos que permanece até hoje.”

O bloquista entende que, depois das eleições, “quanto mais ampla e mais forte for essa convergência [dos partidos de esquerda], melhor”. “O ponto não está na aritmética partidária, o ponto está na consistência das suas soluções. E na sua capacidade de agregar as diversas vontades e as diversas opiniões.”

Ivan Gonçalves, do PS, também não exclui nenhum partido da equação. Mas João Oliveira, antigo deputado do PCP, lança dúvidas sobre algumas das “opções” políticas do PAN e do Livre.

O PAN “tão depressa é força de apoio a um Governo da direita na Madeira, como nas eleições nacionais já faz um discurso diferente”. E o Livre que tem feito “uma colagem às posições do PS. Ou seja, o Livre defender as propostas que o PS faz não acrescenta muito às opções que o PS defende”.


Pedro Nuno Santos apresenta programa eleitoral do PS. Foto: José Sena Goulão/Lusa
Pedro Nuno Santos apresenta programa eleitoral do PS. Foto: José Sena Goulão/Lusa

O resultado necessário

Há nove anos, o PS conseguiu formar Governo, com o apoio dos partidos da esquerda parlamentar, mesmo tendo ficado nas urnas atrás da coligação Portugal à Frente (PaF).

Este é um cenário que é muito pouco provável que se volte a repetir, diz Ivan Gonçalves à Renascença. O socialista antecipa que, na conjuntura atual, “ou o PS é o partido mais votado ou não há Governo de esquerda”. Que é como quem diz: não há maioria de esquerda.

“Sem prejuízo desse Governo poder abarcar todos esses partidos, de existirem acordos com maior ou menor profundidade com todos eles. Acho que há disponibilidade do PS para tudo isso e ainda bem. Acho que esses muros que se derrubaram em 2015 não devem voltar a ser reerguidos. Agora pressupõe-se que o PS seja o partido mais votado. Se isso não acontecer em 2024, parece-me muito difícil que se possa reeditar qualquer solução de acordo à esquerda.”

Para o deputado do PS, o facto de, em 2024, os programas políticos do PS, BE e PCP serem muito diferentes não levanta qualquer problema. “Se nós voltarmos a olhar para programas dos partidos políticos de 2015 vamos encontrar tantas ou mais diferenças do que aquelas que encontramos hoje em dia. Portanto, base para negociar acho que existe. Base programática comum também existe.”

Jorge Costa, dirigente do Bloco de Esquerda, subscreve parte da mesma ideia. E considera que não interessa o que está inscrito no programa do PS neste momento.

“No dia seguinte às eleições vai ser necessário um programa de Governo que será diferente daquele que o PS está a apresentar. Como em 2015, o programa de Governo que sair de um entendimento feito à esquerda terá de ser resposta a estes problemas: na habitação, na saúde, nos salários. Essas são as dificuldades de sempre e são aquelas que o Bloco quer resolver, superar a partir de um programa de esquerda.”

Por uma questão de transparência, “sendo certo que não haverá nenhuma maioria absoluta nestas eleições”, o bloquista defende que “é necessário que os partidos iniciem um diálogo, um confronto das suas ideias, para apurar possibilidades de entendimento com que as pessoas podem contar”.

Os portugueses “não devem ser surpreendidos no dia seguinte às eleições, com políticas que não foram apresentadas e negociadas, pelo menos nos seus termos mais gerais, durante a campanha eleitoral”, sublinha.

Já João Oliveira, líder parlamentar do PCP e um dos negociadores da geringonça, reitera que as circunstâncias de hoje são “muito diferentes” e que “está desfeita a ilusão que o PS era o motor do avanço, que aquilo que se conseguiu entre 2015 e 2019 foi por causa do PS”.

“Pelo contrário, o PS durante aqueles quatro anos foi sempre uma força de resistência aos avanços que PCP e CDU procuravam que fossem concretizados. E estes dois últimos anos da maioria do PS confirmam precisamente isso. Ou seja, o PS tendo todas as condições na mão para levar mais longe aquelas medidas que foram sendo concretizadas, na verdade não o fez”, afirma o comunista.

Sem afastar a possibilidade de um novo acordo depois das eleições, João Oliveira diz que a questão determinante neste momento é “saber com que força sai a CDU das eleições para fazer a política necessária para aumentar os salários e pensões, reforçar o SNS, garantir o direito à habitação e uma escola pública de qualidade.”

Só assim será possível “confrontar o PS com essas soluções que o PS não quer, mas que são necessárias para a vida das pessoas”.

Falta menos de um mês para as eleições legislativas. A decisão quanto ao futuro Governo de Portugal está no voto dos portugueses.