A AD de 1979? Mais do que “apenas uma soma de votos para governar”

Há mais de quatro décadas, ainda nos primeiros passos da democracia em Portugal, António Bagão Félix, José Ribeiro e Castro e Basílio Horta fizeram parte da Aliança Democrática original. Então, “era uma aliança de projeto”, pretendia ser “mais do que uma soma aritmética de votos”. Para todos, é difícil estabelecer paralelismos com a coligação de Montenegro para as legislativas de 2024: mudaram as pessoas e as circunstâncias. “[Em 1979] havia oposição, mas uma oposição de ideias, de soluções para as questões de futuro do país.”

12 fev, 2024 - 09:00 • Fábio Monteiro



Montagem: Rodrigo Machado/RR
Montagem: Rodrigo Machado/RR

O recurso à nostalgia tem sempre um preço: ser comparado com a fonte de inspiração. Após ter decidido recuperar a marca Aliança Democrática (AD) – coligação histórica que, entre 1979 e 1983, agregou o PSD, CDS-PP, PPM e personalidades independentes -, Luís Montenegro herdou um encargo deste tipo.

É que, sim, a AD original – a princípio tutelada por Francisco Sá Carneiro e depois do desastre aéreo de Camarate, a 4 de dezembro de 1980, por Francisco Pinto Balsemão - foi uma solução vitoriosa. E sim, legou a todos os partidos que a integraram uma “marca com prestígio”.

Um cenário que chegou a estar cima da mesa, devido ao sucesso da coligação na época, foi a “institucionalização” da AD. Por outras palavras: a fusão a título definitivo do PSD (então PPD) e do CDS. Não fosse Camarate, era muito provável que tal tivesse acontecido, admitem antigos governantes da AD à Renascença.

Mas isso não quer dizer que, há mais de quatro décadas, tudo tenha ocorrido sem atritos, jogos de poder ou egos partidários. A marca AD vem com bagagem. Quem hoje se lembra como terminou a coligação em 1983? E as circunstâncias que a fizeram nascer?


Imagem de Francisco Sá Carneiro na sede do PSD de Évora Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR
Imagem de Francisco Sá Carneiro na sede do PSD de Évora Foto: Tomás Anjinho Chagas/RR

O arranque e a rutura

Em 1979, quando Francisco Sá Carneiro (PPD), Diogo Freitas do Amaral (CDS) e Gonçalo Ribeiro Telles (PPM) montaram pela primeira vez a AD, as circunstâncias políticas e as necessidades do país não podiam ser mais diferentes das dos dias que correm. Havia ainda reformas essenciais à democracia liberal por fazer.

Então, a AD foi criada com dois “grandes objetivos”. Primeiro: “A civilização do regime. Acabar com o conselho da revolução, com a comissão constitucional, criar um tribunal constitucional.” Segundo: “Fazer funcionar o mercado, corrigindo os excessos do 11 de março de 1975”, diz Basílio Horta, hoje autarca de Sintra pelo PS, mas à data filiado no CDS, à Renascença.

Basílio Horta, que foi ministro nos três Governos da AD original (79, 80 e 81), recorda a coligação como uma força agregadora “para fazer as mudanças que o país exigia”. Sá Carreiro chegou, inclusive, a abordar Mário Soares, que encabeçava o PS, para entrar na iniciativa. No entanto, o socialista recusou.

A AD surge como “uma aliança de projeto, não era apenas uma soma de votos para governar”, sublinha o antigo governante. “Havia um projeto imanente na AD que era realizado com um primeiro-ministro reformista [Sá Carneiro], um homem de coragem, e com um Governo muito competente, com gente muito competente.”

António Bagão Félix tinha 31 anos quando foi convidado por João Morais Leitão – futuro ministro dos Assuntos Sociais (1980) e ministro das Finanças e do Plano (1981). Advogado de formação e sem filiação partidária, assumiu a pasta de Secretário de Estado da Segurança Social (de 79 a 83) na AD.

“Vivi com muito entusiasmo e com muita utopia, o meu trabalho e o trabalho à minha volta. E o espírito da AD. Do meu ponto de vista, o que na altura senti foi que não era uma simples coligação enquanto soma aritmética de votos. A soma das parcelas não traduzia o novo espírito”, recorda.

Também nas palavras de José Ribeiro e Castro, ex-líder do CDS e secretário de Estado na AD, a coligação foi “uma união exemplar”. Mas tudo mudou com Camarate.

Com a morte de Adelino Amaro da Costa e Francisco Sá Carneiro, dois dos principais pivots da solução governativa, regressaram os interesses particulares.

“Quem faz morrer a AD é o desastre de Camarate. Uma vez que depois no quadro do PSD passou a ser vista apenas como uma coligação partidária clássica, e isso foi fragilizando o espírito, e acabaria por não haver forças para vencer as divergências que foram crescendo nos dois partidos. A coligação acabaria por se desfazer em 1982, 1983”, nota Ribeiro e Castro.

Além da matemática

A AD original foi a votos em dois momentos - nas eleições intercalares de 1979 e nas legislativas de 1980 - e, em ambos, ganhou com maioria absoluta: 45,26% (128 deputados em 250) e 47,59% (134 deputados em 250), respetivamente.

Ao nível matemático, a fusão de eleitorados foi benéfica tanto para o PSD como o CDS. Em 75 e 76, os social-democratas a solo haviam conseguido apenas 26,4% (83 deputados) e 24,4% (73 deputados) dos votos. Por sua vez, os centristas haviam começado com 7,6% (16 deputados) e depois escalado até aos 16% (42 deputados).

O processo de fusão entre os dois partidos na AD, ainda assim, não ocorreu sem solavancos. Dentro do PSD, houve “algumas resistências” na integração nas listas de candidatos de outros partidos, “tanto que Francisco Sá Carneiro implementou por fases, digamos, o projeto da AD”, recorda Ribeiro e Castro.

Num primeiro momento, o PSD chegou a aprovar uma coligação, mas com listas separadas. Mas depois, “na dinâmica do processo”, as listas fundiram-se. “As lideranças dos dois partidos eram muito fortes.”

“Se não tivesse havido listas conjuntas, bem, a AD teria perdido, não teria conseguido vencer a maioria de esquerda. E, portanto, não seria a marca de prestígio que hoje é. Teria ficado pelo caminho, teria fracassado, seria um episódio passageiro na história. Assim ficou uma grande marca”, conta Ribeiro e Castro.

A memória de Basílio Horta sobre a constituição das listas, em 1979, diverge da de Ribeiro e Castro. “Houve discussão, alguma discussão, sobre a presença do CDS e do PPM nas listas, mas tensão nenhuma. Pelo contrário, houve desde o princípio uma enorme solidariedade.  O dr. Freitas do Amaral e o dr. Adelino Amaro da Costa tinham uma solidariedade com o dr. Sá Carneiro enorme”, garante.


Líder da AD, Luís Montenegro, apresenta programa eleitoral.ladeado pelo presidente do CDS-PP, Nuno Melo (D), Foto: António Pedro Santos/Lusa
Líder da AD, Luís Montenegro, apresenta programa eleitoral.ladeado pelo presidente do CDS-PP, Nuno Melo (D), Foto: António Pedro Santos/Lusa

O caminho da “institucionalização”

Com ou sem atritos internos, é certo que AD “ganhou uma tal popularidade” que se tornou “um grande antídoto para quaisquer veleidades” unipartidárias. Aliás, após a vitória nas legislativas de 1980, começou a ser equacionada a ideia da “institucionalização” da coligação, “uma união permanente”, recorda Ribeiro e Castro. “Na direção do CDS era uma ideia bastante pacífica.”

A institucionalização “era um dos caminhos prováveis, justamente, porque diferenciação era quase formal, mas de substância não havia grande diferença”, lembra também Bagão Félix.

“Nunca senti a mínima aragem de diferenciação. Nós não distinguíamos se um ministro ou deputado era do PSD ou do CDS, ou era até do PPM, era mais que uma coligação, era uma unidade resultante da cooperação muito estreita entre a afinidade de dois partidos democráticos”, conta.

Mesmo quarenta anos depois, Basílio Horta diz-se “convencido” que, caso não tivesse ocorrido o desastre de Camarate, teria nascido “um grande partido centrista”, com duas alas, “uma centro-direita, outra centro-esquerda”.

A queda

Quando lançou a AD, Sá Carneiro desejava para Portugal “uma maioria, um Governo e um Presidente”. Contudo, a coligação nunca conseguiu o terceiro objetivo, e começou a ruir dias depois da morte do primeiro-ministro.

A 7 de dezembro de 1980, o candidato presidencial da AD António Soares Carneiro perdeu para António Ramalho Eanes. (Sá Carneiro havia prometido que se demitiria, caso o candidato da coligação não ganhasse as eleições – mas esse é um “se” que ficou para a história e especulação futura, devido às circunstâncias de Camarate.)

A morte do primeiro-ministro social-democrata “gerou um certo sentimento de orfandade”, mas Bagão Félix ainda pensou que o projeto da AD “pudesse prosseguir, embora com mais dificuldades”. Porém, surgiram sinais no sentido contrário.

Em 1982, o resultado da AD nas eleições autárquicas ficou aquém do esperado tanto para Freitas do Amaral como para Pinto Balsemão. A criação do Tribunal Constitucional – um dos objetivos originais da AD -, no mesmo ano, fez aumentar ainda mais o afastamento entre os parceiros políticos.

“Posso estar errado, mas nunca me pareceu existir uma deterioração no ambiente entre os dois principais partidos. O que houve foi alguma deterioração dentro de cada um dos partidos. Dentro do PSD e também dentro do CDS, houve fragmentações, lutas internas”, conta Bagão Félix.

O fim da AD foi “estranho”, admite o antigo governante. Nas legislativas de 1983, PSD, CDS-PP e PPM foram a votos já separados. E quem ganhou foi o PS de Mário Soares.

Novos rostos, novos objetivos?

É difícil comparar a AD original com a de Montenegro. As diferenças entre pessoas em destaque são muitas, assim como as circunstâncias. Esta opinião é consensual entre os três governantes que integraram a coligação original ouvidos pela Renascença.

Segundo Bagão Félix, os “tempos eram outros”, a AD “não se esgotava num determinado momento, estava a possibilitar e robustecer a ideia de um projeto que estava para além de umas eleições”. E a forma de fazer política era também diferente.

“Havia oposição, mas uma oposição de ideias, de soluções para as questões de futuro do país. Não tinha esta ideia que hoje existe que é muito maniqueísta. De um lado está o bem, do outro está o mal. De um lado é tudo certo, do outro é tudo errado. As pessoas fazem um cardápio de culpas. Não era a política para o dia seguinte, era a política mais para o futuro, para as gerações seguintes. Era um debate saudavelmente ideológico, aliás, saudavelmente doutrinário, isto também me entusiasmava”, nota.

Basílio Horta repete a mesma ideia: os “tempos são outros, as necessidades são outras”. O hoje autarca pelo PS em Sintra traça uma “grande diferença” entre as duas AD: “Nem é tanto a qualidade das pessoas, porque isso é muito subjetivo, mas é uma coisa: a AD inicial era uma coligação de projeto, agora é uma coligação de Governo. São coisas um pouco diferentes. Agora a AD é feita para somar votos e aumentar a participação no Parlamento, o que é legítimo, perfeitamente. A nossa AD era de projeto, era um projeto reformista, transformador, em matérias essenciais da democracia liberal.”

Dos três ex-governantes, José Ribeiro e Castro é único a estabelecer uma fasquia para a AD de Montenegro. Com as eleições de 10 de março no horizonte, defende que é importante a nova AD ter um objetivo “claro”: “vencer a maioria de esquerda”.

“Muitas vezes fala-se em vencer as eleições, no sentido de ficar à frente. Isso é pouco. Sempre chamei à atenção, e em 2015 tornou-se claro: ‘não chega ser o mais votado’. Aliás, nunca chegou. O que é importante é que o espaço político em que as nossas forças políticas se enquadrem tenha maioria, ou seja, o primeiro objetivo no meu entender é vencer a maioria de esquerda. Isto é: que triunfe uma maioria à direita do PS e dentro dela que a AD seja uma força claramente liderante. É isso que interessa. Mas ficar à frente sem que haja uma maioria do seu lado não serve para nada.”


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