A globalização da indiferença: “Como pensar nos direitos dos outros, quando os próprios não estão assegurados?”

Há problemas aos quais ninguém se pode dar ao luxo fechar os olhos. Porém, cada vez mais é isso que acontece. Há milhares de mortos - migrantes no Mediterrâneo, vítimas da guerra Israel-Hamas e na Ucrânia – que existem apenas numa região longínqua da consciência portuguesa. A crise climática esperneia, mas não gera ação dos atores políticos. O jornalismo está estrangulado e o país vai a eleições legislativas. Fazem falta "ideologias” que “amarrem as diferentes dimensões da intervenção pública”.“É muito fácil alguém tornar-se um ativista de uma causa qualquer, mas ser indiferente a tudo o resto”, alerta o filósofo André Barata.

27 dez, 2023 - 07:45 • Fábio Monteiro



Operação de resgate em Gaza. Foto: Reuters
Operação de resgate em Gaza. Foto: Reuters

A indiferença tem muitos rostos. Opera como um vírus silencioso, uma “pandemia” que espalha raízes na mente – sem deixar provas do crime. E é tanto um privilégio (conseguir ignorar um problema) como uma forma de cegueira (esquecer que um problema distante existe).

É possível – e fácil – encontrar sintomas deste vírus em Portugal. Mas isso não quer dizer que se trate de uma “singularidade cultural” nacional. A apatia, o desligamento face à situação do outro, “é um problema do nosso tempo”, diz o filósofo e professor universitário André Barata, à Renascença.

No século XX, Jean-Paul Sartre, na obra "O Ser e o Nada", discorreu sobre o fenómeno da indiferença. Definiu-o como uma “atitude do sujeito face aos outros em que os toma como entes meramente instrumentais, como se só tivessem uma dimensão objetiva."

Em 2023, é algo distinto: “Um estado de não se deixar mobilizar pelos acontecimentos do mundo.”

Um dos traços da indiferença contemporânea é a “tentativa de redução da presença do outro diante de mim”.

“É um pouco como se houvesse uma intolerância ao outro. Isso vê-se de maneiras claras na forma como nos relacionamos com as redes sociais, colocamos filtros entre nós e outro. Só aceitamos estar diante do outro através de um avatar ou através de um filtro”, argumenta o filósofo.

Outro traço é a “dissociação” – a dois níveis: emocional, se uma pessoa perante “a evidência científica” não é motivada a agir; ou racional, no discurso das redes sociais, quando uma pessoa “prescinde de qualquer compromisso com a verdade”.

Na opinião do filósofo, faltam à sociedade de hoje “ideologias” que “amarrem”, numa só narrativa, “as diferentes dimensões da intervenção pública”.

Daí, cada vez mais pessoas (portugueses, inclusive) mobilizarem-se por causas singulares. “Não sei se voltaremos a ter ideologias como tivemos no passado, mas alguma coisa deveríamos ter”, defende.

“É muito fácil alguém tornar-se um ativista de uma causa qualquer, mas ser indiferente a tudo o resto. A história política recente está cheia disso. Uma pessoa ativista racial está muito pouco preocupada com a luta de classes ou com a questão de desigualdade de rendimento. Ou a questão de género. Cria uma espécie de má-fé. Sou tão ativista nisto que já não devo nada ao mundo, não tenho que me preocupar com mais nada”, alerta André Barata.

Há problemas, pois, aos quais ninguém – nenhum português - se pode dar ao luxo de ser indiferente.


Criança ferida num hospital no sul de Gaza. Foto: Haitham Imad/EPA
Criança ferida num hospital no sul de Gaza. Foto: Haitham Imad/EPA

Lá longe: a guerra Israel-Hamas

A distância favorece a desumanização: isso é evidente na apatia face ao número de mortos da guerra Israel-Hamas – em quatro semanas, o conflito gerou mais mortos que 20 meses de guerra na Ucrânia.

Desde o dia 7 de outubro, data do ataque terrorista perpetrado pelo Hamas que espoletou esta fase do conflito, perto de 1.200 israelitas perderam a vida. Dos 250 reféns capturados, mais de uma centena ainda não foram libertados. Segundo o Hamas, em pouco mais de dois meses, cerca de 20 mil palestinianos, entre os quais oito mil crianças, perderam a vida.

António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, já apelou a um cessar-fogo. “As hostilidades causaram um número de mortos que chocou o mundo”, alertou.

Mas sem sucesso.

“A indiferença é a essência da desumanização.” Estas palavras aparecem num dos quadros da artista e ativista Rita Andrade. A jovem portuguesa já fez duas exposições em prol da causa palestiniana, a última das quais, “Identity & Land”, na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, ainda em agosto deste ano.


Quando se apoia a causa palestiniana, é comum ser-se acusado de antissemitismo, “como se apoiar os direitos humanos de um povo fosse ser contra outro povo, outra religião”. Para Rita, isso não é verdade. Assim como Elie Weisel, escritor judeu, que sobreviveu ao Holocausto, a ativista acredita que “o silêncio em situações de injustiça só beneficia o opressor”.

Dos 20 mil palestinianos mortos, “a maioria são crianças. Não desvalorizando qualquer vida perdida do lado de Israel, também não podemos desvalorizar as vidas perdidas na Palestina. A vida de um palestiniano não vale menos que a de um israelita, nem que um português. É nisso que eu acredito: na igualdade e direitos humanos para todos”, explica.

Como o conflito não tem data para terminar, Rita receia que daqui a alguns meses se deixe de falar na Palestina, que fique outra vez num vazio completo naquela região, e que isso resulte em mais anos de opressão”.

“Vejo tantas imagens de crianças mortas que já começa a ser normal na minha cabeça - isto é horrível. Vejo uma criança cheia de sangue na cara, em Gaza, e para mim já é o normal. Não posso deixar que isso me faça acomodar e desvalorizar. É muito egoísta só querer saber das coisas no momento”, aponta.


Corpos de migrantes dão à costa na Sicília. Foto: Max Firreri/EPA
Corpos de migrantes dão à costa na Sicília. Foto: Max Firreri/EPA

A crise dos migrantes: o pior ano desde 2018

Com a guerra na Ucrânia, o conflito Israel-Hamas, a crise dos migrantes do Mediterrâneo foi um pouco relegada ao esquecimento este ano. Mas isso não quer dizer que o drama no mar que banha o sul da Europa tenha cessado ou abrandado. Muito pelo contrário.

De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), até ao final de novembro, pelo menos 2.480 pessoas morreram ou desapareceram a tentar chegar à Europa; 2023 foi mesmo o ano mais mortal de que há registo desde 2018.

Este verão, de visita a Marselha, o Papa Francisco alertou para “uma cultura de globalização da indiferença” que “vai ensanguentando o Mediterrâneo”. “Perante uma tragédia destas, não servem as palavras, mas sim as ações”, sublinhou o líder da Igreja Católica.

Mas como é possível reagir quando o problema está lá tão longe? Pedro Pedrosa, ativista e membro do coletivo Humans Before Borders, (HuBB), recusa visões maniqueístas. “Temos um país que faz bastante voluntariado”, em que “não há indiferença para os problemas comunitários”, entende.

Mas também comenta: “Se as pessoas têm de trabalhar até às oito, nove, dez da noite, será que têm tempo para pensar noutras atividades, será que têm tempo para pensar nos direitos dos outros, quando os seus próprios direitos não estão assegurados?”

Existe uma dificuldade em chamar a atenção dos portugueses para temas fora da sua bolha social. “Exige um ativismo de quase remar contra a maré. De querer chamar à atenção para a comunidade que está completamente a leste destes problemas.”

“No Mediterrâneo, temos pessoas a morrer todos os dias e nós continuamos indiferentes. Quando foi aquele caso do miúdo [Aylan Kurdi] na Turquia, em que vimos um agente a pegar nele, já morto, na praia, todos ficámos chocados. Mas a questão é que temos 10, 20, 30 miúdos desses, todas as semanas, em todas as praias no Mediterrâneo. Isso é uma imagem constante”, atira.

Para o ativista, a indiferença (em relação a todo o tipo de temas) “depende sempre, em parte, da comunicação que as pessoas recebem”: função que compete aos “líderes políticos”, mas, acima de tudo, “às televisões, às rádios, aos jornais”.

Acontece que colocar o ónus nos meios de comunicação pode também, em parte, ser ambicioso, tendo em conta o contexto nacional.


Grupo Global Media anunciou despedimento coletivo de 200 profissionais. Foto: Global Media Group
Grupo Global Media anunciou despedimento coletivo de 200 profissionais. Foto: Global Media Group

A crise no jornalismo

O jornalismo português está em crise já há algum tempo. Mas fora dos corredores do setor, além de uma manifestação ocasional de solidariedade e “preocupação” do Governo, pouco se fala sobre isso.

As estatísticas dizem que a média dos salários é baixa e que uma fatia significativa dos profissionais está em burnout. Da parte do poder político, à exceção do PAN e Bloco de Esquerda, há um desapego que roça a indiferença.

Luís Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas, não sabe dizer se os portugueses são alheios às vicissitudes económicas e profissionais do jornalismo. Mas avisa: “Um dia sem notícias seria uma catástrofe para um país. E acho que as pessoas ainda não se deram conta disso.”

“Creio é que, por vezes, a sociedade não percebe a importância que o jornalismo tem para uma saudável democracia. Essa importância, e é por isso que é até uma profissão consagrada na Constituição, é porque está ali um reduto da verdade. E não sei se as pessoas já deram conta que cada vez mais a desinformação está a ganhar terreno, cada vez são mais brutais os investimentos na desinformação”, explica ainda.

Se existissem dúvidas sobre o estado do jornalismo em Portugal, o despedimento coletivo em curso de cerca de 200 profissionais no grupo Global Media – que detém os jornais Diário de Notícias, Jornal de Notícias, Açoriano Oriental, Jogo, e ainda a rádio TSF - trouxe o problema à tona.

O presidente do Sindicato dos Jornalistas sublinha que a Global Media “é detentora de órgãos que são importantíssimos na história do jornalismo português” e diz ainda não conseguir imaginar a rádio TSF, a título de exemplo, a funcionar com menos 30 profissionais, corte previsto no âmbito da reestruturação do grupo.

O poder político tem, por isso, de encontrar formas “de defender” o jornalismo. “É agora, ou depois pode ser tarde de mais”.

Aliás, tendo em conta que o país vai a eleições legislativas em breve, é do próprio interesse nacional – pelo menos, na teoria – agir.

“Os momentos eleitorais são os momentos em que a desinformação mais tenta levar as pessoas a um determinado sentido de voto. E estes são os momentos em que os jornalistas devem responder, para que as pessoas, quando vão pôr uma cruz no boletim de voto, tenham a plena consciência de quem propõe o quê e quem fez o quê”, lembra Luís Simões.


António Costa no conselho europeu que desbloqueou abertura de negociações para adesão da Ucrânia Foto: Olivier Matthys/EPA
António Costa no conselho europeu que desbloqueou abertura de negociações para adesão da Ucrânia Foto: Olivier Matthys/EPA

Em vésperas de eleições

Em política, o rosto mais conhecido da indiferença é bem conhecido: chama-se abstenção. É o voto que nunca chega a ser preenchido, que não entra na urna. É a vontade não contabilizada de um português.

Este não é um dilema teórico. No próximo dia 10 de março de 2024 há eleições legislativas.

Com uma ida às urnas no horizonte, podem os portugueses dar-se ao luxo se de serem indiferentes? “Há algumas razões para não deverem, talvez. Mas poder podem sempre, e suspeito que muitos vão ficar, e se calhar também há razões para isso”, ajuíza André Azevedo Alves, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica.

As próximas eleições “vão ser particularmente importantes”: devido à saída de cena (antecipada) de António Costa, representam o “fim de um ciclo de governação” do PS. Aliás, mesmo que o Partido Socialista de Pedro Nuno Santos ganhe “será sempre um ciclo muito diferente”.

“Uma parte substancial dos cenários [pós-eleições] que se podem colocar são de instabilidade”, nota André Azevedo Alves. Qualquer português que se “preocupe” com o futuro do país terá, pois, terá de se inquietar “com as próprias eleições”.

Em todo o caso, talvez não baste o voto dos portugueses para serenar o caos político. “Se tivermos menos abstenção, mas tivermos mais fragmentação [dos votos] que não possibilite maior estabilidade, a menor abstenção não vai resolver nada”, lembra.

Na opinião de André Azevedo Alves, em 2024, a letargia eleitoral tanto pode favorecer o Partido Socialista como o Chega (à direita), e o Bloco de Esquerda e PCP (à esquerda). Se os portugueses optarem pela via da “apatia”, pensarem “as coisas estão más, são como são, e não há muito a fazer”, o PS pode “minimizar danos eleitorais”. Mas se quiserem protestar, os eleitores podem fugir para partidos de extremos - dos respetivos eixos políticos.


Ativistas da Climáximo em ação de protesto. Foto: Miguel A. Lopes/Lusa
Ativistas da Climáximo em ação de protesto. Foto: Miguel A. Lopes/Lusa

Apatia climática

A crise climática é real e, por mais que Elon Musk sonhe, não há (ainda) um planeta B. Neste tópico, há pouca margem para discussão, abundam as evidências científicas. O problema é a apatia.

Para contrair esse fenómeno, Leonor Canadas, ativista e membro da Climáximo, diz que a crise climática deve ser entendida como uma “declaração de guerra à vida, como um ato de violência extrema”.

Apesar de ainda existir a "necessidade de informar mais pessoas", a ativista acredita que os portugueses já ultrapassaram a fase do "não querer saber" ou "não estarem preocupados com a crise climática".

Dados do último Eurobarómetro indicam que 92% dos portugueses classifica a crise climática como uma das suas maiores preocupações.

Existe, contudo, “uma certa indiferença que vem do sistema político, do sistema económico-financeiro que está a provocar esta crise climática. Estes agentes dependem desta falsa sensação de paz social para manter intocáveis as estruturas que estão a produzir e lucrar com esta crise", acusa Leonor.

A ativista defende que é necessário “desconstruir o discurso de que as pessoas não querem saber”. “A crise climática é um ato de violência extrema.” É um ato “coordenado e premeditado, porque é conhecido há várias décadas, mas mesmo assim Governos e grandes empresas continuam a reunir-se para fazer acordos para estender esta crise e adiar uma transição energética justa”, nota.

No passado dia 12 de dezembro, a COP28 – Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas encerrou com “um acordo histórico para o colapso humanitário”, entende a ativista. “Foi referido como um acordo histórico, mas é um acordo histórico para o colapso humanitário. Até o próprio líder da Arábia Saudita disse, logo no dia seguinte, que esse acordo não afeta de todo a capacidade do país de vender petróleo.”

Em 2024, algo terá de ser feito. Alguém terá de fazer alguma coisa. Até porque, Leonor lembra: "A indiferença mata".