Só 1% dos contratos entre setor público e escritórios de advogados foram por concurso público

Nos últimos três anos, o Estado e o setor público contrataram 92 milhões de euros em serviços jurídicos a escritórios externos. Uma análise dos dados do portal Base revela que os ajustes diretos são a modalidade escolhida para oito em cada dez contratos. Apenas em 25 contratos de um universo de 2.551 foram feitos por concurso público. Banco de Portugal e Câmara de Lisboa são quem mais gasta. A sociedade Vieira de Almeida é quem mais recebe. Esta é uma das partes do especial Renascença, "O império do ajuste direto".

14 mar, 2023 - 07:00 • João Carlos Malta (texto), Diogo Camilo (dados), Rodrigo Machado (grafismo e animação), Ricardo Fortunato (vídeo)



 Imagem: Rodrigo Machado/RR
Imagem: Rodrigo Machado/RR

Entre os anos de 2020 e 2022, o Estado e o setor público - que engloba autarquias, entidades públicas, ordens profissionais, etc - fizeram 2.551 contratos de serviços com escritórios de advogados, mas desses apenas 25, ou seja 1%, é que foram feitos através de concurso público.

É ainda possível concluir que o ajuste direto - modalidade da contratação pública em que quem quer um serviço pode escolher diretamente o fornecedor sem recorrer ao mercado - vale 80% do número de contratos, num total de quase 70 milhões de euros.

A análise feita pela Renascença aos dados que constam do Portal Base permitiu ainda hierarquizar as autarquias, as entidades públicas que mais gastam com serviços jurídicos e os escritórios de advogados que mais ganham nas relações com o setor público. As contas dos três anos somados dão um custo para o erário público que pode chegar aos 92 milhões de euros na contratação de advogados e juristas.


Segundo alguns dos especialistas ouvidos pela Renascença, os números revelam que pelo menos a concorrência está altamente comprometida na relação entre o setor público e advogados, e que a transparência pode também ficar eventualmente lesada.

Ao olharmos para as autarquias, percebemos que em 77 contratos, a Câmara de Lisboa, entre 2020 e 2022, gastou quase 2,3 milhões de euros e lidera o ranking.

o Banco de Portugal (BdP) gastou cinco vezes mais, num total de 11 milhões de euros, no mesmo período. Deste valor, 99% foi em contratos por ajuste direto. No tempo analisado, o BdP celebrou 23 contratos com escritórios de advogados.

A sociedade Vieira de Almeida foi quem mais faturou nos últimos três anos, num total de 9,3 milhões de euros, muito por causa dos contratos que estabeleceu com o Banco de Portugal. Deste valor, a quase totalidade, 97%, resulta de ajustes diretos.


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"O ajuste direto, obviamente que constitui de certa forma um entorse a esse princípio da concorrência, porque permite à entidade pública escolher diretamente quem vai contratar", Miguel Prata Roque, ex-secretário de Estado da Presidência.

Mas se o critério de análise for o do número de contratos com entidades do setor público, é a Sérvulo quem conquistou mais clientes neste universo: num total de 145 contratos. Esta sociedade faturou 6,2 milhões de euros, sendo que dois terços do valor são ajustes diretos.

A Morais Leitão fecha o lote de três escritórios que mais faturam. Foram 88 contratos em três anos com o setor público no valor de três milhões de euros.

O tema dos ajustes diretos entre escritórios de advogados e setor público foi de novo alvo de mediatismo quando, no início do ano, a Sociedade de Advogados Sousa Pinheiro & Montenegro (SP&M), de que Luís Montenegro foi sócio-fundador, obteve, desde 2014 até janeiro de 2022, um total de 15 contratos por ajuste direto de entidades públicas no valor de cerca de 679 mil euros, dez dos quais com as Câmaras de Espinho e Vagos lideradas pelo PSD.


Explicador: O que é um ajuste direto?

As regras de contratação pública preveem, grosso modo, três grandes formas para adquirir serviços: o concurso público aberto a todos os agentes do mercado, a consulta prévia que prevê a auscultação de pelo menos três prestadores de serviço, e o ajuste direto em que quem contrata escolhe diretamente quem quer para executar o trabalho.

Nos ajustes diretos, há ainda uma nuance. Até aos 20 mil euros, o Estado e o setor público podem fazer contratos sem terem de prestar qualquer justificação, acima desse valor é necessário que expliquem o porquê de não lançaram uma a consulta prévia ao mercado ou concurso público.

A lei prevê exceções para agilizar a contratação, mas dá prioridade ao recurso ao mercado.


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"O ajuste directo é predominante para estes serviços e para todos [no setor público]. Está numa ordem de utilização dos 70% na contratação de alguns serviços", Licínio Martins, membro do Conselho Superior da Magistratura.

Uma das razões que comummente mais são utilizadas para justificar a necessidade de recorrer a um ajuste direto é o de responder a uma necessidade premente. No entanto, a média de duração dos contratos de ajuste direto são 441 dias, ou seja, um ano e dois meses.

Ajuste direto: “Uma entorse à concorrência”

O ex-secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros do primeiro governo de António Costa e professor de Direito da Universidade de Lisboa, Miguel Prata Roque, começa por dizer que a contratação pública vale 14% do PIB europeu, e que, como representa um volume de negócios tão significativo, houve preocupação por parte da União Europeia em “garantir transparência” nos processos de contratação.

Prata Roque considera que o concurso público é o modelo “para garantir que se conseguem baixar os preços através de concorrência entre várias empresas, neste caso entre vários escritórios de advogados e que se garante também a escolha da melhor proposta”.


Miguel Prata Roque, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Miguel Prata Roque, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

E que, por isso, o “ajuste direto constitui, de certa forma, uma entorse a esse princípio da concorrência, porque permite à entidade pública escolher diretamente quem vai contratar”.

No entanto, não fica surpreendido com os resultados a que Renascença chegou e admite que há razões para que o ajuste direto tenha um peso tão grande. “Todos nós sabemos que o procedimento de contratação pública é muito longo, muito demorado e isso pode obviamente, prejudicar o interesse público, ou seja, o interesse de todos nós contribuintes”, concede.

E por isso, segundo Prata Roque, o legislador criou a figura do ajuste direto. Precisamente pelo reconhecimento da demora do procedimento de contratação e, assim, quando em causa estejam valores muito baixos, flexibiliza-a.

Este especialista, mesmo ressalvando que o ajuste direto não representa necessariamente uma ilegalidade, se for bem decidido, diz que, na prática, “o problema é que nós sabemos que é através dele que se cometem crimes como a corrupção ativa e passiva, o tráfico de influências, o recebimento indevido de vantagens e a prevaricação”.


Porquê? “Porque se o titular do órgão administrativo pode escolher diretamente, sem alternativas, determinada entidade. Isso acontece aqui em matéria de serviços jurídicos, como em qualquer outra contratação. Há um risco acrescido e compromete a transparência”, responde.

“Há vários casos de relação próxima entre quem contrata e quem é contratado, que são reveladoras da falta de imparcialidade por parte de quem contrata. Ora, esse rigor ético por parte daqueles que exercem cargos públicos é essencial para que nós possamos confiar que o nosso dinheiro enquanto contribuinte se está a ser bem gerido”, acrescenta.

Sem surpresas

Já Licínio Martins, professor de Direito da Universidade de Coimbra e membro do Conselho Superior da Magistratura, também considera que, quem conhece a forma como o Estado e o setor público se relacionam com os fornecedores de serviços, não estranha que mais de 70% dos contratos sejam por ajuste direto.


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"O problema é que nós sabemos que é através do ajuste directo que se cometem crimes como a corrupção ativa e passiva, o tráfico de influências, o recebimento indevido de vantagens, ou a prevaricação" Miguel Prata Roque.

É predominante neste tipo de serviços e em todos”, afirma Licínio Martins. Argumenta que este é um facto que resulta da falta de meios da maior parte do setor público, com especial destaque para as autarquias, em que a falta de juristas leva a que se tenha de contratar no mercado. Se não o fizessem, explica, levaria a que houvesse mais prejuízos para o erário público.

“Com o ajuste direto, a entidade adjudicante consegue arranjar no espaço de dias alguém que a assista e resolva a questão”, explica.

O especialista em Direito Administrativo lembra ainda que, antes da chegada da troika a Portugal, o teto para os ajustes diretos era de 75 mil euros. Mas entendeu-se que era uma modalidade demasiado utilizada, e tentou-se controlar o uso com a redução dos limites máximos.


Foi puramente estatístico, político, não há uma razão impositiva. Foi para tentar que se utilizasse menos ou pelo menos se reduzissem os montantes”, relembra.

Já em relação à transparência e à possibilidade de a mesma estar comprometida, o especialista diz que o dever de justificação que as entidades estão obrigadas na escolha é um garante suficiente.

Um em cada quatro contratos são ajustes superiores a 20 mil euros

Olhando de novo para os dados recolhidos pela Renascença, no Portal Base, revelam que os contratos de ajuste direto que necessitam de justificação, ou seja, de valor superior a 20 mil euros, valem quase 51 milhões de euros. Ou seja, mais de metade do valor total.

Um em cada quatro contratos são assinados com recurso a ajuste direto superior ao que a lei determina, justificando-o as exceções que a lei contempla.


A autarquia liderada por Carlos Moedas é a que mais gasta com serviços jurídicos. Optou por não responder às questões da Renascença. Foto: Andre Kosters/Lusa
A autarquia liderada por Carlos Moedas é a que mais gasta com serviços jurídicos. Optou por não responder às questões da Renascença. Foto: Andre Kosters/Lusa

Os 92 milhões de euros gastos em serviços jurídicos em três anos não surpreendem Licínio Martins. “Só municípios, temos 308”, adverte.

A Renascença enviou perguntas para as entidades do setor público, às 10 autarquias que mais contrataram serviços jurídicos e aos 10 organismos públicos que mais externalizaram estes contratos, e recebeu 15 respostas (pode ler como justificam em detalhe estas organizações a opção pelo ajuste direto aqui).

Todas sem exceção reclamam a legalidade da opção que tomaram, e de forma genérica invocam duas exceções previstas no Código de Contratação Pública.

O artigo 24.º que permite o recurso àquele tipo de procedimento por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis, que impossibilite o cumprimento dos prazos inerentes.


E o artigo 27.º que exceciona o cumprimento do teto de 20 mil euro quando a natureza das prestações seja qualificada como a serviços de natureza intelectual, e não permita a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas (quer na modalidade da melhor relação qualidade-preço, quer na modalidade na avaliação apenas do preço, enquanto único aspeto de execução do contrato a celebrar).

Licínio Martins garante que são argumentos que colhem em muitas das situações que conhece. Afirma que é frequente que as partes não saibam antecipar qual o valor do contrato. Sabem somente que trabalho a “x” à hora, argumenta. “Agora, quantas horas é que vai gastar durante três ou quatro meses ou porventura durante dois ou três anos, isso não se consegue antecipar”, adverte.

Para verificar a legalidade ou não dos contratos, Prata Roque diz que era necessário perceber se os serviços jurídicos prestados são ou não tão específicos que só justificam a contratação de determinado escritório de advogados.


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"A entidade não sabe antecipadamente quanto vai pagar. E do outro lado, não se sabe quanto tempo é que vai investir. Não há um preço antecipado. Por isso, como é que vou lançar um concurso público?, questiona Licínio Martins.

“Imagine, por exemplo, que se está a tratar uma questão muito complexa no plano, por exemplo, do direito da energia ou do direito das águas ou, por exemplo, em matéria urbanística e há um determinado advogado que é especialista naquela área, que fez uma tese de doutoramento naquela área, que é reconhecido como um dos melhores profissionais. Esse pode ser um fator que explique de facto a contratação do escritório de advogados em função precisamente dessas características”, começa por argumentar.

Mas o mesmo já não acontece, no entender o professor da FDUL, no caso de serviços jurídicos indiferenciados.

“Se, por exemplo, a contratação for para executar dívidas por via de não pagamento de taxas por parte dos munícipes, qualquer escritório de advogados, qualquer advogado, à partida, está em condições de prestar esse serviço. Não há ali nenhuma especialidade técnica”, explica.

Vieira de Almeida e Sérvulo dominam

Ao olharmos para o top-10 das entidades que mais contratam serviços a escritórios de advogados, é liderado pelo Banco de Portugal (11 milhões de euros), que é seguido da Autoridade Nacional de Comunicações, a uma grande distância, com contratos no valor de 1,3 milhões de euros. O pódio fecha com o Banco de Fomento com 1,25 milhões de euros.


Analisado o caso da instituição liderada pelo governador Mário Centeno e tentando explicar estes valores, Prata Roque diz que, “não querendo brincar com coisas sérias, em primeiro lugar, justifica-se porque o Banco de Portugal tem muito dinheiro”.

O Banco de Portugal, explica este professor de Direito, está inserido no sistema europeu de bancos centrais, é uma entidade que tem um especial estatuto de autonomia e Independência relativamente ao Governo português, blindada pelas autoridades internacionais.

A concorrer para os valores de milhões gastos em escritórios de advogados, ocorreram vários episódios no setor financeiro, que vão da falência do BES, à falência do BPN e BPP, que gera um contencioso “exorbitante”.


“Estamos a falar de entidades que têm muito poder económico, muito poder financeiro e muito poder político. Refiro-me aos grandes grupos financeiros e bancários e, portanto, quando estes grupos litigam em tribunal, contratam os melhores especialistas. Os melhores escritórios de advogados recorrem a pareceres de jurisconsultos e de professores de direito. E inserem cláusulas em contratos internacionais que preveem a convocação de arbitragens e não de tribunais estaduais. Portanto, esse grau de litigância envolve, de facto, custos muito exorbitantes”, admite.

No entanto, o ex-secretário de Estado revela que “é com algum espanto que vejo, por exemplo, em matéria regulatória ou em matéria contraordenacional, que o Banco de Portugal não disponha de recursos jurídicos próprios, de forma a dispensar a contratação de entidades externas”.

Este especialista considera que isso pode levar a "uma certa promiscuidade e um certo risco de imparcialidade do próprio Banco de Portugal”.


O Banco de Portugal, liderado por Mário Centeno, é de longe a instituição pública que mais gasta com serviços jurídicos. No total, foram 11 milhões de euros em três anos.
O Banco de Portugal, liderado por Mário Centeno, é de longe a instituição pública que mais gasta com serviços jurídicos. No total, foram 11 milhões de euros em três anos.

Afirma que, em Portugal, temos 10 grandes escritórios de advogados, e todos eles representam, de uma forma ou de outra, uma sociedade financeira ou uma instituição de crédito. “Essas sociedades de advogados que representam os bancos, que são entidades reguladas pelo Banco de Portugal, depois são também contratadas para representar o Banco de Portugal”, critica.

Prata Roque não esquece as regras de conflito de interesses que são exigidas pelo estatuto da Ordem dos Advogados, e que salvaguardam a maior parte destes casos, mas alerta que a independência está comprometida.

“Isto gera, de certa forma, uma desconfiança da parte dos cidadãos e da parte daqueles que exigem ao Banco de Portugal uma posição imparcial, uma posição independente, uma posição de defensora do interesse Público e, portanto, isso também é gerador de alguma preocupação”, afirma.


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"É com algum espanto que vejo, por exemplo, em matéria regulatória ou em matéria contra orde nacional, que o Banco de Portugal não disponha de recursos jurídicos próprios, de forma a dispensar a contratação de entidades externas", Miguel Prata Roque.

Licínio Martins, por seu lado, não fica admirado com os números. “Não me surpreende esse valor atendendo à dimensão altamente complexa, altamente especializada e a inexistência de um mercado de especialistas altamente vocacionados para auxiliar o Banco de Portugal. Obviamente, também é a lógica do mercado que está em jogo”, garante.

Em resposta às questões da Renascença, o Banco de Portugal salienta que "observa escrupulosamente, no âmbito dos procedimentos aquisitivos impostos pela prossecução das suas atribuições, o disposto nas normas legais aplicáveis e, em particular, no Código dos Contratos Públicos (CCP)”, e que no caso dos serviços jurídicos “está em causa a prestação de serviços relativos à representação do Banco de Portugal em processos contenciosos de grande dimensão e complexidade”.


Mais, diz que relativamente à celebração de contratos que têm por objeto a elaboração de pareceres jurídicos, está sempre em causa o suporte da posição do Banco de Portugal “através da obtenção de opiniões jurídicas dotadas de especial autoridade por parte de reputados académicos e especialistas, em domínios de grande tecnicidade e elevado nível de especialização”.

“Nestas situações, e por esse motivo inerente à natureza das prestações em causa, não é viável a utilização de procedimentos de índole concorrencial”, atesta fonte oficial da instituição liderada por Mário Centeno.

E se Prata Roque alerta para a questão da imparcialidade, o BdP argumenta “com a inerente excecionalidade e imprevisibilidade [de processos], que, como é sabido, se prolongam por um extenso período” para justificar os ajustes diretos quando em causa estão casos judiciais associados à resolução de instituições bancárias.


“Ao mesmo tempo, a mesma prossecução do interesse público e as próprias regras deontológicas de exercício de advocacia exigem que se assegure a inexistência de conflitos de interesses o que, desde logo, reduz em termos muitíssimo substanciais o universo de possíveis adjudicatários”, sublinha o BdP.

Ajuste direto: da exceção à regra

No universo das 10 entidades que mais gastam em ajustes diretos, não há nenhuma que tenha uma percentagem de ajustes diretos inferior a 54%. Mas há quem faça daquela modalidade contratual a única forma de ir ao mercado. É o caso Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, que aparece no sexto lugar entre as que mais gastam com advogados e juristas, e que tem 99% do valor dos contratos sem recorrer a concurso público.

Nas autarquias, sem grandes surpresas, devido à dimensão, Lisboa e Porto lideram. Ainda assim, a capital soma mais do dobro do valor gasto, 2,3 milhões de euros, que compara com o valor de um milhão de euros gasto pelo município portuense.


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"Há entidades que tentaram lançar concursos públicos para a contratar assistência jurídica durante um, dois, três anos, e esses concursos públicos foram absolutamente imprestáveis", Licínio Martins.

Ainda assim, no Porto o ajuste direto vale 85% do total, enquanto em Lisboa representa 55%. Albufeira, que está no terceiro lugar, fez quatro contratos nestes quatro anos, que somam 820 mil euros, e todos em ajuste direto.

Esta autarquia do Algarve fez contratos a rondar os 200 mil euros, cada um deles. Todos foram celebrados com o mesmo escritório de advogados: a Abecasis, Moura Marques.

Nas 10 câmaras com contratos mais onerosos, em oito delas, 80% do valor dos contratos representam ajustes diretos superiores a 20 mil euros.


Nas sociedades de advogados que mais faturam com entidades do setor público, além das líderes Vieira de Almeida e Sérvulo, a Abecassis, Moura Marques, e PLMJ e a Cuatrecasas também figuram no top-10. Em todas, mais de metade do valor total dos contratos são feitos por ajuste direto superior ao limite legal, e para os quais é preciso invocar as exceções que a lei prevê.

Para um aumento da externalização dos serviços jurídicos, segundo Prata Roque, concorre também a redução de quadros da Função Pública. A tendência, segundo o professor, adensou-se depois da presença da “troika” em Portugal.

“Sei que é muito popular, está muito em voga defender-se a redução do número de trabalhadores da Função Pública. Mas nós, como como seres pensantes, como cidadãos responsáveis temos de questionar se nos interessa ter uma administração pública mal apetrechada. Se nos interessa não ter bons engenheiros informáticos, não ter bons especialistas em cibersegurança, não ter bons juristas na Administração Pública. Se não tivermos, então o que acontece é que há uma necessidade de contratação externa”, reconhece.

Entre os 19 e os 20 mil para fugir a justificações?

Mas há ainda uma outra particularidade dos números que a Renascença trabalhou a partir do Portal Base. Há 377 contratos, 18,5% do total, que foram celebrados com valores entre os 19 e os 20 mil euros. Trata-se do limiar do valor que a lei prevê para que não tenha de ser justificado o porquê de optar pelo ajuste direto e não avançar para a consulta prévia ou o contrato público. No total valem 7,4 milhões de euros.


As Águas de Portugal e as Infraestruturas de Portugal têm cada uma delas 10 contratos entre estes valores. A título de curiosidade, a Ordem dos Advogados tem um contrato de 19,999,99 euros com a Rebelo de Sousa Associados, em 2021, e a Ordem dos Contabilistas de igual valor com a Raposo Subtil Associados.

Em relação a este tema, Miguel Prata Roque considera que “é verdade que uma consulta rápida ao Portal Base verifica inúmeros contratos de 19 mil 19,5 mil, 19,99 mil euros”, e que "qualquer pessoa sensata consegue perceber o que está a acontecer”.

Percebe que ninguém quis celebrar o contrato acima de 20 mil euros para não ter que consultar três entidades”, assegura.


 

Isso, conclui, permite dizer mais uma vez que é “um sinal de manipulação fraudulenta do mecanismo de contratação pública”. “Nesses casos, deve haver uma especial exigência, uma especial exigência pelo Tribunal de Contas, uma especial exigência pelos tribunais administrativos e uma especial exigência por todos nós”, pede.

Contratos que se estendem muitas vezes dois e três anos

Já Licínio Martins, membro do Conselho Superior de Magistratura, vê o problema de outra forma. Considera que por exemplo as autarquias usam o limiar dos 20 mil euros para resolver problemas correntes, e que há muitas vezes a tentativa de enquadrar essas necessidades prementes com esta ferramenta.

Por isso, é que na ótica deste especialista, estes valores aparecem como “estatisticamente muito frequentes”. Ocorrem quando “há algo extraordinariamente recorrente para resolver e os juristas internamente não conseguem corresponder ou porque não existem, ou porque não têm possibilidade pela complexidade da questão de corresponder”. “A figura imediata é a de utilização do ajuste direto até aos 20 mil euros”, explica.


E termina a justificação, afirmando que muitas das entidades recorrem ao ajuste porque não poderiam fazer face aos custos de terem sociedades de advogados ou advogados avençados durante dois ou três anos e, portanto, vão recorrendo episodicamente ao ajuste direto.

No entanto, uma análise a contratos de ajuste direto de menos de 20 mil permite perceber que, em média, têm uma duração de 12 meses. Muitos dos contratos inscritos no Portal Base têm precisamente os tais dois a três anos de duração.

Prata Roque alerta para outro fenómeno que, por vezes, passa por debaixo do radar da fiscalização. O das entidades que fracionam um bolo de 100 mil euros para serviços jurídicos em 10 contratos de 10 mil euros, e assim fugir à contratação pública.

“As sucessivas decisões dos tribunais administrativos portugueses e até a própria doutrina, ou seja, opinião dos académicos dos investigadores, têm entendido que essa divisão em lotes pode ser ilegal e pode ser fraudulenta no sentido de eu contornar a regra do concurso Público”, afiança.


Identificando que a externalização de serviços de advocacia pode ser um custo excessivo para o Estado, em 2017 o Governo criou o JurisApp, um centro de competências jurídicas para servir a Administração Central.

A equipa é atualmente composta por 29 pessoas. Entre 2018 e o final de 2022, o JurisApp representou uma despesa de cerca de oito milhões de euros.

Em resposta à Renascença, a presidência do Conselho de Ministros revela que em cinco anos de atividade “foram submetidos ao JurisApp 571 pedidos de parecer prévio para contratação de serviços jurídicos.”

“Destes, 319 foram excluídos ou rejeitados por falta de fundamentação e/ou requisitos ou porque eram relativos a avenças, 233 foram autorizados e 19 foram internalizados para emissão de pareceres pelo centro”.


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"O legislador está a aumentar o número de situações em que, por motivos materiais, se pode celebrar ajuste directo", Miguel Prata Roque.

A mesma fonte diz que “não é possível saber exatamente o universo das contratações externas feitas pelo Estado, das quais os serviços jurídicos são um exemplo”, e não fundamenta o porquê de 233 contratos terem sido externalizados.

Ora, o Portal Base serve exatamente para este fim, mas a Presidência do Conselho de Ministros diz que não consegue obter estes valores, tal como não responde sobre qual a poupança obtida com a internalização dos processos nestes cinco anos. Também não dá resposta ao número de processos trabalhados pela equipa de 29 pessoas do JurisApp.

Juntar recursos jurídicos no setor público?

Prata Roque — um dos mentores deste organismo quando foi secretário de Estado da Presidência — diz que o sistema é proveitoso, e que se traduz em poupança. Apesar de não haver um histórico de partilha de recursos no Estado, o mesmo tipo de serviço, garante, podia ser criado para as autarquias e para as entidades públicas, por forma a reduzir custos.

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Licínio Martins, apesar de admitir a ideia, alerta “para custos fixos que onerariam as entidades adjudicantes anualmente”, sendo certo que os “orçamentos são claramente limitados”.


A opção para este especialista em Direito Administrativo “tem que ser a de uma avaliação económico-financeira presente e as consequências orçamentais futuras”.

Ou seja, na opinião deste professor, a internalização de serviços poderá ter um custo superior do que o recurso ao mercado.

A Renascença questionou o Tribunal de Contas, o órgão competente para fiscalizar estes contratos sobre que tipo de análise faz dos contratos entre o setor público e os escritórios de advogados e quantas ações de fiscalização fez no decorrer dos últimos cinco anos. Perguntou ainda sobre os resultados dessas fiscalizações, nomeadamente o número de averiguações, de processos e de sanções se registaram.

A mesma fonte acrescenta que se trata de uma matéria que há muitos anos tem merecido a atenção do Tribunal, no quadro da legislação europeia e nacional.


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"Há muitas entidades adjudicantes que não dispõem de serviços jurídicos internos. Falamos desde logo em muitos e muitos municípios", Licínio Martins.

No entanto, não aponta qualquer estatística sobre a análise que faz destes casos, sendo que a Renascença sabe que esses dados não existem. Ao analisar a jurisprudência neste tipo de casos, verifica-se que o TdC tem adotado uma postura em que penaliza quem contrata escritórios de advogados para serviços de longa duração, enquadrando essa prestação num ajuste direto, mas aceita-o quando se trata de uma situação premente para resolver um problema concreto que de outra forma dificilmente a entidade conseguiria responder.

O TdC não quis comentar os números que a Renascença extraiu ao analisar do Portal Base, e se os mesmos indiciam violações da concorrência e da transparência.




Os dados foram compilados através dos contratos encontrados no Portal BASE, entre 2020 e 2022, em pesquisa pelos termos 'advogado", "serviço jurídico", "parecer jurídico" e "assessoria jurídica".

Todos os dados utilizados podem ser consultados no repositório de dados abertos da Renascença.


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